Já escrevi aqui no blog sobre estratégia em um mundo VUCA (volátil, incerto, complexo e ambiguo) e hoje mais do que nunca, sentimos um alto grau de “vucalidade”. Diante de tal percepção muitos abrem mão de olhar para o cenário e desistem de olhar para o futuro.
O que é irreal.
Qualquer organização ao longo de sua história precisa fazer apostas. Uso o termo aposta, inspirado pela Annie Duke no seu livro Thinking in Bets, que explica de maneira convincente porque faz sentido em um mundo VUCA tomarmos decisões com informações incompletas.
Agora chegamos no ponto crucial. Para nossas apostas (principalmente as grandes) terem mais chance de darem certo, precisamos estudar o cenário de negócios da qual a organização faz parte. E é muito difícil entender um cenário ou terreno sem um mapa.
Se olharmos para a tradição dos estudos de estratégia de guerra e geopolítica, podemos resgatar a íntima relação entre estratégia e um mapa. Mas temos um problema, no mundo dos negócios os modelos mais usados por estrategistas não servem como mapas.
A matriz SWOT é composta por quatro listas de características que muitas vezes se contradizem. As cinco forças de Porter, os 7S da McKinsey e a Matriz BCG são ferramentas que na melhor das hipóteses trazem um vocabulário que quando abusado se transforma em uma verborragia que esconde mais do que revela. Ao final temos um documento que descreve a estratégia de uma organização que pode ser resumido no diagrama abaixo:
Repare que quase não existe informação sobre o cenário ou terreno onde a estratégia acontece. E quando existe é só uma lista ou uma parágrafo confuso.
Incomodado com essa falta de ferramentas adequadas para construir um mapa do cenário de negócios, um ex-empreendedor chamado Simon Wardley começou a experimentar com conceitos inspirados nas diferentes traduções do texto Arte da Guerra de Sun Tzu. Surge o método Wardley Maps, que pode ser resumido no diagrama abaixo.
Mapas de Wardley é um processo de tomada de decisões estratégicas (liderança) com base no objetivo (“o jogo”), uma descrição do cenário competitivo (um mapa), as forças externas que atuam no cenário (clima) e o design de sua organização (doutrina).
Cada etapa desse processo te ajuda a ganhar insights e aumentar a qualidade de suas apostas. Mapear é um processo contínuo com um potencial infinito de iterações. O segredo não é fazer o mapa perfeito mas promover melhorias e aprender a cada versão. Vamos olhar cada uma das etapas.
Propósito
A primeiro coisa é clareza de propósito. Já falamos em outros lugares sobre esse tema, então deixo aqui dois artigos de referência:
Definindo propósito em sua organização
Um crítica ao uso inconsequente do propósito
Terreno
Desenhar o terreno é descrever o cenário em que sua organização e como ele pode evoluir ao longo do tempo. No método Wardley Maps, desenhamos como uma cadeia de valor em um gráfico que mostra a evolução dos elementos em relação a sua visibilidade ao usuário/cliente. Seguem os passos para você fazer seu primeiro mapa.
1. Escolha um usuário, cliente ou beneficiário
Alguém fora da organização que faz uso dos seus serviços ou produtos. Defina esse usuário. Se existem vários, escolha um para começar. Você até pode construir um mapa com vários usuários, só recomendo que comece de maneira mais simples.
2. Quais são as necessidades do usuário?
Um princípio fundamental no Mapas de Wardley é focar nas necessidades do usuário. Quando ele chega até você, ele está em busca de atender qual necessidade?
3. Qual é a cadeia de valor?
Liste todas as atividades que precisam acontecer para essas necessidades serem atendidas. Essas serão as atividades de primeira ordem. Agora lista as atividades que precisam acontecer para que as atividades de primeiro ordem aconteçam. Essas serão as suas de segunda ordem. Isso pode ser feito repetidamente até a granularidade que for interessante para o seu mapa. Você precisa descobrir isso por tentativa e erro.
Para identificar quais atividades dependem umas das outras, conecte-as formando uma cadeia de valor que parece uma árvore com raízes.
4. Defina um estágio de evolução para cada componente da sua cadeia de valor
Cada atividade (componente) de sua cadeia de valor evoluiu por conta da competição entre as forças de oferta e demanda. Durante a evolução as características desse componente também mudou ao longo de um contínuo, começando quando era algo incerto até algo conhecido, uma commodity por exemplo. Veja na tabela abaixo:
A colocação de um componente no espectro da evolução de componentes indica a maneira mais econômica de abordá-lo: terceirizar, comprar ou construir do zero? O fato é que a maioria das organizações abordará cada componente de maneira a corresponder ao seu próprio viés interno. Em outras palavras, se você gosta de construir coisas, provavelmente tentará construí-las. Se você gosta de comprar, provavelmente tentará comprar. E se você gosta de terceirizar, definitivamente tentará terceirizar. Isso pode ser caro e dispendioso, por isso vale tratar cada componente de maneira adequada.
