TL;DR: Conforto é bom? Sem dúvida. Conforto faz bem? Depende. Em especial os pequenos confortos, cujo custo unitário é bem menor do que o custo coletivo.
Quero mudança, mas não o desconforto em mudar
Certa vez uma pessoa que trabalhava numa organização sem chefes me disse que gostaria de receber um aumento salarial.
Ela me disse que via isso como um reconhecimento de seu trabalho e também como algo justo diante de seu valor de mercado. Eu disse que parecia ótimo e perguntei se ela pretendia aumentar o próprio salário, dado que essa era uma realidade possível naquela empresa.
A pessoa me disse então que se sentia desconfortável com essa possibilidade. Acreditava que havia pessoas que precisavam desse dinheiro (sempre escasso) ainda mais do que ela que já possuía um salário maior que boa parte das demais. Ela me disse também que esse assunto provavelmente não soaria bem para essas pessoas e que tinha receio de imaginar como seria julgada em função disso. Além do que, decidir aumentar o próprio salário conta uma história diferente do que receber um aumento salarial dado por outra pessoa.
Eu disse que parecia haver muitas coisas que ela valorizava naquela fala. Parecia que valorizava coerência ao buscar um salário equiparado com o mercado; também valorizava um equilíbrio financeiro maior quando falava sobre a desigualdade salarial interna; havia também uma necessidade de reconhecimento quando assumia a diferença entre dar um aumento para si mesma ou para outra pessoa; e ainda, a necessidade de pertencer ao grupo em vez de ser julgada por ele.
Também disse à ela que qualquer que fosse a sua escolha, provavelmente estaria priorizando algo em detrimento a outro algo também importante. Então ela me devolveu dizendo que esse era justamente o problema. Que não gostaria de ter que escolher e que não parecia certo ter que se preocupar com isso. Entendia que alguém deveria fazer isso em seu lugar, como sempre ocorreu em sua carreira.
Respondi que eu reconhecia em sua fala a expectativa de que alguém, que não ela mesma, assumisse o desconforto em renunciar a algo. O desconforto por exemplo em ter que priorizar entre coerência, igualdade social, tranquilidade, reconhecimento etc. Disse à ela que eu não tinha a intenção de amenizar seu desconforto. Não via como poderia ser positivo ficar confortável diante de uma escolha como essa. Diante da impossibilidade de cuidar ao mesmo tempo de tantas coisas importantes. Só poderia estar confortável quem não tivesse parte alguma nisso e, ao não tomar parte, também não assumisse nenhuma responsabilidade por qualquer desdobramento dessa escolha.
Assumindo a escassez do dinheiro num mundo desigual como o nosso, quando alguém recebe um aumento salarial, outra pessoa deixa de receber. Da mesma forma que quando alguém compra algo, o dinheiro sai de um “bolso” e vai para outro, ainda que alguns bolsos sejam bizarramente maiores que outros. Bem, essa história me ajudou a revelar pelo menos 2 coisas interessantes sobre mim e quem sabe sobre você também…
1. Quanto mais conforto, melhor.
Ainda que de forma bem pouco consciente, estou fazendo escolhas constantes sobre Conforto vs. Alguma Outra Coisa. Nessa conversa que vivi, parecia que havia um dilema entre Conforto (não ser julgado como inadequado) vs. Justiça (meu salário num patamar razoável de mercado com minhas responsabilidades e entregas).
No exato momento em que escrevo este texto, por exemplo, estou silenciosamente avaliando se continuo escrevendo para honrar minhas reflexões ou se vou preparar o almoço e honrar meus momentos em família.
É então que começo a perceber quão sofisticado e sutil é o sistema que batizei de Estratégias que Maximizam Conforto ou apenas EMCs. Sofisticado porque é um sistema que vai se otimizando com o tempo e sutil porque quanto menos percebo essas estratégias, quanto menos percebo as renúncias que faço, menos energia eu gasto e mais conforto eu sinto. O conforto apesar de ser bom e gostosinho, nem sempre faz bem para mim ou para os contextos dos quais faço parte. Para avaliar isso é preciso entender qual a outra metade do binômio. O que é renunciado para que o conforto prevalesça.
2. Quanto menos me percebo prejudicando alguém, mais confortável me sinto.
As EMCs me parecem tantas vezes inofensivas porque sua relevância está diluída no tempo e no espaço. Não consigo imaginar como as micro escolhas que faço podem afetar substancialmente o meu entorno. Foi só um aumento salarial. Só uma piada. Só um jeito de falar. Só um toque. Só um silêncio. São apenas contribuições marginais. “Contribuição” porque cada uma dessas pequenas escolhas contribui para algo maior do que a escolha em si, como a desigualdade social, como a desumanidade institucional, como o machismo ou racismo estrutural ou a destruição do meio ambiente. “Marginal” porque essa contribuição é tão ínfima ou indireta diante das problemáticas da qual fazem parte que não percebo como uma coisa leva à outra. É quase como se não tivessem relação entre si. Só quase.
Estratégias que Maximizam Conforto
Mesmo trabalhando há anos com facilitação de grupos, autogestão e cultura; foi só recentemente que compreendi melhor as Estratégias que Maximizam Conforto. Essas estratégias são heurísticas, priorizações semi conscientes, que privilegiam a sensação de conforto pessoal em detrimento a outras variáveis importantes que afetam eu e os sistemas dos quais participo, como minha família, comunidade, organização e sociedade.
