O funcionário marca “5” no formulário da pesquisa de engajamento e segue em frente. Mas o que esse número realmente significa? Por trás dessa aparente objetividade matemática, esconde-se uma complexa teia de percepções, sentimentos e experiências que nenhum algoritmo consegue capturar plenamente. À medida que as organizações mergulham cada vez mais fundo no oceano dos dados, surge uma pergunta incômoda: estamos realmente pesquisando o que importa, ou apenas o que é conveniente pesquisar?
As empresas hoje investem fortunas em sofisticadas ferramentas de análise, querendo transformar conceitos intangíveis como cultura e clima organizacional em gráficos coloridos e dashboards elegantes. Entre tantos números, os comentários qualitativos – quando existem – são frequentemente relegados a campos opcionais, pequenas ilhas de texto em um mar de métricas. Esta obsessão pela quantificação, embora compreensível, pode estar nos levando por um caminho perigosamente simplista.
Dizem por aí que você não pode gerir aquilo que não pode ser medido. Dizem…
Bom, se isso for verdade, então estamos todos em apuros, visto que a grande maioria das coisas que gerimos no nosso dia a dia são impossíveis de serem medidas. Além disso, essa dependência excessiva de pesquisas quantitativas costuma ser um sintoma de um problema maior: a falta de espaços e rituais que dêem vazão aos problemas percebidos pelos indivíduos dentro da organização.
Quero te convidar para uma análise crítica das abordagens de pesquisa que focam no quantitativo, explorando cinco problemas fundamentais que frequentemente passam despercebidos, mas que têm impacto significativo na forma como compreendemos e intervimos nas organizações. Mais do que apenas apontar problemas, vou propor caminhos alternativos para um mapeamento mais efetivo da paisagem organizacional.
Problema 1. A Ilusão da Objetividade
O primeiro problema fundamental reside em uma crença equivocada que permeia o pensamento organizacional contemporâneo: a ideia de que podemos acessar e medir diretamente fenômenos organizacionais complexos através de escalas numéricas. Esta é uma armadilha sutil, mas profundamente problemática.
Quando pedimos a uma pessoa para classificar em uma escala que vai do “Concordo” ao “Não concordo” (escala Likert) a afirmação “Tenho autonomia em meu trabalho”, existe uma suposição implícita de que estamos medindo “autonomia” como um fenômeno objetivo e quantificável. No entanto, o que realmente acontece é algo muito diferente: estamos captando uma expressão momentânea do sentimento ou da percepção daquela pessoa em relação àquela frase específica, naquele momento específico. Não tem nada de objetivo!
Compreender que essa subjetividade é inerente ao trabalho com organizações é essencial para navegar a complexidade dos sistemas sociais. Quando fazemos de conta que ela não existe, podemos cometer grandes erros. Vamos pegar um outro exemplo:
Na afirmação “Recebo feedback com frequência da minha liderança”, a resposta 5 na escala de 1-5 Discordo/Concordo não representa uma frequência de feedback, mas uma avaliação subjetiva que pode incluir a qualidade percebida das interações, a relevância do feedback para o respondente, e até mesmo a relação afetiva com a liderança. Do que a pessoa está falando, afinal? Pois é. Não dá pra saber.
E como veremos nos problemas abaixo, a coisa tende a piorar.
Problema 2. A Interpretabilidade Inconsistente
Se o primeiro problema já não fosse suficiente, temos ainda que lidar com uma segunda camada de complexidade: a interpretação que cada pessoa faz de uma mesma palavra ou frase pode variar drasticamente. E não estamos falando apenas de diferenças entre organizações – a interpretação pode mudar de time para time, de pessoa para pessoa e, mais intrigante ainda, a mesma pessoa pode interpretar a mesma frase de maneira diferente dependendo do momento.
Vamos voltar à nossa frase sobre autonomia: “Tenho autonomia em meu trabalho”. O que significa “ter autonomia”? Para um time pode ser a liberdade para escolher a ferramenta de trabalho, para outro time atuando no mesmo contexto, a autonomia significa poder definir a sua própria escala de trabalho.
