Vivemos em uma era dominada por dados. Grandes conjuntos de dados quantitativos são coletados e analisados para gerar insights que orientam decisões em negócios, governos e a vida cotidiana. No entanto, embora os dados quantitativos sejam incrivelmente valiosos, eles têm limitações. Eles falham em capturar as complexidades qualitativas e os aspectos subjetivos da experiência humana e dos sistemas sociais. É aí que entra o conceito de “Warm Data”.

Warm Data, ou dados quentes, refere-se a informações contextuais sobre inter-relacionamentos que formam um sistema complexo. Em vez de reduzir fenômenos sociais a métricas, Warm Data busca fortalecer e comunicar a rica ecologia de conexões dentro de sistemas sociais. O conceito foi desenvolvido por Nora Bateson e outros do Instituto Bateson Internacional como uma maneira de equilibrar o foco contemporâneo em big data.

Dados Frios vs Dados Quentes

Dados quantitativos ou “frios” têm um papel importante a desempenhar. Eles nos permitem detectar padrões, medir mudanças e fazer previsões baseadas em correlações estatísticas. Porém, quando aplicada de forma reducionista, a lente quantitativa apresenta limitações:

  • Reduz pessoas e comunidades a caraterísticas homogêneas, obscurecendo diversidade e singularidades.
  • Simplifica excessivamente experiências multidimensionais em números e categorias limitados.
  • Descontextualiza fenômenos de seus ambientes vivos, perdendo interconexões.
CaracterísticaDados FriosDados Quentes
TipoQuantitativosQualitativos
FonteMedições e EstatísticasDiálogos, Histórias e Relações
ContextoObjetivoSubjetivo
FocoMétricas e categoriasExperiências e relacionamentos
RigorPrecisãoAmbiguidade
Elaborado pelo autor.

Esta abordagem procura equilibrar e complementar dados quantitativos, incorporando aspectos relacionais e qualitativos. Alguns exemplos:

  • Dados frios: Taxas de abandono escolar em um estado
  • Warm Data: Histórias dos alunos sobre seus desafios, sonhos e relações na escola
  • Dados frios: Desempenho de vendas trimestral de uma empresa
  • Warm Data: Histórias dos vendedores sobre atritos com outros departamentos e satisfação no trabalho

Aqui nós buscamos capturar essas nuances incorporando múltiplas perspectivas de diferentes contextos. Em vez de concentrar em pontos de dados isolados, mapeamos as interconexões dentro de sistemas sociais. Isso inclui ambiguidades, mudanças ao longo do tempo e padrões que só surgem olhando através de lentes múltiplas. Esta abordagem é feita por meio de um processo colaborativo e dialógico.

Design Organizacional Anti-Positivista

A perspectiva de Warm Data pode ser aplicada no design organizacional para transcender visões positivistas focadas em leis gerais do comportamento humano e incorporar as complexas dimensões subjetivas da experiência dos trabalhadores. Isso envolve coletar dados quentes por meio de diálogos profundos e análise dialética das contradições e lutas dentro do sistema organizacional. Em vez de tratar os trabalhadores como recursos e números, essa abordagem honra suas identidades multifacetadas.

Ao utilizar esta abordagem podemos :

  • Mapear aspirações: conduzir diálogos apreciativos para entender os anseios e talentos únicos dos membros da equipe.
  • Revelar suposições: identificar pressupostos não questionados que limitam a organização e abrir para novas possibilidades.
  • Entender motivadores: explorar diferentes razões e contextos por trás de aparentes conflitos interpessoais.
  • Projetar espaços colaborativos: redesenhar políticas internas, rituais, processos de tomada de decisão e tudo que envolve relações entre as pessoas dentro da organização.

Características fundamentais

  1. Múltiplas descrições – ilustrar processos e contextos de interdependência por meio de diversas perspectivas.
  2. Busca por padrões – comparar histórias para identificar questões recorrentes.
  3. Paradoxos e inconsistências – identificar paradoxos e mudanças ao longo do tempo inerentes a sistemas complexos.
  4. Holismo e reducionismo – equilibrar zoom in em detalhes com zoom out em contextos maiores.
  5. Responsabilidade epistemológica – incluir diversas percepções culturais e geracionais para ampliar os limites do observador.
  6. Dimensão estética – considerar elementos subjetivos como ritmo, humor e estética ao estudar inter-relacionamentos.

