Toda pessoa que ocupa uma posição de destaque na pirâmide hierárquica goza de alguns privilégios. Quando somos chamados por essas pessoas para ajudar suas organizações a adotarem práticas de autogestão, elas já sabem que não será fácil, porém raramente reconhecem que um dos grandes desafios envolve abrir mão de alguns privilégios.
Entender esses privilégios e como eles se manifestam pode ser uma boa, tanto para a pessoa CEO que ingenuamente acredita estar imerso em um ambiente de justiça, igualdade e fraternidade, quanto para as outras pessoas que sofrem quando esses privilégios se chocam com a autogestão.
Vou listar os privilégios mais comuns, em ordem aleatória.
- Privilégio de ter suas sugestões não só ouvidas, mas seguidas à risca. Uma pessoa CEO pode entrar em qualquer time ou área, dar palpites despreocupados e ser atentamente ouvido e muitas vezes interpretado como dando direcionamentos importantes que precisam ser seguidos. Nada como sentir-se ouvido, acolhido e sempre valorizado. Na autogestão as pessoas são respeitadas, mas conselhos e palpites não requisitados podem ser gentilmente ignorados.
- Privilégio de ter suas preferências adivinhadas. Com frequência as pessoas estão tentando imaginar ou inferir as vontades e desejos de um CEO. É melhor do que ter um gênio da lâmpada, pois existe um esforço gigante de todos em tentar entender ou até adivinhar o que o CEO quis dizer com uma frase em uma reunião. Na autogestão você precisa articular seus pedidos de maneira clara, e quando você falha com isso, precisa lidar com sua frustração e tentar mais uma vez.
- Privilégio de ser ambivalente ou incoerente. Todos possuímos em algum grau ou aspecto contradições e ambivalências. Ou como dizia Walt Whitman: “Eu sou contraditório, eu sou imenso. Há multidões dentro de mim.” O CEO simplesmente goza do privilégio de raramente ser chamado a atenção por um subordinado de que ele está sendo incoerente. Ele pode viver sonhando que sempre faz o que diz ou que nunca muda de opinião. Na autogestão todos precisam lidar com suas ambivalências e incoerências e acabam recebendo questionamentos quando dizem algo na linha de: “eu quero transparência, mas não quero que todos na empresa saibam que recebo 5x mais que fulana.”
- Privilégio de despejar expectativas implícitas nas pessoas. Os discursos e falas “motivacionais” dos executivos estão recheados de expectativas implícitas, mal definidas e que servem para embasar frases como: “todos sabem muito bem o que precisa ser feito, o que falta é ________ (use a palavra mais odiada na sua empresa aqui). Mais de uma vez eu já ouvi de um gestor, que aquilo era esperado de tal pessoa ou cargo, de maneira implícita, e que era um absurdo a pessoa não se comportar daquele jeito. Não vou nem comentar sobre como isso soa para quem trabalha com autogestão.
- Privilégio de não seguir as mesmas regras do jogo que ele espera que todo mundo siga. Todos precisam seguir regras e processos, mas sempre existe uma leniência para quem ocupa uma posição como a de CEO. Com frequência tratamos essas pessoas como meninos mimados. Poxa, o diretor ficou entediado na reunião e por isso ficou olhando para o celular. Ninguém pode usar o celular durante reuniões nessa empresa, mas nesse caso a regra não se aplica.
- Privilégio de escolher quem vai trabalhar na organização. Quem fundou sua empresa, que hoje trabalha como CEO, goza desse privilégio com prazer e legitimidade. “Fornecedor x ou pessoa y que não me agradam, não quero mais aqui.” e “Quero chamar fulano que conheci jogando tênis para cuidar da área de atendimento”. Tudo isso é normalizado no mundo hierárquico, mas na autogestão se torna estranho, para não dizer incompatível.
- Privilégio de ocupar vários “papéis” e não ser responsabilizado por nenhum. No início, quando uma organização é pequena, é comum quem fundou ela acabar ocupando inúmeros papéis ou funções informais. Quando ela cresce é normal o CEO ter que deixar alguns deles de lado. Mas ele pode fazer isso de maneira parcial, permanecendo próximo de times e funções, tomando decisões, sem realmente assumir que faz isso.
- Privilégio de falar bullshit e ser recompensado por isso. O que as organizações esperam é que um CEO atue no nível estratégico. E isso é a licença final para os diretores e diretoras falarem coisas que podem ser classificadas como bullshit, ou seja, frases sem significado específico, apenas com a impressão de causar um impacto. Não é sobre mentir, mas desconsiderar se o que está falando é verdade, mentira ou faz sentido. Tudo é dito com o objetivo de causar uma impressão. Daí surgem declarações como: “no próximo ano nosso foco será crescer de maneira exponencial, colocando nossos clientes no centro, sem perder nossa capacidade de inovar.” Entendeu? Não tem nada para ser entendido, é pura bullshit. O privilégio aumenta mais ainda, quando a pessoa é recompensada por ser um boa faladora de bullshit.
Esses privilégios são potencializados ou tem seu efeito multiplicado quando encontram com os privilégios que advém de outras estruturas de nossa sociedade que foram historicamente construídas ou fortalecidas. Eu me encaixo perfeitamente em várias categorias que herderam muitos privilégios, sou homem, branco, cis, hetéro, nasci em um bairro de classe média de São Paulo, etc.…
Mas e aí?
Um ponto preciso deixar bem claro para você que é CEO, diretor(a) ou ocupa hoje uma posição semelhante. Não é sua culpa existirem todos ou vários desses privilégios que listei acima. Posso até dizer que de alguma maneira você merece ser tratado(a) dessa maneira. Afinal, são essas as regras do jogo que estavam aí antes de você nascer. Mas é responsabilidade sua lidar com a incompatibilidade desses privilégios com a autogestão, caso você opte por seguir esse caminho. A questão é o que você vai fazer a respeito.
O que acredito ser um bom caminho para organizações é apostar no uso de tecnologias sociais como a O2. Pois já oferecem uma linguagem para criar e adaptar acordos sobre expectativas e autoridade, ou seja ajuda a esclarecer quem pode fazer o que é o que é esperado de cada pessoa. Com esses acordos explícitos vai ficando cada vez mais fácil as pessoas não aceitarem esses privilégios como algo dado e imutável. É um processo que demanda dedicação e seriedade, mas é muito recompensador.
No processo de adoção de práticas de autogestão, não acho difícil as pessoas assumirem responsabilidades e exercitarem sua autonomia. O mais difícil é abrir mão de privilégios tão comuns e que são legitimados pela nossa sociedade e cultura. Como é para você esse processo?