Um diferencial que o modelo de governança O2, criado pela Target Teal, oferece em relação às outras tecnologias sociais para a adoção de autogestão – como Holacracia e Sociocracia – é o modo cuidar que criamos para fortalecer laços entre as pessoas.
Modo cuidar é um espaço relacional onde damos apoio às pessoas, deixando os papéis e a estrutura organizacional de lado para olhar para os indivíduos com intuito de melhorar a qualidade das relações e criar conexão. Bonito né? – mas não é tão simples. No fim das contas, estamos falando de pessoas, suas necessidades e sentimentos dentro de um contexto organizacional. E talvez por isso, esse modo de reunião é o mais enigmático e o menos utilizado.
Mas cá entre nós – cuidar é o modo mais poderoso para desenvolver um espaço de segurança psicológica, confiança e auto responsabilidade – fatores fundamentais para a transição para autogestão. Por isso, o campo relacional está inserido nas práticas de autogestão com características específicas para cuidar de tensões desses espaços distintos. Antes de entrar em mais detalhes sobre o modo cuidar, gostaria falar um pouco sobre esses espaços distintos: o organizacional e o relacional. Então vamos lá.
Na O2 enxergamos a organização como um organismo vivo que está constantemente em busca do seu propósito – o impacto positivo que quer trazer para o mundo. Idealmente os membros da organização também se inspiram nesse propósito, mas sabemos que as pessoas têm diversas necessidades e desejos que não podem ser supridas pela organização e que por sua vez também não deve focar 100% nas necessidades individuais – pois se tornaria uma organização auto-centrada, que foca só em si mesma e esquece do que se propôs a entregar para o mundo – e não queremos isso.
Então, na O2, uma organização é um conjunto de acordos que estão a serviço do propósito. Sim, você leu certo – uma organização é um conjunto de acordos que estão à serviço do propósito. Olha, isso não quer dizer que as pessoas não são importantes, elas são muito importantes, são a energia vital da organização, são os órgãos de percepção que ajudam a organização a perceber e responder. Mas as pessoas vão e vêm, e o que fica é a estrutura organizacional. São os acordos entre as pessoas que trazem clareza sobre expectativas e autoridades, quem faz o quê, processos, rituais etc.
Precisamos incluir nessa estrutura mecanismos que reconheçam esse campo relacional de pessoas e percebam como sendo importante tanto quanto o campo organizacional. Por isso, na O2, existe a distinção entre o espaço organizacional e o espaço relacional.
No espaço organizacional, temos os papéis, restrições (políticas), círculos, e todos os acordos que compõem a estrutura de uma organização. Então quando eu, Tanya, no papel de LX Designer, peço um projeto pro Rodrigo, no papel de Tutor, para atualizar um vídeo de culture hacking sobre estratagemas usando exemplos organizacionais, estou atuando no espaço organizacional. Para quem conhece O2, também temos modos de reunião de revisar, sincronizar, adaptar também elementos que funcionam nesse espaço. Quando estamos trabalhando dentro da organização ou decidindo sobre como funciona a organização estamos atuando no espaço organizacional.
Já no espaço relacional, a relação acontece entre pessoas, sem esse filtro dos papéis. Claro que em muitas instâncias uma tensão relacional emerge a partir do espaço organizacional, um conflito entre papéis, um senso de falta de reconhecimento, uma resposta grosseira, uma brincadeira desagradável, um feedback que incomodou, uma baixa motivação por causa de um retrabalho, um momento difícil em casa – enfim, somos seres humanos e cada um é afetado por seu entorno de forma singela – então uma tensão de modo cuidar é qualquer tensão que não podia ser trabalhada ou encaminhada numa reunião de sincronizar ou adaptar. O modo cuidar acontece quando a pessoa com a tensão quer compartilhar como está se sentindo para além do trabalho.
Modo Cuidar é um outro tipo de ritual, convidamos todas as pessoas do círculo, mas vem para o encontro quem sente o chamado. O modo cuidar também tem uma pessoa facilitadora, mas nesse caso a facilitadora, além de guiar um processo, fica responsável por abrir um espaço convidativo para superar o desconforto de ouvir sobre sentimentos, indo para um nível mais profundo de abertura e conexão. Um ritual de modo cuidar pode seguir vários formatos, mas tem alguns elementos fundamentais que trazem um espírito muito diferente para esse encontro:
- Checkin breve que conecta as pessoas com as emoções e sentimentos. Queremos que as pessoas saiam do espaço mental e se abra para um espaço sentimental de transparência e vulnerabilidade. Para ter a coragem de falar abertamente sobre aquilo que incomoda, seus sentimentos e até suas incoerências. É a partir dessa transparência e vulnerabilidade que podemos nos conectar profundamente com o outro para criar laços empáticos e ter clareza sobre nossas necessidades individuais.
