Atenção: A história contada abaixo representa a minha perspectiva sobre os fatos. Não é necessariamente um consenso entre os diversos atores que participaram do processo.
Em maio de 2015 eu cheguei em São Paulo para trabalhar na Geekie como Agile Coach, um especialista em processos de software e desenvolvimento de grupos. Até então, eu era o único que desempenhava essa função na organização, que já contava com mais de 100 funcionários. Danilo Bardusco, CTO da empresa, me trouxe para ajudar a organizar o trabalho dos 5 times de desenvolvimento existentes na época.
Me assustei no primeiro dia com o local. Era um grande galpão colorido, cheio de pessoas interessantes e fascinadas por educação. Não era o escritório dos meus sonhos, mas tinha algo mágico ali.
Lembro que na entrevista, o CEO me disse: Você está preparado? As coisas mudam muito rápido aqui. Nem todos conseguem lidar com isso. Confesso que naquele momento apenas assenti, sem entender o que aquilo realmente significava.
Toda semana chegavam novas pessoas. Os times estavam crescendo e notavelmente precisávamos de estruturas para lidar com isso. Durante o meu processo seletivo, o Danilo tinha me mostrado um diagrama que representava a formação dos times naquele momento. Ao chegar lá, tudo já havia mudado e me deparei com outro desenho. Ele disse: Aquela estrutura não estava funcionando. Estamos testando outra.
Alguns meses depois, decidimos focar os esforços de dois times em uma iniciativa voltada para o ENEM. Não sabíamos ao certo qual seria a distribuição ideal das pessoas entre os grupos, então tivemos uma ideia brilhante de chamar todos em uma sala (quase 20 pessoas) e pedir que eles escolhessem. Tentamos explicar o que estava acontecendo, mas fomos bombardeados de perguntas que demandavam respostas que ainda não tínhamos. E com razão. As pessoas estavam cansadas dessas grandes revoluções na organização. Eles não entendiam porque estávamos focando naquele projeto e porque a estrutura precisava mudar. Não entendiam porque queríamos que elas escolhessem. Não houve facilitação que ajudasse. Acabamos a reunião depois de algumas horas, com todos exaustos daquela discussão sem fim. Alguns choraram.
A Geekie tinha uma necessidade de adaptação constante. Eu e o Danilo queríamos envolver todos na discussão, sem forçar uma decisão específica. Mas ao mesmo tempo, o consenso era cruel e desgastante.
O problema está mais embaixo
Coincidência ou não, nesta época eu estava lendo o livro Holacracia, do Brian Robertson. Conforme eu avançava nos capítulos, os problemas que o Brian descrevia no livro começavam a ressonar com os que nós estávamos vivenciando na Geekie.
Não era uma questão de falta de metodologia de desenvolvimento de produto. Não era Scrum, facilitação ou Kanban que iriam ajudar. O problema era maior. Expectativas. Papéis. Adaptação à mudanças. Por mais que as nossas propostas fossem bem intencionadas, não sabíamos como envolver o grupo sem criar o caos do consenso. Também não tínhamos a estrutura atual detalhada, tangibilizada e clara para todos. As divisões de fronteiras e autoridade não estavam descritas.
Eu e o Danilo fomos avançando nos estudos e compartilhando os aprendizados sobre o tema. Cada dia ficava mais claro que existia um fit perfeito entre Holacracia e os problemas da Geekie. Mas ele logo me disse que aquilo não seria bem aceito. A Holacracia era vista pelos executivos como “gestão horizontal caótica” ou “tudo é decidido em consenso e não existe clareza”. Achamos curioso, pois isso era justamente o oposto de Holacracia. De qualquer forma, teríamos que lidar com aquela tensão.
Mais reorganizações
Depois de alguns meses a Geekie deu um passo importante na sua história. Ela se dividiu em três unidades de negócio, que deram mais clareza ao escopo de cada time. Cada unidade tinha um produto diferente e atuava de forma praticamente independente. Apesar dos ganhos percebidos, foi uma grande reorganização feita de forma abrupta. Entendíamos que a adaptação era importante, mas acreditávamos que ela deveria vir de forma constante e incremental.
Após essa nova reestruturação, os executivos e gestores perceberam que havia um grande problema de disciplina e gestão. Foi então que eles decidiram definir cargos e responsabilidades das lideranças, usando a matriz RACI como um esquema de tomada de decisão. Como não existia nenhum tipo de ritual que reforçava o artefato produzido, em poucas semanas ele caiu no esquecimento.
