Por que, apesar de nossos melhores esforços, alguns problemas crônicos como desigualdade, corrupção e injustiça persistem em nossas organizações e sociedade? Este é um mistério que desafia muitas mentes e sistemas ao redor do mundo. Antes de responder diretamente a essa questão, vamos explorar mais profundamente os contextos e nuances envolvidos.
Imagine uma sociedade onde cada decisão, cada política, cada incentivo é criado com a melhor das intenções. Queremos um sistema educacional que motive os alunos, uma estrutura corporativa que recompense a produtividade e políticas públicas que promovam a equidade e justiça. Porém, muitas vezes, essas boas intenções resultam em efeitos colaterais inesperados. Por que isso acontece?
Talvez a resposta esteja em um fenômeno tão sutil quanto poderoso: os incentivos perversos.
Das salas de reunião corporativas aos corredores do poder, dos sistemas educacionais às políticas públicas, esses incentivos invisíveis estão em toda parte. São as armadilhas ocultas em nossas rotinas diárias, os vícios embutidos em nossas estruturas de recompensa, as consequências não intencionais de nossas supostas boas intenções.
Compreender a natureza complexa e muitas vezes paradoxal desses incentivos não é tarefa simples. Não há soluções fáceis ou respostas definitivas. O que podemos oferecer é um convite à reflexão, um chamado para examinar criticamente as estruturas que nos cercam e nas quais participamos.
Note que, ao abordar este tema, pode parecer que estou enquadrando as organizações e as pessoas que tomam decisões como se fossem grandes vilões que perpetuam ciclos de opressão. É importante levar em consideração ao longo do texto que, muitas vezes, esses ciclos não são intencionais e, portanto, não se trata de culpar alguém pelo resultado, mas sim de trazer uma reflexão sobre as estruturas que estimulam esses comportamentos.
Nessa exploração, podemos nos deparar com uma verdade incômoda encapsulada na frase “Nós encontramos o inimigo, e ele somos nós”, popularizada por um quadrinho do americano Walt Kelly, publicado em 1970. Mas longe de ser uma condenação ou uma luta do bem contra o mal, esse reconhecimento pode ser o primeiro passo para uma compreensão mais profunda e, quem sabe, para mudanças significativas na sociedade.
Desvendando os Incentivos Perversos
Incentivos perversos são estruturas embutidas em nossos sistemas sociais e organizacionais que, paradoxalmente, encorajam comportamentos contrários aos objetivos declarados. Eles frequentemente emergem das tensões entre polaridades aparentemente opostas, mas interdependentes – um conceito alinhado com a ideia de “Polarity Management” de Barry Johnson.
Johnson argumenta que muitos desafios organizacionais não são problemas a serem resolvidos, mas polaridades a serem gerenciadas. Nesse contexto, os incentivos perversos muitas vezes surgem quando tentamos resolver uma polaridade, favorecendo excessivamente um polo em detrimento do outro.
Apresento a seguir uma tipologia de incentivos perversos que desenvolvi baseada nessas polaridades:
Tipo de Incentivo | Definição | Exemplo |
---|---|---|
Incentivos Temporais | Estruturas que criam tensão entre objetivos de curto e longo prazo. | Bônus trimestrais que incentivam decisões prejudiciais a longo prazo. |
Incentivos de Escala | Mecanismos que geram conflito entre interesses individuais e coletivos. | Sistemas de avaliação que promovem competição excessiva em detrimento da colaboração. |
Incentivos de Mensuração | Métricas que priorizam aspectos quantificáveis em detrimento de fatores qualitativos cruciais. | Metas de atendimento ao cliente baseadas apenas em número de chamadas, deixando a qualidade do serviço em segundo lugar. |
Incentivos de Inovação | Estruturas que criam tensão entre conformidade, criatividade incremental e inovação disruptiva. | Políticas rígidas que punem erros, desencorajando a experimentação. |
Incentivos de Aparência | Mecanismos que geram conflito entre aparência, substância e necessidade de confidencialidade. | Métricas de desempenho facilmente manipuláveis, levando a relatórios maquiados. |
Incentivos de Responsabilidade | Estruturas que criam tensão na atribuição e distribuição de responsabilidades. | Estruturas organizacionais que diluem a responsabilidade, levando ao fenômeno do “bystander effect” corporativo. |
Incentivos de Simplificação | Mecanismos que geram conflito entre simplificação excessiva e complexidade paralisante. | KPIs simplistas que não capturam a complexidade real do trabalho. |
Incentivos de Poder | Estruturas que criam tensão na distribuição e exercício do poder organizacional. | Estruturas hierárquicas rígidas que incentivam comportamentos autoritários. |
Esta tipologia não abrange todos os casos, mas oferece uma estrutura para identificar e analisar incentivos perversos em nossas organizações e sociedade. Ao reconhecer estas polaridades, é mais sobre como podemos começar a gerenciá-las de forma mais eficaz e menos sobre tentar “resolvê-las” definitivamente.
