Cultura Uber e a saída de Travis Kalanick
A saída do CEO e fundador da Uber, Travis Kalanick foi mais um passo para tentar mudar a cultura organizacional da empresa que muitos avaliam como tendo atingido o limite do que consideramos uma cultura tóxica.
Quem acha que a saída do empreendedor que ajudou a criar a gigante Uber foi precipitada, talvez não tenha ainda conhecimento da longa lista de problemas e pequenos escândalos que a empresa esteve envolvida desde 2013. Vão desde declarações machistas do CEO até ações de sabotagem contra competidores e jornalistas críticos da empresa.
O estopim que gerou a crise que culminou com a saída de Travis Kalanick foi a divulgação de um artigo escrito pela ex-funcionária Susan Fowler em fevereiro de 2017 O texto acusava gestores de assédio sexual e o RH de fazer vistas grossas e colocar panos quentes preservando os chamados “high-performers”.
Com a explosão midiática provocada por este artigo, o board da Uber contratou o escritório de advocacia do ex-procurador geral americano Eric Holder. Ele então divulgou em junho um relatório com medidas específicas que deveriam ser tomadas para remodelar o ambiente de trabalho na empresa. A primeira sugestão: remover responsabilidades de Travis Kalanick e encontrar um CEO que pudesse implementar as outras recomendações.
Talvez você esteja pensando que o Uber é um caso extremo. Mas é justamente analisando esse caso é que podemos encontrar pistas sobre como estamos construindo nossas empresas e organizações e que tipo de cultura estamos fomentando.
O que podemos aprender com o Uber?
Uma das maneiras de entendermos uma cultura organizacional é observando as histórias que as pessoas contam sobre a empresa. Não vou entrar nos casos relevantes e repugnantes de assédio sexual. Vamos olhar para um sequência de fatos mais sútil, mas ainda muito reveladora. Colocando de maneira resumida:
- Um diretor decidiu comprar jaquetas de couro (artefato que revela por si só algo sobre a cultura) para todos os 150 engenheiros(as) do departamento;
- O pessoal de compras conseguiu um desconto para um grande lote de jaquetas masculinas;
- Como só existiam 6 mulheres engenheiras no departamento, o preço das jaquetas femininas seria maior;
- O diretor achou que não era justo as mulheres receberem uma jaqueta de couro mais cara;
- Foram compradas as 150 jaquetas paras os homens e 0 jaquetas para as mulheres;
- Apesar de várias reclamações por e-mail, o diretor continuou justificando sua decisão.
As jaquetas eram mais do que um brinde. Usá-las significava que você era parte de um time. Imagine a mensagem recebida pelas 6 mulheres do departamento.
Mesmo que esse fosse um caso isolado, dependendo de como tratado pelas outras pessoas na organização, já poderíamos tirar conclusões sobre o tipo da cultura organizacional e seu nível de toxicidade.
Lição 1 – Quer entender a cultura de uma organização? Ouça as histórias que são contadas pelas pessoas que trabalham nela.
Se você quer aprender um método para trabalhar a cultura da sua organização a partir das histórias que as pessoas gostariam de contar, veja aqui o método que desenvolvemos chamado Design Cultural.
E os valores expressos?
Uma declaração de valores raramente causa o impacto desejável. Simplesmente porque palavras na parede afetam muito pouco como as pessoas se comportam. O que importa são as ações e decisões que são tomadas no dia a dia. Se elas estiverem alinhadas com a lista de valores, ok, eles se tornam parte importante da cultura. Caso contrário, ninguém nem lembra de metade da lista.
No caso da Uber, Travis Kalanick inspirando-se nos princípios de liderança da Amazon, escreveu uma lista de 14 valores. A maioria deles são vagos e até contraditórios. Repare:
Os 14 valores culturais da Uber (tradução livre):
- Uber Mission (Missão Uber)
- Celebrate Cities (Celebre Cidades)
- Meritocracy and Toe-Stepping (Meritocracia e “pode passar por cima”)
- Principled Confrontation (Confrontação com princípios)
- Winning: Champion’s Mindset (Vencendo: Mindset de campeão)
- Let Builders Build (Deixem os fazedores fazerem)
- Always Be Hustlin’ (Sempre na luta)
- Customer Obsession (Obsessão com clients)
- Make Big, Bold Bets (Faça apostas grandes e ousadas)
- Make Magic (Faça mágica)
- Be an Owner, not a Renter (Seja dono, não alugue)
- Be Yourself (Seja você mesmo)
- Optimistic Leadership (Liderança otimista)
- Just Change (Apenas mude)
Qualidades que todo funcionário da Uber deve ter
- Vision (visão)
- Quality Obsession (obsessão com qualidade)
- Innovation (inovação)
- Fierceness (ferocidade)
- Execution (execução)
- Scale (escala)
- Communication (comunicação)
- Super Pumpedness (super animação)
O mais interessante é que a empresa é ou era tão pouco transparente que essa lista nunca foi divulgada externamente. O intuito era usá-la apenas em comunicações internas.
Ouvindo outras histórias da Uber, como a vez que durante uma festa de ano novo, funcionários roubaram um microônibus para dar um rolê na madrugada, acho que “ferocidade”, “super animação” “celebre cidades” e “pode passar por cima” eram qualidades e valores vividos pela organização. Não que esse ato tenha compatibilidade ou relação com fazer uma empresa crescer (escalar) globalmente, obsessão com qualidade e com os clientes.
Lição 2 – Valores na parede são bonitos, mas podem não significar nada. Na maioria das vezes são vagos, contraditórios e não são usados pelas pessoas em seus processos decisórios.
A Meritocracia na Uber
Em nome de uma alegada meritocracia, o Uber fomentou um ambiente de trabalho no mínimo hostil. Um gestor chegou a ameaçar bater com um taco de beisebol em um funcionário que apresentava baixa performance. Todos lutando para alcançar seu lugar ao sol e subir na pirâmide hierárquica. Outros casos de trapaças e traições para tomar o lugar de alguém ou ser reconhecido pelo chefe eram contados sem medo de retaliações ou reprimendas.
Na verdade o que existia era um princípio de que se você estivesse entregando resultado, tudo estaria ok. Um grupo de alto executivos, chamado de “A-Team”, que eram próximos ao Travis, tinham carta branca para agir, e mesmo quando acusados de assédio sexual, no máximo eram transferidos para outros departamentos.
Quando o escândalo da Susan Fowler veio a tona, o CEO chegou a montar uma força tarefa para investigar o caso, composto por ele e membros desse “A-Team”. Como se tudo aquilo estivesse acontecendo sem pelo menos a tolerância da alta direção.
Lição 3 – Processos de contratação, demissão e promoção são poderosos mecanismos de formação de cultura. Quando não olhamos criticamente para isso, deixamos a sorte determinar a cultura da organização.
No final, Travis Kalanick que fundou a empresa que hoje vale 70 bilhões de dólares, foi forçado por um dos investidores a deixar seu posto. Membros da organização já fizeram um abaixo assinado pedindo a sua volta.
O que é compreensível. Nós criamos a cultura e a cultura influencia como pensamos e vemos o mundo. Não é apenas mudando o CEO que tudo vai mudar no Uber.
Se você quer um ajuda para pensar sobre a cultura da sua organização, entre em contato, vamos conversar.