Algumas falas que me dão pistas das infinitas combinações possíveis:
Conforto > Coerência
“Sei que é péssimo mas só de imaginar o trampo de mudar isso, deixa pra lá!”
“Vou deixar aqui mesmo que alguém recolhe depois”
“Eu sei que não faz sentido, mas você sabe quem pediu né?”
Conforto > Segurança
“Só mais uma breja, depois procuro no Waze um caminho sem blitz.”
“Sei que é possível, mas não vai acontecer com a gente.”
“É óbvio que as pessoas sabem dos riscos.”
Conforto > Empatia
“Não chora, pensa que podia ser pior.”
“Discutir isso é perda de tempo. Vamos olhar pra frente.”
“Nossa, quanto mimimi…”
Conforto > Autonomia
“Prefiro que outra pessoa decida isso. Vai que não dá certo.”
“Não tô confortável com isso. A gente tem que fazer melhor.”
“Acho que isso é responsabilidade da empresa.”
Conforto > Clareza
“Não precisa descer nos detalhes. Todos sabem o que precisam fazer.”
“Não fico confortável em dizer isso. Não gostaria de ter problemas com eles.”
“Não precisa anotar, próxima pauta.”
Contribuições Marginais
Como descreve o psiquiatra inglês Iain McGilchrist em seu livro The Master and His Emissary: The Divided Brain and the Making of the Western World (tradução livre)
O modelo que nós escolhemos para usar e compreender algo determina o que encontramos.
De verdade considero a forma de perceber e lidar com as “contribuições marginais” um dos grandes problemas que temos pela frente enquanto humanidade. Estamos conectados em níveis inimagináveis e isso não seria realmente um grande problema se percebêssemos dessa forma.
Quando era pequeno e jogava xadrez com meus pais, ficava abismado em como eles antecipavam 3 ou 4 jogadas e eu, com sorte, antecipava apenas uma. A vida como fenômeno, extremamente mais complexa do que a combinação de jogadas possíveis do xadrez, é virtualmente impossível de antecipar. Ainda assim, desconfio que um aumento minúsculo e distribuído dessa capacidade de ver a relação entre as coisas, seja na recorrência ou profundidade das reflexões, já faria nossa existência dar um salto qualitativo.
Mais do que um desafio tecnológico, temos um desafio cognitivo pela frente. Como perceber a totalidade que emerge através de suas muitas partes? Que realidade surge a partir das ferramentas, modelos e estruturas que utilizamos? Parafraseando João Cabral de Melo Neto, que latifúndio é esse cuja parte te cabe?
Como lidar com isso?
Para McGilchrist, o sentido das coisas emerge de nosso engajamento com o Mundo e não de uma análise abstrata dele. Nesse sentido, parece necessário me engajar também com aquele outro algo geralmente eclipsado pelo conforto.
“Pô meo que chatice! Qual o problema de querer conforto, ainda mais nesse caos que vivemos?”
Pra você que está confortável, nenhum problema. Desde que você compreenda os treidófis que esse teu maindiséti proporciona, meo.
Já para quem não vive o mesmo conforto que você, talvez existam vários problemas. Esse “caos que vivemos” surge inclusive a partir de muitas interações confortáveis protagonizadas por mim e por você. Nada terrível demais, nem importante demais, é claro. Apenas contribuições marginais.
Experimente começar a buzinar freneticamente num congestionamento ou empurrar as pessoas próximas numa aglomeração e verá isso na prática. Lembre das pessoas que fizeram parte dos clusters de transmissão da Covid-19, onde somente 10% ou 20% foram responsáveis por 80% dos contágios. Lembre dos vieses inconscientes que se por um lado facilitam nossa vida otimizando processos individuais de atenção, compreensão e decisão; por outro lado, contribuem para toda a sorte de desgraça do Mundo.
Blá blá blá Zona de Conforto blá blá blá
Tendi meo! Quer dizer que pra gente ser foda tem que sair da zona de conforto, né?
Não fera, quero dizer o oposto disso. Esse não é um texto sobre autoajuda ou para vender cursos. Minha visão é que negar o conforto a priori pode ocultar ainda mais as estratégias que maximizam conforto. E esse é o principal problema para mim. Meu convite vai numa direção diferente que é enfrentar de forma corajosa as próprias escolhas:
- Assuma que você, como eu, busca conforto de forma intrínseca e recorrente. É um impulso.
- Entenda o que esse conforto representa em cada contexto. Qual é o custo disso para você, para as outras pessoas e para os sistemas dos quais você faz parte?
- Assuma responsabilidade pela escolha que você fizer, seja ela qual for. Talvez tenha sido “uma escolha de muitas pessoas”, “uma escolha terrível”, “praticamente não tinha outra opção”, etc. Ainda assim, assuma sua parte nisso.
- Avalie as consequências disso em relação à sua intenção e necessidades iniciais. Refine seu processo de escolha.
- [opcional] Compartilhe esse texto com aquelas pessoas que parecem ter dificuldade em assumir a responsa pelo que fazem ou com aquelas que vão se sentir vingadas por isso 😈🔥
Se quiser ajuda para identificar as estratégias que maximizam conforto em sua organização ou conversar mais sobre as contribuições marginais, manda um email pra gente. O desconforto é por nossa conta <3
[…] das dinâmicas disfuncionais que os grupos se encontram estão relacionadas com algum tipo de busca de conforto. Por isso, por trás de quase todas as “revelações” que a pessoa que facilita pode […]