Para ilustrar essa ideia, veja o caso da torradeira de Thomas Thwaites, nesse TED:
Não se preocupe no início em definir uma posição exata do usuário e suas necessidades, foque em posicionar no gráfico os componentes de maneira aproximada.
Perguntas úteis para orientar esse posicionamento são:
- O quão evoluído esse componente (atividade) está?
- Como o mercado enxerga ou trata esse componente?
Preparamos um vídeo rápido de um exemplo didático para você entender como montar um mapa:
5. Faça uma rápida análise
Antes de avançar, já vale refletir sobre alguns pontos:
- Existem componentes que o setor em geral considera “commodities” que você não terceirizou?
- Existem componentes que o setor em geral considera “Produto” para os quais você não comprou um produto pronto para uso?
- Você está gerenciando algum componente da maneira mais difícil (por exemplo, construindo quando pode comprar)? E se sim, por quê?
- Em quais componentes você decidiu se concentrar e investir fortemente? Você está focado em algumas áreas ou está espalhado por muitas?
O Clima
Na abordagem do Wardley Maps, chamamos de Clima as forças externas agindo sobre o terreno. São os padrões (algo recorrente) que enxergamos a medida que o terreno se modifica.
Os dois primeiros padrões climáticos que descrevo, derivam de maneira óbvia da construção do mapa, o restante vale entender com calma.
Tudo evolui através da concorrência de oferta e demanda
Como tempo, tendo demanda e oferta os componentes caminham da esquerda para direita. No passado os primeiros parafusos eram feitos por artesãos, depois cada empresa tinha a sua linha de parafusos e só depois eles se tornaram uma commoditie.
As características dos componentes mudam à medida que as capacidades evoluem
Fácil observar as diferenças na tabela dos estágios evolutivos que está no texto acima.
Nenhum método ou ferramenta serve pra tudo
Devido a essas características de cada estágio, não existe um único método ou técnica aplicáveis em toda uma paisagem. Você precisa aprender a usar muitas abordagens e, assim, evitar a tirania de qualquer uma delas. Ágil, lean, seis sigma…
Eficiência permite inovação
Gênesis gera evolução que gera gênese. A industrialização de um componente permite que novos sistemas de ordem superior surjam através dos efeitos da componentização. Mas também permite que novos funcionalidades para produtos existentes apareçam ou até mesmo a evolução de outros componentes que não estavam mapeados.
A palavra inovação é usada para descrever todas essas mudanças desde a gênese de um nova atividade, a diferenciação de um algo existente ou uma mudança no modelo de negócios (por exemplo, mudança de produto para commodity). A evolução de um componente e sua oferta eficiente permitem a inovação de outros.
Novas formas de valor são criadas
É a gênese de novos componentes que possibilitam o surgimento de novas necessidades de usuários que criam futuras fontes de valor. Em muitos casos, os usuários desconhecem as necessidades futuras que possam ter.
Não temos opção, apenas evoluir
Em um ecossistema competitivo, a pressão para a adoção de uma mudança bem-sucedida aumenta à medida que mais a adotam. Isso é conhecido como efeito “Rainha Vermelha”, ou seja, você precisa se adaptar continuamente para se manter imóvel (em termos de posição relativa para os outros). A única coisa que ficar parado garantirá que você será ultrapassado.
Sucesso passado gera inércia
Qualquer sucesso passado com um componente tenderá a criar resistência à alteração desse componente. Existem muitas formas diferentes de inércia.Ao contrário da crença popular, não é a falta de inovação que prejudicou empresas como a Blockbuster e a Kodak, mas a inércia à mudança criada pelo sucesso do passado. Ambas as empresas ajudaram a desenvolver as indústrias futuras, mas sofreram nas mãos de seus modelos de negócios anteriores.
Valor futuro é inversamente proporcional a certeza
A gênese de um componente é inerentemente incerta, mas também é o ponto em que um componente tem seu maior valor futuro. Você tem que fazer apostas. À medida que o componente evolui, seu potencial de valor diferencial diminui à medida que se torna mais onipresente em seu mercado aplicável.
As únicas condições em que existe um componente bem compreendido e isento de riscos que não é onipresente e são de alto valor é quando existe alguma forma de restrição à concorrência, por exemplo uma restrição através de patentes ou monopólio.