E a questão do feedback? A frase “Recebo feedback com frequência da minha liderança” esconde uma infinidade de interpretações possíveis. O que é considerado feedback? Uma conversa informal no corredor conta? Um papo no chat da empresa? Apenas as reuniões formais de one-on-one? E o que seria “frequência” neste contexto? Para alguns, um feedback mensal pode parecer frequente, enquanto para outros, mesmo um feedback semanal pode parecer insuficiente.
O mais surpreendente é que a interpretação que uma pessoa faz pode mudar depois de alguns meses e por motivos diversos e não revelados na pesquisa. O conceito de autonomia pode ter mudado, a pessoa pode ter passado por alguma experiência que a fez entender melhor o que seria ter autonomia no trabalho, tornando ela mais crítica e exigente fazendo com que a avaliação piorasse.
Este é um atributo central em sistemas sociais que é conhecido como intersubjetividade. Além de ter que lidar com a natureza subjetiva dessas pesquisas, temos que levar em consideração também que cada indivíduo carrega sua própria subjetividade consigo.
Esta variabilidade na interpretação torna extremamente problemático comparar respostas entre diferentes grupos, pessoas ou mesmo acompanhar mudanças ao longo do tempo. Quando observamos uma variação nos resultados de uma pesquisa para outra, como podemos saber o que mudou? Será que a pessoa está mais engajada, e por isso fez avaliações piores, já que agora se importa com o ambiente e com o resultado da organização, ou será que algo piorou no ambiente?
Problema 3. As Intenções Não Reveladas
E chegamos ao terceiro problema, que torna a situação ainda mais complexa: as pessoas que respondem às pesquisas podem ter intenções muito diversas e, frequentemente, ocultas de quem elaborou o questionário. Este é um aspecto raramente discutido, mas que pode invalidar completamente os resultados de uma pesquisa organizacional.
Vamos começar pelo mais óbvio: o medo. Mesmo em pesquisas supostamente anônimas, muitas pessoas não se sentem seguras para expressar suas verdadeiras opiniões. Imagine alguém respondendo “Tenho autonomia em meu trabalho” em um contexto onde recentemente houve demissões. Essa pessoa pode optar por marcar “Concordo” ou “Concordo Totalmente” não porque realmente sente que tem autonomia, mas por receio de que uma resposta negativa possa ser interpretada como uma crítica à liderança.
Mas o problema vai além do medo. As pessoas podem usar as respostas para enviar mensagens indiretas sobre outras questões que as incomodam. Por exemplo, um profissional que está insatisfeito com seu salário, mas não encontra no questionário perguntas específicas sobre remuneração, pode expressar sua insatisfação dando notas baixas em outras questões, como a do feedback. A resposta “Discordo Totalmente” para “Recebo feedback com frequência da minha liderança” pode não ter nada a ver com a frequência de feedback, mas ser uma forma de protestar contra outras questões não abordadas na pesquisa.
Há ainda situações em que as pessoas simplesmente não se identificam com as perguntas ou não acreditam que elas se aplicam ao seu contexto. Quando isso acontece, as respostas podem ser dadas de maneira aparentemente ilógica ou inconsistente. Um colaborador pode marcar “Não concordo nem discordo” não porque está neutro em relação ao tema, mas porque considera que aquela pergunta não faz sentido para sua realidade de trabalho.
Problema 4. Informações Não Acionáveis
E aqui chegamos ao quarto e penúltimo problema, que talvez seja o mais frustrante de todos: as informações coletadas através dessas pesquisas quantitativas raramente são úteis para o desenho de ações efetivas de melhoria. Isso acontece porque os dados coletados estão organizados em categorias e atributos tão amplos e abstratos que se torna praticamente impossível identificar o que realmente precisa ser modificado.
Vamos voltar aos nossos exemplos anteriores. Suponha que em uma pesquisa de clima, a afirmação “Tenho autonomia em meu trabalho” receba uma média baixa em um determinado departamento se comparado a outro. O que exatamente isso significa? Será que existe essa diferença, ou ela é criada pelos fatores anteriores? Que ações devem ser tomadas? Aumentar a autonomia, mas em qual aspecto específico? Na definição de horários? Na escolha de ferramentas? Na priorização de tarefas? Na definição de métodos de trabalho? Sem essa granularidade, qualquer intervenção se torna um tiro no escuro.
