A Holacracia – um sistema de governança e operações para organizações autogeridas – ganhou a sua quinta versão esse ano. Depois de trabalharem alguns anos no desenvolvimento e gerarem muitas expectativas entre os fãs e entusiastas da autogestão a HolacracyOne finalmente fez o lançamento. E agora ela está oficialmente traduzida para português, o que torna tudo mais fácil para nós brasileiros. Neste texto vou apresentar as principais novidades dessa versão em comparação à versão atualmente usada pela maior parte das organizações (v4.1).

Este não é um texto introdutório sobre autogestão ou Holacracia. Se você ainda não conhece a constituição, recomendo ler nosso guia aqui.

Para consulta, aqui você encontra a tradução da versão 5 para o português.

Entre as principais novidades dessa versão, destaco:

  1. Mudanças de termos
  2. Domínios mais flexíveis
  3. Adoção modular
  4. Reuniões táticas não apenas para círculos
  5. Criar círculos sem consentimento
  6. Melhor definição de políticas
  7. Regra padrão para gastar dinheiro
  8. Acordos relacionais
  9. Outras mudanças pequenas

Vamos abordar os tópicos um a um.

Mudanças de termos

Alguns conceitos novos foram criados na versão 5, outros apenas renomeados.

  • Líder de Círculo (Circle Lead): É o antigo Elo Principal, responsável por priorizar, estruturar o círculo e atribuir pessoas a papéis.
  • Representante do Círculo (Role Rep): É o antigo Elo Representativo.
  • Líder de Papel (Role Lead): É um conceito novo usado para designar qualquer pessoa que energiza um papel. Talvez a intenção aqui seja reforçar que todos na autogestão exercem algum tipo de liderança. No site da HolacracyOne aparece escrito: “​​No bosses. All Leaders.”
  • Iniciativa Individual (Individual Initiative): Antes chamada de medida individual ou ação individual. É quando temporariamente desrespeitamos as regras da constituição.

Adoção modular

Uma das grandes críticas a sistemas sofisticados de gestão como a Holacracia é a adoção de tudo ou nada. No livro Holacracia: O novo sistema de gestão que propõe o fim da hierarquia, Brian Robertson é categórico ao afirmar que é melhor adotar a constituição inteira do que partes dela, ou então escolher um recorte da organização (como uma área) e aplicar todas as regras. Mas isso agora muda na versão 5. A declaração de adoção permite com que os Ratificantes (Board, CEO, presidente) adotem somente alguns artigos da Constituição (desde que em sequência). Os 5 artigos se tornam então uma progressão possível para autogestão.

  • Artigo 1 – Estrutura Organizacional: O Artigo 1 é obrigatório para usar quaisquer outras regras da Constituição.
  • Artigo 2 – Regras de Cooperação: Se este Artigo não for adotado, os Líderes do Círculo podem especificar os deveres de um Parceiro de cooperar com outros enquanto trabalha em seu Círculo, a menos que especificado de outra forma por um Líder do Círculo mais amplo ou pelos Ratificantes.
  • Artigo 3 – Reuniões Táticas: Se este Artigo não for adotado, a Organização continuará com seus atuais hábitos de reunião, até que seja alterado por um Líder de Círculo para seu Círculo, ou até que seja especificado de outra forma por um Líder de Círculo mais amplo ou pelos Ratificantes.
  • Artigo 4 – Autoridade Distribuída: Se este Artigo não for adotado, os Líderes de Papel devem alinhar todas as ações e decisões com qualquer orientação ou direção dada por um Líder de Círculo de seu Círculo ou qualquer Círculo mais amplo, a menos que especificado de outra forma por um Líder de Círculo mais amplo ou pelos Ratificantes.
  • Artigo 5 – Processo de Governança: Se este artigo não for adotado, os Líderes de Círculo podem editar exclusivamente a Governança dentro de seu Círculo a qualquer momento ou permitir que outros o façam, e resolver quaisquer conflitos de interpretação da Governança de seu Círculo, a menos que especificado de outra forma por um Líder de Círculo mais amplo ou pelos Ratificantes.

O que é mais interessante é que essa progressão possível dos artigos 1 a 5 é compatível com nossa experiência nos trabalhos de design organizacional da Target Teal. Por exemplo, é comum certas organizações adotarem diversos elementos da autogestão, mas ainda centralizarem a alteração da governança nas antigas lideranças – seria o equivalente a adotar os artigos 1-4, mas deixar o 5 de fora.