Continuei fazendo o meu trabalho de Agile Coach, mas eventualmente comentando com as pessoas sobre sistemas de auto-organização. Inspirado pelo Reinventing Organizations de Frederic Laloux, comecei a mostrar esse vídeo para vários Geekies. O assunto Holacracia começou a ficar mais conhecido dentro da organização, especialmente na área de produto. Fiz uma grande planilha com os nomes de todas as pessoas da organização, listando quais pessoas apoiariam o movimento e quais não.
O segundo seguidor entre os executivos
Em dado momento, eu e o Danilo tomamos coragem de fazer uma apresentação para os executivos sobre Holacracia e como ela poderia ajudar a resolver os problemas da Geekie. Eles nos ouviram com atenção. Receosos, disseram que a adoção do modelo poderia ser um passo arriscado, por ainda era desconhecido. Decidimos marcar uma segunda conversa para discutirmos os conceitos mais a fundo.
Essa segunda conversa nunca aconteceu. Pelo menos não da forma como queríamos. Não conseguimos tempo deles para investir em estudar a Holacracia. Desesperados, marcamos outra reunião — dessa vez a metade deles compareceu — para tentar forçar uma decisão de “ou vamos, ou deixamos”.
Tivemos a sorte de que o Mauro Romano, COO, tinha lido mais sobre Holacracia. Mais familiarizado com os conceitos, ele disse que queria apostar no modelo, pois parecia ser muito coerente com a forma de educação que acreditávamos:
Se quisermos ter uma sala de aula invertida, onde o professor não é uma autoridade inquestionável, precisamos ter um modelo de gestão que passe a mesma mensagem. Isso vai influenciar a forma com que construímos os nossos produtos e por consequência, a educação.
Mauro se predispôs a testar no departamento que ele comandava. Eu e o Danilo saímos para tomar uma cerveja e comemorar! ;)
Dois pilotos
Comunicamos com entusiasmo a área de Customer Success liderada pelo Mauro que iríamos trabalhar com Holacracia. Muitos ficaram empolgados e a resistência foi baixa no começo. Então tivemos a ideia brilhante de montar uma apresentação explicando os principais elementos do framework. Não foi uma boa, pois a quantidade de jargões e regras do modelo causaram um certo espanto.
Em paralelo, o Mauro começou a descrever os papéis e a estrutura da área naquele momento. Eram cerca de 20 pessoas. Logo começamos a rodar o processo operacional através da Reunião Tática que agendamos com frequência semanal. Descobrimos que uma abordagem mais interessante era aprender fazendo, ao invés de ficar tentando explicar os elementos de forma expositiva. Mais um ou dois meses e iniciamos o processo de governança.
O Danilo não participou muito da implementação na área de Customer Success, pois estava envolvido com outro projeto. Ele estava cuidando de uma das unidades de negócio e decidiu introduzir a Holacracia lá. Só que ele não contou para ninguém.
As pessoas estavam pedindo por clareza no trabalho, então ele resolveu descrever os papéis já no formato do framework. Uma vez que os papéis estavam claros, ele começou a fazer uma Reunião Tática semanal para revisão das métricas, que também tinha sido uma solicitação deles. Ele só precisou contar para todos quando começaram o processo de governança. Como consequência, a resistência foi menor e o aprendizado mais rápido em comparação ao outro grupo.
Resultados Anedóticos
Depois de 4 meses praticando nesses dois departamentos, tínhamos relatos de 30 pessoas, cerca de 1/3 da organização. Conseguimos sintetizar as vantagens da Holacracia para a Geekie em dois grandes pilares: aprendizado e agilidade.
Aprendizado
Os papéis são bem menores do que os tradicionais cargos. Eles dão mais flexibilidade para as pessoas experimentarem coisas diferentes, ao invés de ficarem restritas ao que foram contratadas para. Além disso, o canal claro de processamento das tensões que a Holacracia estabelece permite que novas propostas de papéis e projetos surjam. Um dos membros do círculo Geekie Games propôs um papel que cuidaria de um suposto programa idealizado por ele. Ficamos estarrecidos. Danilo, que era o antigo gestor disse:
Eu nunca ia pensar nisso. A Holacracia cria um canal de comunicação claro para que as pessoas possam transformar ideias em mudanças organizacionais.