O mesmo acontece com o feedback. Se a média for baixa para “Recebo feedback com frequência da minha liderança”, que ação deveria ser tomada? Instruir os líderes a darem mais feedback? Mas que tipo de feedback? Em que momentos? Sobre quais aspectos? Será que o feedback é o caminho ou existe aqui um erro na própria definição do problema?
Essa falta de acionabilidade das informações cria um ciclo vicioso perigoso: a organização investe tempo e recursos em pesquisas que geram dados que não podem ser traduzidos em ações concretas de melhoria, ou geram ações desastrosas, como passar para cada gerente todos os dados da pesquisa com seu time, gerando ruído, confusão e diminuindo a confiança no anonimato, como as coisas não melhoram uma nova pesquisa é aplicada.
Problema 5. Demandas por planos de ação
Quando a pesquisa é sobre cultura, é comum o RH ficar com o abacaxi para descascar. Sem muita clareza de como abordar os problemas que não estão claramente descritos nos resultados da pesquisa, o RH costuma montar um plano de ação que inclui:
- Revisão dos valores e comportamentos desejáveis;
- Treinamento dos líderes sobre esses valores e outros atributos da cultura desejáveis.
Repare que os atributos abstratos que foram “medidos” agora são revistos em sessões onde se gasta muito tempo discutindo onde colocar uma vírgula ou se “integridade” deveria ser colocada no lugar de “honestidade”. Os treinamentos não seguem uma linha muito diferente.
No caso de pesquisas de clima anual ou aquelas frequentes, chamadas de pesquisa pulse/pulso, é comum a liderança imediata receber as respostas ou o compilado do seu time. Também é comum ela ser cobrada para que faça um plano de ação. Só que todos os problemas já listados sobre a coleta desses dados, são ignorados ou desconhecidos, já vi muitas vezes um gestor ser cobrado por mudanças nas casas decimais de indicadores presentes na ferramenta.
Muitos líderes tentam conduzir sessões de escuta com os times para entender o que está acontecendo e o porquê dos números estarem daquele jeito, gerando uma dinâmica estranha onde alguns estão tentando entender e outros fingindo que não entendem o resultado.
Os respondentes têm seus motivos para colocarem cada valor no formulário, mas não costuma existir um ambiente seguro e de diálogo para tratar daquilo que é importante. Pelo contrário, as pessoas que trouxeram comentários críticos ficam com medo de serem identificadas. Como resultado, problemas reais permanecem não endereçados, a confiança na utilidade das pesquisas diminui, e a participação nas próximas edições tende a cair ou se tornar ainda mais enviesada.
O mais preocupante é que esse tipo de pesquisa pode criar uma falsa sensação de que a organização está “ouvindo” seus colaboradores e “medindo” seu clima ou cultura organizacional, quando na verdade, está apenas coletando números que ao invés de gerar insights e mudanças positivas, acabam gerando ruídos e frustração com todo o processo.
Em busca de outros caminhos
Após examinarmos os problemas fundamentais das pesquisas quantitativas no contexto organizacional, surge naturalmente a questão: qual seria então o caminho mais adequado? Como podemos desenvolver uma compreensão mais profunda e significativa do clima e da cultura organizacional? A resposta não está em abandonar completamente as ferramentas quantitativas, mas em posicioná-las dentro de uma abordagem mais ampla e consciente da complexidade inerente às organizações.
- Invertendo a Pirâmide: O Qualitativo como Base
O primeiro passo é reconhecer que a pesquisa qualitativa deve ser o fundamento de nossa compreensão organizacional, não um complemento opcional. Quando falamos em pesquisa qualitativa não estamos falando de um espaço para comentários em algum formulário. Estamos falando em conversas profundas, entrevistas semi-estruturadas individuais que são posteriormente processadas e observação de reuniões e interações regulares. Essas abordagens requerem o uso de metodologias e técnicas que infelizmente não vou abordar nesse artigo.
