Quando começamos um trabalho de design organizacional em um cliente, com frequência encontramos um conjunto de padrões na cultura das organizações sobre como as pessoas lidam com a culpa, com a responsabilidade e com os erros.
Sobre a culpa
Duas cenas que se repetem logo no início. Na sala de reunião com os gestores, muitas falas que culpam pessoas e times por resultados não alcançados ou por decisões consideradas como erradas. Na reunião com o restante do time surgem falas sobre como a posições autoritárias dos gestores, ou como decisões erradas e impostas de cima pra baixo têm minado a capacidade das pessoas trabalharem.
Todos estão buscando culpados por suas dores. Se algo deu errado, é porque alguém não foi competente, ou foi negligente, ou ambos. “O erro não pode ser tolerado, e se aconteceu, cabeças vão ou deveriam rolar.”
Acredito que as duas perspectivas (dos gestores e dos colaboradores) estão erradas, pois devemos olhar para o sistema social. É nesse contexto mais amplo, que inclui cultura, estrutura, práticas e ferramentas que encontramos as raízes das principais disfunções e dores. Apontar culpados é um esforço inútil, se não prejudicial.
Sobre a responsabilidade
Em um segundo momento quando começamos a ajudar times e organizações a criarem papéis que dão clareza sobre as responsabilidades, outra coisa acontece.
As pessoas aceitam atuar em certos papéis, e com isso elas ganham para cada papel, um conjunto de responsabilidades explícitas. As novas regras do jogo dão total autonomia para cada um e o poder de decidir como atuar em seu papel. Mas aí, elas continuam fazendo uma de duas coisas.
As pessoas continuam pedindo permissão para o ex-chefe ou pedindo o consenso do grupo antes de tomar uma decisão que claramente faz parte de suas responsabilidades que estão descritas em seus papéis. Esses hábitos têm relação direta com a conexão implícita que fazemos entre culpa e responsabilidade. Eu fujo da possibilidade de tomar uma decisão, pois isso poderia me expor.
Eu posso ser considerado culpado se algo der errado. Então, peço para o grupo decidir ou continuo colocando nas costas do chefe. Se ele errar, a culpa será dele e posso sair ileso.
Em algumas situações, a pessoa “delega” para o grupo uma decisão, pois ela acredita que o grupo é mais forte e pode então se defender de ataques, quando algo der errado. Ao mesmo tempo ela ainda sonha em ser reconhecida se algo der certo. Com isso ela manda um sinal: ela quer ser responsável, mas não quer ser culpada ou punida por erros.
Sobre o erro
Com isso, encontramos o último elemento. O erro. Algo que não foi planejado aconteceu, ou uma expectativa foi frustrada. Uma planilha com um erro na fórmula ou um prazo não cumprido junto ao cliente.
Errar é humano, mas ainda teimamos em não aceitar o nosso próprio erro. Nas organizações o mais comum é associarmos erros a burrice ou incompetência. Assumir um erro neste ambiente é um ato corajoso que pode ser taxado como loucura por alguns.
Com frequência uma decisão tomada tem consequências não esperadas. Mas essas consequências também podem ter múltiplas causas que ainda não foram identificadas. Mas de maneira inconsciente, escolhemos ignorar essa possibilidade e carimbamos o erro, procuramos culpados e punimos. Ao invés de gerar reflexões e aprendizado, geramos medo.
O estado atual das coisas
A partir das observações acima, consegui identificar três crenças inconscientes que fazem parte da cultura de muitas organizações:
- Os erros devem ser evitados a todo custo, pois eles são o motivo da organização não expressar por completo seu propósito.
- Precisamos achar o culpado, pois o culpado precisa sofrer de alguma maneira pelos seus erros, pois só assim as coisas vão melhorar.
- Quanto mais responsabilidades eu tiver, maior o potencial de eu ser culpado e assim sofrer punições.
São essas crenças que precisam ser questionadas, e jogadas na lata de lixo, se quisermos organizações onde o trabalho, inovação e o aprendizado fluam.
Precisamos então concentrar esforços em fazer duas coisas:
- Ressignificar o conceito de erro, focando em reparação de danos e aprendizado.
- Desacoplar a responsabilidade da culpa, para fortalecer um, enquanto se minimiza o outro.
Vamos entender melhor o que esses dois pontos significam.
Os 4 tipos de erros
Não podemos acreditar que erros são sempre desejáveis, porque não são. Mas podemos ressignificar o conceito de erro, aprofundando a discussão quando nos deparamos com um erro, sem cairmos no automatismo de procurar um culpado e puni-lo.
Podemos fazer duas coisas. A primeira é olhar para o erro como uma oportunidade de aprendermos. A classificação proposta por Eduardo Briceño me parece útil para entendermos como extrair aprendizados.
Erros que nos esticam (Stretch Mistakes)
Esses são erros que acontecem quando queremos expandir a nossa capacidade de fazer algo. Nossa intenção não é errar, mas existe uma grande chance de falharmos. Se evitamos esse tipo de erro, perdemos oportunidade de aprender e nos desenvolver. São situações novas e desafiadoras que escolhemos enfrentar.
Quando estamos cometendo os mesmos erros que nos esticam de maneira recorrente, talvez seja necessário revisar nossas premissas e estratégias de aprendizagem ou até mesmo re-avaliar se o que estamos nos propondo ou aceitando como desafio está dentro do possível.
Quando uma cultura organizacional busca evitar erros que nos esticam, elas acabam limitando o desenvolvimento de seus colaboradores. Precisamos abraçar esses erros quando eles acontecem, refletir sobre eles, identificar o que podemos aprender e ajustar a nossa prática.
