Na dança de salão em que se dança em par, convencionalmente,  um homem conduz os passos, e a mulher é conduzida. O que se considera uma dança bem sucedida? O cavalheiro passar claramente os sinais de condução (em geral, pelo tato e com sinais visuais) e a dama, interpretá-los corretamente e executá-los de forma bela. 

Algumas das habilidades necessárias para o cavalheiro são a criatividade na invenção dos passos, clareza na sua comunicação, capacidade de dar estrutura para a dama executar os movimentos, ser o ponto de referência para onde seu par sempre volta. 

E, para a dama, a capacidade de ler os sinais enviados pelo seu par, capacidade de executar os passos, ter charme, voltar sempre para a referência, que é o cavalheiro. 

O prazer da dança se dá nessa interação em fina sintonia, condução e execução, em que a comunicação entre os dois está acontecendo e se tornando uma dança. Como se pequenos passos fossem palavras, e dança, um texto, ou melhor, um poema.

Dançar é como escrever um poema a dois.

Recentemente, surgiu uma variação a este formato, que é a dança a dois com condução compartilhada. Neste tipo de dança, não existe uma pessoa específica que irá sempre conduzir e outra que irá sempre ser conduzida. As duas podem conduzir e ser conduzidas. 

Aliás, nem sempre dança-se somente a dois, pode-se dançar em três, quatro pessoas, e assim por diante. E também há mais liberdade para a realização de passos, em que se pode incluir movimentos de vários ritmos (zouk, forró, salsa, ballet etc).

Como assim? :O

Se não há quem conduz e outro que é conduzido, como as pessoas se entendem?

A dança é como uma linguagem: alguns símbolos (formas de toque, sinais visuais) têm significados, que são interpretados por outra pessoa e executados de acordo. Na dança de salão convencional, justamente, a convenção é que o cavalheiro seja quem passe os sinais, e a dama, quem leia. Isso facilita as coisas? Sim, é o que se pensa, em geral. Se um irá sempre passar a mensagem, e o outro, sempre ler, acredita-se que isso poupe tempo, e facilite a interação. 

Pois bem, e se essa crença tida como verdade, fosse questionada? 

Algumas pessoas fizeram esse exercício, desafiando o senso comum, e perceberam o seguinte:

  • Quando há escuta verdadeira, mesmo que sem dizer nenhuma palavra, percebe-se a intenção do outro, e abre-se um espaço para uma possível condução, e, se o outro desejar, ser conduzido.
  • Para trocar essa condução, em um espaço de confiança, de consentimento (em que dizer “não” é possível), de escuta atenta e de presença, é muito mais simples do que pensamos. E orgânico.
  • Para a dama, conduzir pode ser um grande mistério e até um tabu. Parece algo muito difícil e fora de seu alcance.  E se, em vez de condução, chamássemos de…. convite? E se em vez de símbolos táteis, o convite fosse pelo próprio exemplo? Nesse cenário, “conduzir” é fácil e prazeroso, descobrem as damas. E os cavalheiros, que “ser conduzido” também é gostoso, e não indigno. 
  • Se um convida o outro para um movimento, por meio de seu próprio exemplo, o outro escolhe ou não entrar nessa sintonia. E pode alterá-la quando quiser fazer um convite para uma mudança. 
  • A mulher pode dançar com outra mulher, e o homem, com outro homem. A divisão tradicional dos papéis de gênero abre espaço para a liberdade, e para que todos possam praticar habilidades diferentes.

Mas os cavalheiros estão preparados para serem conduzidos, e as damas, para conduzir?

Se trocarmos condução por convite, fica mais fácil de entender, e há menos expectativa sobre essa ação. 

Não, as damas não estão habituadas a fazer o convite, e sim a serem conduzidas (sem tanto espaço para darem consentimento). Os cavalheiros também não estão habituados a serem convidados, e sim a conduzir (sem tanto espaço para pedir consentimento). 

Contudo, por experiência própria, em apenas uma tarde, aprendi a fazer o convite (“conduzir”), mesmo sem nunca ter feito isso antes. Basta mudar alguns combinados e abrir espaço para uma escuta atenta do outro.  E, surpreendentemente, descobri habilidades em mim que na dança não eram praticadas, como a da criatividade nos passos. 