Quando colocamos o qualitativo em primeiro plano, conseguimos:
- Capturar nuances e contextos que números jamais poderiam expressar
- Entender as diferentes interpretações que as pessoas dão para conceitos aparentemente simples
- Identificar temas emergentes que não teríamos pensado em incluir em um questionário fechado
- Em Busca de Narrativas Específicas e Acionáveis
Um dos aspectos mais poderosos da pesquisa qualitativa é sua capacidade de coletar narrativas específicas e granulares. Em vez de perguntar sobre “autonomia” de forma genérica, podemos explorar histórias concretas:
- “Me conte sobre uma situação recente em que você precisou tomar uma decisão importante no trabalho”
- “Descreva um momento em que você sentiu que poderia ter contribuído mais se tivesse mais autonomia”
- “Quando você se refere a necessidade de alinhamento, conte uma história que ilustra essa necessidade de alinhamento?”
Estas narrativas nos fornecem insights muito mais ricos e acionáveis do que números em uma escala de 1 a 5.
- O Papel Complementar do Quantitativo
As ferramentas quantitativas não precisam ser abandonadas, mas devem ser utilizadas de forma mais consciente e focada:
- Como forma de validar hipóteses específicas que emergiram da pesquisa qualitativa
- Para acompanhar tendências em aspectos muito bem definidos e concretos
- Como ponto de partida para conversas mais profundas, não como conclusão
Afinal, você pode até esfriar dados quentes, mas jamais conseguirá esquentar dados frios.
- Desenhando Intervenções Informadas pela Complexidade
Com uma base mais rica de informações qualitativas e dados quantitativos focados, podemos desenhar intervenções mais efetivas:
- Evitar soluções universais: reconhecer que diferentes áreas e times podem precisar de abordagens distintas.
- Não jogar nas costas dos gestores imediatos ou do RH: as dores e problemas com múltiplas causas, e muitas delas estão fora da esfera de controle dos gestores imediatos ou do RH.
- Focar em experimentos pequenos e iterativos: em vez de grandes planos de ação, priorizar intervenções menores que possam ser ajustadas com base no feedback.
- Criar espaços de diálogo: estabelecer fóruns regulares onde as pessoas possam compartilhar experiências, levantar problemas e propor soluções.
- Uma Abordagem Sistêmica para Mudança Organizacional
Em vez de congelar a responsabilidade em cargos específicos, é fundamental adotar uma visão sistêmica que reconheça como diferentes elementos da organização se influenciam mutuamente:
- Compreender padrões de interação: mapear como diferentes áreas, processos e práticas se conectam geram as narrativas que foram coletadas.
- Identificar pontos de intervenção no sistema e não procurar culpados: reconhecer pontos do sistema onde intervenções podem gerar impactos positivos mais amplos.
- Distribuir a capacidade de ação: criar mecanismos para que mudanças possam emergir de diferentes pontos da organização, não apenas do RH ou do gerente que agora se vê ameaçado pelo resultado de uma pesquisa.
- Cultivar diversidade de perspectivas: valorizar diferentes pontos de vista e experiências no desenho e implementação de mudanças.
A chave para uma compreensão mais profunda e acionável do clima e da cultura organizacional não está em encontrar a ferramenta perfeita de medição, mas em desenvolver uma abordagem mais consciente e integrada. Isso significa abraçar a complexidade em vez de tentar simplificá-la excessivamente, valorizar narrativas específicas em vez de métricas genéricas e criar espaços para diálogos em vez de depender apenas de questionários padronizados.
Quanto mais nossa abordagem de pesquisa e intervenção refletir essa realidade complexa e interconectada, mais efetivos seremos em criar ambientes de trabalho significativos e produtivos.
Se você quiser tentar novos caminhos na sua próxima pesquisa, fala com a gente.
Referências bibliográficas
MARTIN, Joanne. Organizational culture: Mapping the terrain. Sage publications, 2001.
CHATMAN, Jennifer A.; O’REILLY, Charles A. Paradigm lost: Reinvigorating the study of organizational culture. Research in organizational behavior, v. 36, p. 199-224, 2016.
HOFSTEDE, Geert et al. Measuring organizational cultures: A qualitative and quantitative study across twenty cases. Administrative science quarterly, p. 286-316, 1990.
BELLOT, Jennifer. Defining and assessing organizational culture. In: Nursing forum. Malden, USA: Blackwell Publishing Inc, 2011. p. 29-37.
SCHNEIDER, Benjamin; EHRHART, Mark G.; MACEY, William H. Organizational climate and culture. Annual review of psychology, v. 64, n. 1, p. 361-388, 2013.