Domínios mais flexíveis

Na versão 4.1 os domínios eram considerados propriedade particular dos papéis e círculos, e cabia a quem os detinha de liberar ou não acesso a eles. No item 2.2 – Dever de Processamento, temos:

(c) Solicitações para Impactar o Domínio: Outros podem pedir para impactar um Domínio controlado por um dos seus Papéis. Você deve permitir o impacto se você não vir nenhuma razão que reduzirá a sua capacidade de adotar o Propósito do seu Papel ou as Responsabilidades. Se você realmente vir uma razão, você deve explicá-la ao requerente.

E no trecho 4.1.2 – Consiga permissão antes de impactar um domínio, temos pistas de como realizar essa solicitação:

Quando você precisar da permissão para impactar um Domínio, você pode consegui-la de quem quer que controle esse Domínio. Você também pode conseguir a permissão anunciando a sua intenção para tomar uma ação específica, e convidando alguém com um Domínio relevante a objetar. Você deve então aguardar um tempo razoável para permitir as respostas. Se ninguém se objetar nesse tempo, você então tem a permissão para impactar qualquer Domínio de propriedade de qualquer Papel na Organização que o seu aviso alcançou. Você pode presumir que um anúncio escrito chegou a quem tipicamente lê as mensagens no canal que você usou. Qualquer permissão assim concedida somente se aplica enquanto se tomar a ação específica que você anunciou. Uma Política pode mudar ou restringir esse processo.

É interessante como essa regra tem potencial de tornar a organização mais ágil: na ausência de uma resposta, você tem permissão para impactar o domínio.

Reuniões táticas não apenas para círculos

Uma alteração interessante da versão 5 é o descolamento entre reunião tática e círculo. Basicamente qualquer líder de lapel pode chamar outros líderes de papéis e realizar uma reunião tática. Os círculos ainda têm reuniões táticas regulares que são agendadas pelo secretário e facilitadas pelo facilitador do círculo. No caso das excepcionais, quem convocou facilita e secretaria. Na prática muitas organizações já faziam isso, o que muda é que a constituição passa a reconhecer e explicitar esse modo de fazer reuniões táticas.

CRIAR CÍRCULOS SEM CONSENTIMENTO

Essa talvez seja a mudança mais ousada proposta pela versão 5 – agora não é necessário mais obter consentimento pela governança para transformar um papel em um círculo. Basicamente qualquer pessoa que julgar que o seu papel é complexo o suficiente para poder ser subdividido pode transformá-lo num círculo. Esta pessoa, que antes era líder do papel, torna-se líder daquele novo círculo. Obviamente essa pessoa teria o escopo limitado ao que era definido no papel.

Esta mudança veio com a intenção de tornar papéis que são energizados por múltiplas pessoas exatamente iguais a um círculo. Na constituição v4.1 existiam regras específicas para essa situação de quando um papel é desempenhado por mais de uma pessoa. Na versão 5 isso equivale a um círculo. Ou seja, se existem 5 pessoas no papel Atendimento, elas podem agendar uma reunião de governança e criar papéis dentro do círculo de Atendimento (lembre-se que todo papel pode ser um círculo) e usar esse espaço para fazer acordos de trabalho, como criar políticas.

Essa mudança é bastante significativa porque basicamente abre um espaço maior para um processo de autoalocação (as pessoas poderem escolher quais papéis energizam). Imagine uma organização em que qualquer pessoa pode transformar seu papel em um time e convidar outras pessoas para colaborar. Obviamente os círculos mais amplos ainda podem adotar políticas que restrinjam a alocação, como é o caso do sistema de “Attention Points“.

Melhor definição de políticas

Uma mudança pequena, mas que às vezes colocava facilitadores e secretários em uma situação difícil. Não havia na constituição um lugar claro que definisse o que era uma política. Agora temos:

5.2.1 Escopo de uma Política

Uma Política pode somente ser uma ou mais das seguintes:

    • (a) Uma restrição na autoridade de um ou mais dos Papéis Contidos do Círculo; ou
    • (b) Uma concessão de uma autoridade que o Círculo ou o Líder de Círculo detém para um ou mais Papéis; ou
    • (c) Uma concessão da autoridade que permita às pessoas ou aos Papéis não do contrário autorizados a controlar ou impactar um dos Domínios do Círculo, ou uma restrição de como eles podem assim fazer quando do contrário autorizado; ou
    • (e) Uma regra que muda uma regra padrão ou o processo nesta Constituição, se essa mudança for explicitamente permitida.


Com isso fica muito mais fácil levantar uma objeção quando alguém propõe algo que fuja dessa definição.

Regra padrão para gastar dinheiro

Se desfazer de algum ativo organizacional (incluindo gastar dinheiro) agora segue um processo definido. Este processo pode ser alterado através de uma política.