No processo de implantação, fizemos as eleições para os papéis de Facilitador, Secretário e Elo Representativo da Holacracia. No círculo de atendimento, Romualdo (Roma) foi eleito Facilitador. Ao longo da implantação da Geekie, Roma se envolveu com o processo e passou a ajudar diversos grupos. Ele se tornou uma referência interna no framework. Nas suas palavras:
Tive o privilégio de estar envolvido com a Holacracia desde o experimento inicial na Geekie. De cara, este modelo trouxe clareza do que era esperado de mim nos diferentes papéis que eu ocupava. Além disso, por meio da Holacracia pude me desafiar e desenvolver novas competências.
Agilidade
Com clareza nas expectativas e nas atividades que cada um deve desempenhar, as pessoas podem focar mais a sua atenção no trabalho. Isso gerou uma sensação de maior velocidade na execução. Os checklists, métricas e projetos da Reunião Tática permitem uma tranquilidade maior em relação à entrega dos colegas. Ninguém precisa cobrar. O processo cobra.
Expansão do Piloto
Ao apresentar esses depoimentos e resultados aos executivos, a decisão foi imediata: vamos expandir. Apesar de alguns ainda não compreenderem em detalhes a Holacracia, eles confiaram no nosso julgamento. Começamos a implantar em todos os círculos, até termos todos os grupos rodando, cerca de 3 meses depois.
Aprendizados na implementação
De dentro para fora ou de fora para dentro?
A expansão do piloto seguiu uma direção “de dentro para fora”. O círculo geral da Geekie foi o último a iniciar as Reuniões Táticas e de Governança. Como resultado, muitos executivos foram envolvidos somente nas últimas etapas do processo. Isso gerou uma certa descrença nas pessoas, que ficaram inseguras quanto ao compromisso deles na adoção do framework. Essa percepção se esvaiu a partir do momento em que eles começaram a praticar as reuniões.
Descrição exaustiva dos papéis
Nós gastamos tempo demais descrevendo os papéis da estrutura inicial. O resultado foi que eles ficaram “pesados” e completos demais, com responsabilidades que não eram tão essenciais. Dessa forma, acabamos por não gerar combustível para as primeiras Reuniões de Governança.
Provavelmente o primeiro caso brasileiro
Durante o processo de implantação da Holacracia, fiz inúmeros contatos com outros brasileiros que já haviam feito o curso oficial com o Brian Robertson ou que estavam interessados no framework. Mesmo assim, não encontrei outras empresas que estivessem praticando o modelo no Brasil quando começamos. Acredito que a Geekie seja a primeira organização brasileira que adotou o modelo 100% e que segue a Constituição da Holacracia.
Novos horizontes
A Holacracia trouxe novas experiências para mim e para muitos outros Geekies. Eu vi uma organização operando em um outro paradigma, sem chefes, sem comando e controle e com muita autonomia. Eu consegui alcançar o meu sonho de trazer os elementos de times ágeis de desenvolvimento de software para outras áreas. Por isso, após a implantação do modelo eu decidi que queria ajudar outras organizações a fazerem o mesmo.
A Target Teal
Em Maio de 2016, eu deixei a Geekie para montar uma nova iniciativa chamada Target Teal. A TT é uma organização-rede que busca ajudar outras empresas a se reinventarem, adotando tecnologias sociais disruptivas, tal como a Holacracia. Nossos temas de atuação incluem autogestão, governança dinâmica, cultura organizacional, desenvolvimento organizacional, ágil e lean.
Reflexões Finais
A Holacracia trouxe para a Geekie uma solução sistêmica para os problemas de expectativas, clareza, gestão e crescimento. O framework, por favorecer uma estrutura distribuída, criou alguns desafios na área de pessoas, especialmente no que tange remuneração. Ainda assim, ele permitiu estabelecermos uma estrutura de governança participativa, transparente e com condições de adaptação incríveis.
Além disso, a Holacracia transformou a vida de muitos Geekies. A distribuição de autoridade e os papéis pequenos geraram inúmeras oportunidades de aprendizado, como vimos no caso do Romualdo.
E a coisa mais importante de todas: agora a Geekie pratica uma gestão mais coerente com o que ela visualiza para o futuro da educação. Como disse Gandhi:
Seja a mudança que você quer criar no mundo.