Aplicações

Esta abordagem tem sido aplicada em uma variedade de contextos:

Saúde: Para entender um paciente de forma holística, os profissionais de saúde precisam ir além de sintomas e exames diagnósticos. Eles precisam aprender sobre as relações familiares do paciente, cultura, trabalho, espiritualidade e outros aspectos do contexto de vida mais amplo. Isso ajuda a criar um tratamento personalizado.

Educação: Em vez de focar puramente em notas e testes padronizados, os educadores podem coletar dados quentes explorando como cada aluno aprende de forma única. Isso pode envolver observar seus interesses, estilo de aprendizado, auto-expressão e interações com colegas. Essas informações contextuais ajudam os professores a adaptar seu ensino.

Desenvolvimento comunitário: Agentes de mudança podem se envolver profundamente com uma comunidade para entender suas histórias, relações, valores e visões. Em vez de impor soluções externas, eles podem criar iniciativas ancoradas no conhecimento local.

Organizações: Empresas podem complementar pesquisas quantitativas com conversas, entrevistas e eventos focados em práticas de diálogo para entender as experiências reais de funcionários e clientes. Isso ajuda a identificar histórias sobre o que as pessoas gostariam que fosse diferente do que é hoje e permite identificar caminhos de menor resistência para a mudança.

Governo: Políticas públicas baseadas puramente em estatísticas agregadas correm o risco de negligenciar as necessidades de populações marginalizadas. Incorporar dados quentes de uma ampla gama de comunidades permite obter múltiplas perspectivas de uma determinada comunidade.

Sustentabilidade: Entender padrões complexos de interdependência entre humanos e natureza é chave para criar sociedades regenerativas. Warm Data oferece insights sobre como restaurar o equilíbrio dentro de ecossistemas.

Fundamentos

O conceito de Warm Data baseia-se em várias ideias fundamentais, incluindo:

  • Pensamento Sistêmico e Complexidade: A realidade é composta por sistemas complexos e inter-relacionados, não partes isoladas. Precisamos estudar os padrões de conexão.
  • Construtivismo social: Nossa compreensão da realidade é construída através da linguagem, relações e contexto cultural. Precisamos incluir múltiplas perspectivas.
  • Abordagem dialógica: O significado emerge através do diálogo e da colaboração intersubjetiva. O conhecimento deve ser gerado de forma participativa.
  • Epistemologia contextual: Fatos objetivos isolados oferecem uma imagem limitada. Precisamos situar o conhecimento dentro de contextos mais amplos.

Dois conceitos-chave que capturam a essência da abordagem Warm Data são symmathesy e aphonipoiesis.

Symmathesy

Symmathesy ou Symmathesia refere-se a processos de aprendizado mútuo e calibragem contextual dentro de sistemas complexos. Trata-se de um neologismo criado por Nora Bateson combinando as palavras gregas sym (junto), mathe (aprender) e synthesis (colocar).

Por exemplo, uma floresta possui symmathesia quando árvores, solo, animais e clima se adaptam uns aos outros através de interações contínuas. Da mesma forma, uma organização entra em symmathesia quando os membros sintonizam seus ritmos de trabalho, estilos de comunicação e funções complementares. 

Capturar essas dinâmicas fluidas de aprendizado mútuo é o cerne da abordagem Warm Data. Em vez de congelar a realidade em momentos estáticos, Warm Data mapeia os padrões em evolução dentro de sistemas sociais a partir de dados transcontextuais e dinâmicos.

Aphonipoiesis

Outro conceito central é aphonipoiesis, referindo-se a como a vida coalesce em direção à vitalidade através de caminhos invisíveis. É outra palavra criada pela Nora, desta vez combinando raízes gregas para “não mostrar” e “produzir/criar”.

A ideia é que há uma sabedoria embutida dentro de sistemas vivos que guia seu crescimento e desenvolvimento de maneiras que não podem ser totalmente explicadas por meio da lógica consciente. Assim como as raízes de uma árvore se espalham sob o solo, os padrões de conexão dentro de sistemas complexos são parcialmente obscuros.