​​Para ser autorizado a gastar, você deve anunciar a sua intenção em gastar por escrito ao Papel de quem você está buscando a autorização. Você deve compartilhar esse anúncio onde todos os Parceiros servindo de Líderes de Papéis daquele Papel ou dentro desse Papel normalmente o verão. A sua declaração deve incluir a razão para o gasto, e de qual Papel você gastará. Você deve então aguardar um tempo razoável para permitir considerações e respostas […].

Basicamente, quando a sua ação envolve gastar dinheiro ou outro ativo você deve obter algum tipo de permissão antes. A regra de ouro da Holacracia “tudo é permitido a não ser que expressamente proibido” não se aplica aqui. No limite, se não há nenhum tipo de definição na estrutura sobre propriedade, é o Líder do Círculo que vai ser o papel que você buscará autorização.

Acredito que essa mudança pode ajudar muitas organizações na transição. Acho que a Holacracia falhava por omissão em não colocar um mecanismo padrão para uso de recursos financeiros. A ideia de que todo mundo pode gastar dinheiro simplesmente não é factível em boa parte das organizações, e o que eu observo é que mesmo sem uma proibição explícita as pessoas deixam de gastar por medo. Então melhor começar com uma regra restritiva e explícita, mas que seja realista. Depois você pode flexibilizar se for necessário.

Acordos relacionais

Parece que finalmente a Holacracia começa a reconhecer a importância de dar mais contornos para o “espaço tribal” (relação entre as pessoas, e não entre os papéis). Os acordos relacionais são um novo tipo de construto da constituição que permite com que dois ou mais parceiros da organização (pessoas) construam acordos de relacionamento. Esses acordos não se aplicam a papéis específicos, como as políticas, mas aos parceiros envolvidos. As pessoas obviamente devem consentir com esses acordos.

Entendo que é possível conectar certos acordos relacionais com a governança e usar isso para tomar decisões. Por exemplo, uma organização poderia estabelecer um acordo dizendo que quando uma pessoa quer feedback sobre o trabalho dela, ela deve pedir feedback (e não esperar que alguém adivinhe e dê feedback espontaneamente). Esse acordo relacional poderia servir de critério para avaliar, e se descumprido de forma sistemática, encerrar a relação da pessoa com a organização.

Outras mudanças pequenas

Também listo algumas outras mudanças menores, mas também importantes:

  • O Elo Transversal sumiu (Cross Link), mas ainda é possível conectar um papel a vários círculos (1.3.4)
  • Líder do círculo pode editar a governança quando ela referencia um papel do círculo ou o círculo como um todo (1.4.4)
  • É possível adicionar responsabilidades e domínios ao Líder do Círculo e isso se aplica a todos os círculos internos (1.4.5)
  • Constituição agora fala como lidar com “prazos” na governança (2.3d)
  • Propostas agora tem critérios de exigência, assim como objeções (5.3.1)
  • Quem chama uma reunião de governança extraordinária tem autoridade em priorizar a pauta e definir o que cabe e o que não cabe (5.4.4)

Conclusão

A Holacracia na versão 5 passou por uma revisão generosa e incorporou novos elementos bem importantes, como a adoção modular, os acordos de relacionamento e as reuniões táticas entre papéis diversos. O mais impressionante é que mesmo com essas adições, o tamanho da constituição encolheu 20%. O suporte ao espaço tribal ainda é tímido, mas passos foram dados. A autonomia para transformar papéis em círculos sem passar pela governança ainda é bastante polêmica e gostaria de ver mais experiências práticas de como isso se comporta. Ainda não temos conhecimento de nenhuma organização que adotou a versão 5, com exceção da HolacracyOne que desenvolve e mantém a Holacracia.

Referências:

Hello, Holacracy Constitution version 5.0! What’s new? Disponível em <https://energized.org/en/hello-holacracy-constitution-version-5-0-whats-new/>. Acesso em 22 der nov de 2021.

Holacracy Constitution: Version 5.0. Disponível em <https://www.holacracy.org/constitution/5>. Acesso em 22 de nov de 2021.

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Sobre o(a) autor(a): Davi Gabriel Zimmer da Silva

Davi é designer organizacional e facilitador na Target Teal, especializado em melhorar interações entre times e indivíduos no ambiente corporativo. É pioneiro na prática de Holacracia no Brasil e co-autor da Organização Orgânica, uma abordagem brasileira para autogestão. Davi é formado em Sistemas de Informação pela UNISINOS e pós-graduado em Psicologia Positiva pela PUCRS. É amante dos temas desenvolvimento humano e de organizações, produtividade, futuro do trabalho e cultura organizacional.

Comentário

  1. […] é sobre a versão 4.1 da Holacracia. Ela passou por algumas mudanças significativas na versão 5. Leia depois esse texto para compreender as […]

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