Doutrinas
Na abordagem dos mapas de Wardley, chamamos de Doutrinas um conjunto de princípios de Design Organizacional que se aplicados, permitem que uma organização se torne mais adaptável e responsiva à mudanças externas ou diferentes jogadas (decisões estratégicas).
Aqui a Target Teal possui uma expertise enorme. E resolvi listar as principais Doutrinas descritas pelo Simon Wardley e já sugerir com um artigo aqui no nosso blog.
- Foque nas necessidades do usuário
- Seja transparente
- Questione premissas
- Remova duplicatas e vieses
- Use métodos apropriados
- A disposição das pessoas é importante (conceitos de Pioneer, Settler, Town planner)
- Pense em times pequenos
- Estratégia como um processo iterativo, não linear (cruzar o rio sentindo as pedras)
- Distribua autoridade
- Não existe uma única cultura
- Cuide dos erros
- Design evolutivo
Um alerta importante feito pelo Simon é que sua organização precisa fazer a lição de casa. Não adianta criar ou pensar em estratégia quando essas doutrinas são ignoradas ou mal aplicadas em sua organização. Pare e evolua seu design organizacional antes de avançar no método.
Liderança
Dado o propósito, o terreno, o clima e as doutrinas, precisamos tomar uma decisão bem informada sobre qual estratégia é apropriada para esse contexto. Preciso fazer um parênteses grande aqui.
Tradicionalmente uma decisão estratégica é enviar pessoas para cumprir um objetivo. Se fizermos X, atingiremos objetivo Y. Um caminho alternativo é examinar ou promover as condições para que certas consequências sejam inevitáveis.
“O primeiro caminho é mais tático, o segundo é das grandes estratégias”.
Exemplo:
- Precisamos acelerar a evolução do componente Y.
- Que condições precisam estar presentes para que isso ocorra?
Nesse momento o Simon propõe a descrição e categorização de estratagemas ou jogadas. Esses estratagemas não são universais, dependem muito do contexto. Entender e dominar cada um deles, envolve uma longa curva de aprendizado.
Ele identificou 61 jogadas ou estratagemas e classificou nos 11 tipos abaixo:
1.Acelerador – Permite acelerar o processo de evolução de um componente
2.Desacelerador – Permite que você desacelere o processo de evolução de um componente
3.Lidando com lixo tóxico – Alguns componentes da sua cadeia de valor serão irrelevantes por conta da evolução futura; existem inúmeras maneiras de lidar com isso, especialmente porque a inércia criada pode se tornar tóxica.
4.Ecossistema – Usando outras pessoas para ajudar a alcançar seus objetivos.
5.Percepção do usuário – O objetivo é influenciar a visão do usuário final.
6.Ataque – Maneiras de atacar uma mudança de mercado
7.Defesa – Maneiras de proteger sua posição no mercado
8.Concorrência – Como lidar com a oposição se você não puder trabalhar com ela
9.Mercado – Jogadas comuns no mercado
10.Veneno – Formas de impedir que outras pessoas joguem com um futuro mercado. Se você não pode capturar, envenene-o.
11.Posicional – Formas gerais de atuar em um futuro mercado
Um alerta importante, alguns estratagemas são eticamente questionáveis. Você pode até classificar cada um usando a mesma lógica das Tendências ou Alinhamento dos jogos de RPG. Porém, mesmo sendo uma jogada que você não fará uso, é importante aprendê-la para se defender caso você seja vítima.
Você pode encontrar a lista dos mais de sessenta estratagemas aqui.
Evoluindo o mapa
Essa não é uma ferramenta simples de aprender e aplicar, mas sua sofisticação e poder permitem que os praticantes insistentes continuem trabalhando na evolução dos seus mapas e consigam:
- Visualizar estratégias atuais e encontrar falhas
- Comunicar facilmente para outros praticantes suas premissas e hipóteses ao fazer apostas
- Prever cenários futuros prováveis no contexto que atuam
- Encontrar novas estratégias para conquistar mercados futuros
- Romper a inércia que impede sua organização de se adaptar frente às mudanças do mercado
Uma ótima fonte de conhecimento sobre o método é o livro do Simon Wardley que está publicado abertamente nesse blog.
Se você tem interesse em aprender na prática, nós na Target Teal oferecemos workshops sobre o método e teremos um prazer em bater um papo.
Não damos conselhos de qual estratégia sua empresa deve seguir, nosso objetivo é ensinar uma abordagem que permite você tomar decisões estratégicas mais bem fundamentadas.