- Convidar para um espaço de escuta, como se fosse uma conversa ao redor de uma fogueira. Não exploramos temas e não teremos ações, estamos presentes para ouvir histórias individuais que se conectam com nossas histórias. Todas as pessoas são responsáveis por sustentar o espaço e apoiar na escuta dos participantes. Então evitamos saída e entrada de pessoas, isso cria um vazio no grupo e descuida da pessoa que está compartilhando algo.
- Pessoa Facilitadora apresenta a expectativa e a dinâmica do encontro – algo simples que convida à profundidade. O uso de perguntas geradoras permite às pessoas trazer algo vivo que também está conectado ao trabalho. Uma pergunta geradora poderia ser algo como: O que está entre nós? O que me aproxima ou me distancia do grupo? O que está vivo e o que gostaria de compartilhar? Mas existem muitas outras possibilidades.
- Ao abrir o espaço, normalmente há um momento de silêncio prolongado, onde as pessoas estão consigo mesmo, sentindo e refletindo sobre algo que gostaria de trazer. Respire tranquilamente e sustente esse silêncio; confie que as pessoas vão trazer sua fala quando estiverem prontas.Quem traz uma história ou fala decide até onde quer compartilhar e o resto do grupo respeita esses limites e suspende a vontade de explorar a tensão por meio de perguntas. É comum checar o entendimento da fala e salientar aquilo que é importante, conectando com intuito de trazer cada vez mais clareza sobre as necessidades. Depois da experiência de uma troca em um campo de vulnerabilidade, precisamos fechar esse espaço também com uma ritualística.
- Checkout pode ser algo simples como uma palavra ou sentimento sobre como cada um está saindo do encontro. Também pode ser importante relembrar que esse espaço tem um acordo de confidencialidade, o que acontece nesse espaço entre essas pessoas, se mantêm no grupo.
A O2 não define um formato para o Cuidar e nem como isso deve acontecer, mas existem práticas comuns. Uma delas é o fórum light. Na nossa biblioteca você pode ler sobre esse padrão ou acessar a carta de modo cuidar que tem um passo a passo de como fazer o fórum light. Mas, como falei há pouco, há muitas possibilidades para o modo cuidar.
Independente do tipo de ritual, evitamos criar acordos ou encaminhamentos. O objetivo aqui não é resolver questões ou cuidar de tensões de trabalho, pelo contrário, é um convite de sustentar o incômodo de não ter respostas ou encaminhamentos claros. Inclusive, é comum sair do encontro incomodado e pode ser necessário um tempo para refletir sobre o processo. Pessoas podem ter insights profundos pós encontro; às vezes sugerimos um tempo de sigilo de 24 horas para integrar a experiência.
Depois desse tempo, uma relação frágil entre pares pode começar a ter um caminho de regeneração, os membros de um círculo podem fortalecer seu vínculo e tolerância uns com os outros, fazendo o trabalho fluir melhor. Talvez o ato de falar sobre tensões na esfera relacional, permite que uma pessoa se conecte com as necessidades e emoções individuais, para posteriormente reconectar com a mesma tensão no espaço organizacional de um outro lugar, criando caminhos na estrutura para aliviar algumas tensões. Por isso, o espaço organizacional e o espaço relacional têm estratégias separadas, mas que constantemente caminham juntos.
A distinção entre os espaços é importante para reconhecermos quais tensões merecem quais tratativas. O modo cuidar, que olha para o campo relacional, tem esse jeito que busca explorar, observar e até mediar, mas não resolver. É onde se constrói empatia e conexão.
Para além do olhar para as relações, o modo cuidar nos permite rever e limpar questões do campo emocional, individuais ou relacionais. Com isso, cuidamos também do ambiente organizacional, pois acessamos juntos esses espaços de empatia e conexão que promovem escuta, confiança e segurança psicológica.