Erros Aha (Aha Mistakes)
Outro erro que tem grande potencial de gerar aprendizados é o erro aha. Ele acontece quando menos esperamos. Quando nos damos conta de que algo que fazíamos e que acreditávamos ser o mais correto, tem na verdade efeitos nocivos ou é um erro em si. Como por exemplo, definir metas e recompensar os colaboradores que atingem os resultados.
Quando entendemos que fazíamos algo errado sem perceber, e ainda acreditando que era o certo, temos um momento de epifania. Temos que refletir sobre isso e abraçar essa oportunidade de aprendizado. A intenção não era de enfrentar um desafio ou fazer algo inédito, mas acabamos descobrindo algo muito valiosos quando nos deparamos com esse erro.
Erros por deslizes (Sloppy Mistakes)
Erros por deslizes acontecem quando estamos fazendo algo que já conhecemos e dominamos, mas por uma distração algo dá errado. Esses erros acontecem pois somos humanos. Mas se cometemos muitos erros desse tipo é porque precisamos revisar o nosso foco, processo, ambiente ou nossos hábitos.
Pode ser que um erro por deslize se torne um erro aha, quando conseguimos identificar, por exemplo, que conseguimos fazer melhor um certo tipo de tarefa depois de uma boa noite de sono.
Erros de alto impacto (High-stakes Mistakes)
Alguns erros queremos realmente evitar pois eles têm o potencial de serem catastróficos. Ou porque eles envolvem uma potencial perda de vida, como um motorista de ônibus escolar que decide bater o recorde de velocidade, ou porque eles envolvem algum evento onde a performance é medida e premiada, como por exemplo um time de futebol em uma final de campeonato.
No caso de um evento de performance, se um erro ocorre, precisamos também extrair o máximo de aprendizados, mas precisamos focar mais energia na preparação para futuros eventos. Existem casos raros onde esses eventos acontecem em uma organização, seria o caso por exemplo, do envio de uma documentação para uma importante licitação, onde um erro poderia levar a um longo período sem recursos financeiros, ou no caso de um lançamento de um foguete que custa centenas de milhões de reais (será? veja o vídeo abaixo). Na maioria das vezes, temos situações onde exageramos as consequências, e tratamos tudo como sendo de altíssima importância e impacto, quando na verdade não são.
Esses são erros que não queremos cometer, mas ainda podemos aprender muito com eles.
Reparação de danos
A segunda coisa que precisamos fazer para ressignificar o conceito de erro, é avaliar quando o erro impacta de maneira negativa outras pessoas. Um exemplo extremo é quando um cirurgião esquece um instrumento no abdome de um paciente.
Precisamos pensar em estratégias reparadoras, e isso inclui restaurar a qualidade de uma relação que pode ter sido abalada pelo evento. Talvez ela nunca volte ao estado anterior e talvez o erro promova impactos que são de difícil reparação, mas precisamos tentar. Nada está escrito em pedra.
Focar energia na reparação é bem diferente das estratégias de punição. Em alguns casos as organizações não acreditam que é possível restaurar (em um horizonte de tempo viável) a confiança em uma pessoa, e acabam decidindo demiti-la. Vejo isso como uma possível saída.
Mas isso deveria ser mais incomum do que é hoje, quando muitas vezes, bastam algumas conversas de corredor entre diretores, para se decidir pela exclusão de uma pessoa que errou. Normalmente isso é interpretado como punição pela maioria e quando o erro está cercado de subjetividade, a mensagem não costuma ser boa. Caímos novamente no círculo vicioso de culpar e punir. Perdemos uma oportunidade valiosa de aprendermos.
A culpa é sobre o passado, a responsabilidade sobre o presente e futuro
Precisamos evitar o hábito de culpar e punir as pessoas diante de qualquer erro. Isso tem relação com a maneira como sempre associamos responsabilidade com culpa. Se alguém é responsável, então a pessoa é culpada pelo erro.
A culpa é sobre o passado, algo que aconteceu. A responsabilidade é sobre o presente e futuro. No atual momento e no futuro quem é ou será responsável por tomar uma ação ou decisão. Quando descolamos um do outro podemos lidar melhor com a complexidade e valorizar o que é humano.
Diante de um erro podemos focar nossa energia no aprendizado e na reparação. Podemos dar mais clareza sobre quem é responsável por algo sem associar isso com um processo de culpabilização e punição. Cada um pode assumir responsabilidades sem ter medo de ser culpado por tudo.
Podemos entender que errar faz parte, mesmo quando tudo deveria dar certo. Podemos olhar para o sistema social e procurar maneiras de melhorá-lo.
Mudança de cultura
Estou falando aqui de mudanças na cultura organizacional: jogar fora certas premissas implícitas e adotar um novo conjunto de crenças. Isso não é simples, mas é possível.
Existe um caminho que passa por ganhar consciência desses fenômenos sociais e ao mesmo tempo prototipar intervenções práticas. Em outras palavras, um processo de design cultural que pode passar por:
- Mapeamento de tensões e dores sobre tema
- Construção de novas narrativas que representam o futuro desejado
- Identificação de hipóteses sobre como essas narrativas podem se concretizar
- Proposição de artefatos, que podem ser rituais, processos e símbolos que podem testar essas hipóteses
Tudo isso feito de maneira colaborativa e ágil. Não queremos atuar como alguém que faz um diagnóstico e propõe um tratamento. Mas queremos dar suporte para que as pessoas lidem com suas tensões e não apenas falem sobre elas.
Se bem que falar sobre erro, culpa e responsabilidade já é um bom começo. ;)
Se quiser conversar sobre como a Target Teal pode ajudar sua organização no desafio de transformar sua cultura organizacional, vamos tomar um café.