Warm Data busca mapear os contornos visíveis dessa ecologia oculta, elucidando os padrões que integram cada sistema. Isso nos permite trabalhar em harmonia com os fluxos inerentes ao sistema, em vez de impor uma abordagem de design fria e objetiva que busca uma estabilidade artificial que só existe no mundo das ideias.

Implicações para a Mudança Social

Ao revelar as texturas ocultas da experiência humana, Warm Data tem profundas implicações para impulsionar a mudança social e organizacional. Aqui estão algumas áreas-chave de impacto:

Relações sistêmicas: Warm Data pode ajudar a restaurar relacionamentos fragmentados entre indivíduos, comunidades e instituições orientando-nos para padrões de interdependência.

Agência compartilhada: Ao dar voz a perspectivas marginalizadas, Warm Data apoia a co-criação de soluções que emergem a partir da comunidade.

Inteligência Coletiva: Ao incorporar diversas maneiras de saber, Warm Data pode gerar inovações mais alinhadas com as necessidades do indivíduo, das comunidades e do planeta.

Adaptabilidade contextual: Mapear padrões fluidos habilita grupos e organizações a perceber e responder de forma ágil e prática.

Mudança transformadora: Iluminar inter-relacionamentos ocultos pode catalisar mudanças profundas em paradigmas e sistemas.

Processo Dialógico

Uma característica central dos dados quentes é que eles não podem ser coletados passivamente. Requer um processo ativo de diálogo e investigação apreciativa entre os participantes do sistema.

Perguntas abertas e profundas são feitas para explorar vivências, valores, relacionamentos, padrões e interdependências. Esse processo intersubjetivo de compartilhar e interpretar experiências gera insights impossíveis de serem obtidos via análises quantitativas isoladas.

Rigor baseado em Ambiguidade

Diferentemente de dados quantitativos precisos, o Warm Data lida necessariamente com ambiguidade e incerteza. Isso porque sistemas humanos são intrinsicamente fluidos, contraditórios e subjetivos.

Em vez de tentar eliminar essa ambiguidade, desenvolvemos uma rigorosa capacidade de explorá-la profundamente para revelar padrões sutis e inconvenientes verdades sobre a complexidade dos sistemas.

Conclusão

O desafio de lidar com sistemas complexos é às vezes comparado à hidra mitológica: quando um “problema” é resolvido isoladamente, novos problemas e consequências imprevistas tendem a emergir, como as muitas cabeças regenerativas da hidra. Da mesma forma, tentativas reducionistas de “consertar” partes de sistemas intricadamente conectados frequentemente geram efeitos colaterais indesejados e novas manifestações dos mesmos padrões disfuncionais.

Dados quantitativos continuarão sendo essenciais para embasar decisões. Porém, complementá-los com dados quentes possibilita compreender e aprimorar organizações de forma sistêmica e contextual . Ao revelar padrões vivos de conexão por trás dos números frios, podemos cultivar todo o potencial das experiências humanas dentro da sociedade e nas organizações.

Aqui na Target Teal nós temos uma abordagem de pesquisa qualitativa baseada em múltiplas perspectivas focada em dados quentes. Para conhecer mais visite a página do Mapa de Tensões.

Em resumo, o conceito de Warm Data oferece uma lente poderosa para todos aqueles que buscam compreender e transformar a vida social.  

UM CONVITE

Nós não acreditamos em soluções milagrosas para problemas complexos. Intervimos na cultura escutando as pessoas e fazendo experimentos de intervenções. Os feedbacks recebidos a partir dessas intervenções geram novas histórias e novas intervenções, e assim a cultura se transforma. 

Não trabalhamos com produtos de prateleira e nem sempre vamos buscar agradar as lideranças com as nossas propostas. Sabemos que as mudanças geram desconforto. Afinal, se ninguém tá incomodado, é porque a transformação é só cosmética mesmo.

Chama a gente para uma prosa  pra conhecer nossa abordagem e faça nossos cursos. Se você quiser se aprofundar mais em pensamento sistêmico e aprender como nós lidamos com warm data no nosso trabalho eu recomendo o PESCA.

Referências

BATESON, Nora. “Warm Data.” International Bateson Institute, 2015, www.internationalbatesoninstitute.org/warm-data.

BATESON, Nora. “Warm Data”. Hackernoon, 2017. https://hackernoon.com/warm-data-9f0fcd2a828c