Altere os combinados, abra espaço para a aprendizagem, abrace o “erro” e voilà! O milagre acontece. 

E se as damas não tiverem maturidade para conduzir?

A suposta falta de maturidade costuma ser a armadilha psicológica de defesa mais comum.  

Se a condução for a habitual da dança, realmente não é tão simples, e os homens costumam levar anos para aprender. 

Se alterarmos um pouco esse conceito de condução, e como ela é feita, puxarmos um pouco mais para oferecer o exemplo do que para a passagem de símbolos, tudo fica muito mais simples. Mas requer prática. E o que não requer prática, não é mesmo?

A grande questão é: será que você tem medo de abrir espaço para a prática, em que essa suposta “maturidade” possa se desenvolver?

Por que eu tentaria a condução compartilhada?

  • Para praticar habilidades diversas, além das praticadas habitualmente.
  • Para aumentar a criatividade, já que duas pessoas estarão criando, em vez de uma só. 
  • Para experimentar uma relação em que há muito espaço para consentimento. 
  • Para vivenciar uma situação de escuta verdadeira e de maior conexão com os outros.

Isso pode funcionar em outro lugar, mas aqui na minha escola de dança, não vai dar certo…

Acho engraçado essas coisas que funcionam para os outros, mas nunca para mim. 

Entendo o receio de tentar o novo. 

Além do mais, muita gente gosta da dança de salão convencional. Eu também gosto. Mas isso não me impede de experimentar outros formatos.

Para isso, talvez tenhamos que desafiar crenças muito arraigadas, tais quais: o homem é o maior, o forte, ele que tem que sustentar a dama; o papel da dama é o do charme; a dança só é bonita quando tem um homem e uma mulher; os ritmos nunca podem ser misturados; sempre tem que ter alguém conduzindo e outro sendo conduzido etc. 

E, para mim, a melhor forma de desafiar essas crenças foi experimentando. 

Agora pratico os dois tipos de dança: a convencional, com condução masculina, e a nova, com condução compartilhada. 

O engraçado é quanto mais pratico a compartilhada, mais me sinto conectada com quem danço, experimento mais satisfação e considero que esse formato faz mais sentido. E assim, aos poucos, ele vai se tornando o novo normal…

O que tudo isso tem a ver com as organizações?

Assim como na dança, nas empresas existem algumas crenças arraigadas. Por exemplo: a de que é necessário ter uma liderança forte para as coisas funcionarem; as pessoas precisam de gestão ou não irão trabalhar; um precisa mandar e outro obedecer etc. 

Toda vez que levamos o tema autogestão para as organizações, os receios que surgem são muito semelhantes aos que citei:

“As pessoas não vão se entender se cada um fizer sua autogestão…” 

“Os colaboradores não estão preparados para trabalhar sem um líder”.

Falta maturidade nas pessoas daqui.” 

“Pode funcionar nesses lugares que você falou, mas aqui, não vai funcionar….”

Qualquer sugestão de alteração do modo habitual de funcionar soa como heresia. 

Contudo, acredito que, da mesma forma que na dança podem haver outros formatos possíveis, nas empresas também. 

A dança a dois com condução do cavalheiro funciona? Depende do que você considera como “funcionar”, mas falando genericamente, sim. As pessoas dançam dessa forma. Fazem aulas, apresentações, saem para os bailes. 

Funciona? Depende do que é funcionar.

A dança a dois (ou com mais pessoas) com condução compartilhada funciona? Também. E funciona melhor em alguns contextos, como por exemplo, quando as pessoas querem praticar habilidades não habituais, quando querem experimentar uma situação de escuta verdadeira, quando querem se sentir mais conectadas etc. 

Da mesma forma, nas organizações acredito que o formato hierárquico e piramidal convencional funciona, quando se olham para alguns critérios. Porém, quando olho para nosso contexto, do século 21, acredito que a autogestão funcione melhor. Ela conversa muito mais com nosso contexto volátil, pois nela as mudanças ocorrem com maior agilidade e de forma mais orgânica, além de respeitar a motivação humana intrínseca de autodireção. 

Assim como na dança, nas organizações pode haver resistência para essa transformação

Experimentar o novo, com estruturas e processos que combinam melhor com a proposta, acredito que seja a melhor forma de fazer a transformação.