O sociólogo Robert K. Merton argumentou muito bem que “as consequências não intencionais de ações propositais” muitas vezes emergem desses incentivos mal alinhados. Eis, portanto, a questão: como podemos criar estruturas que reconheçam e gerenciem estas polaridades, ao invés de exacerbá-las?
3. Quando Boas Intenções Dão Errado: Exemplos Concretos de Incentivos Perversos
Para entender melhor como os incentivos perversos se manifestam no mundo real, vamos examinar quatro casos emblemáticos. Cada um deles ilustra como estruturas bem-intencionadas podem levar a consequências inesperadas e muitas vezes contraproducentes.
3.1. O Caso das Metas Atreladas a Recompensas
Muitas organizações implementam sistemas de metas e recompensas com a intenção de aumentar a produtividade e motivação dos funcionários. No entanto, esses sistemas frequentemente se transformam em exemplos clássicos de incentivos perversos.
Considere o escândalo do Wells Fargo em 2016. Os funcionários do banco estavam sob intensa pressão para atingir metas de vendas agressivas, com suas recompensas e até mesmo a segurança do emprego atreladas a essas metas. O resultado? Milhões de contas fraudulentas abertas sem o conhecimento dos clientes.
Este caso ilustra perfeitamente o conceito de incentivos de mensuração em nossa tipologia. A ênfase excessiva em métricas quantitativas (número de contas abertas) levou à negligência de aspectos qualitativos cruciais (ética e satisfação do cliente).
Além disso, como observou o psicólogo Edward Deci em sua Teoria da Autodeterminação, “Quando as instituições – famílias, escolas, empresas e esportes atléticos, por exemplo – se concentram em resultados de curto prazo e em controlar o comportamento das pessoas, elas podem prejudicar a motivação intrínseca das pessoas”.
3.2. A Operação Cat Drop: O Perigo das Soluções Lineares para Problemas Complexos
Em 1950, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou uma campanha para combater a malária na ilha de Bornéu. A solução? Pulverizar DDT para matar os mosquitos. Inicialmente, a operação pareceu um sucesso. No entanto, logo surgiram consequências inesperadas.
O DDT não apenas matou os mosquitos, mas também as vespas que controlavam as populações de lagartas comedoras de palha. Os telhados das casas começaram a desabar. Além disso, os gatos da ilha, que controlavam a população de ratos, morreram ao comer lagartas envenenadas. Com menos gatos, a população de ratos explodiu, trazendo o risco de peste bubônica.
A solução da OMS? A infame “Operação Cat Drop” – paraquedistas lançando gatos de avião para repovoar a ilha.
Este caso exemplifica os incentivos de simplificação em nossa tipologia. A simplificação excessiva de um problema complexo (controle de malária) levou a uma cascata de consequências não intencionais, ilustrando a interconexão dos sistemas ecológicos e sociais.
3.3. O Efeito Cobra: Quando as Soluções Pioram o Problema
Durante o domínio britânico na Índia colonial, as autoridades ficaram alarmadas com o número de cobras venenosas em Delhi. A solução proposta foi oferecer uma recompensa por cada cobra morta. Inicialmente, isso pareceu funcionar, com muitas cobras sendo abatidas.
No entanto, “empreendedores” astutos logo perceberam uma oportunidade: começaram a criar cobras para ganhar as recompensas. Quando as autoridades descobriram e encerraram o programa, os criadores libertaram suas cobras agora sem valor. O resultado final? Um aumento na população de cobras.
Este exemplo, que deu origem ao termo “Efeito Cobra“, ilustra perfeitamente os incentivos de escala em nossa tipologia. Uma solução focada em resultados individuais (recompensas por cobra) levou a consequências sistêmicas opostas ao objetivo original.
No Brasil tivemos algo parecido. Permitiram a caça de javalis para conter o bicho que era uma praga, mas o que aconteceu foi que “empreendedores” da caça começaram a criar javalis e soltar, para alimentar o mercado de caça.
3.4 Escândalo das Lojas americanas: A fraude que Abalou o Mercado de Capitais Brasileiro
Em 2023, as Lojas Americanas, uma das maiores varejistas do Brasil, foram envolvidas em um escândalo financeiro monumental. A empresa revelou “inconsistências contábeis” que inicialmente apontavam para um rombo de R$ 20 bilhões, mas as investigações subsequentes elevaram esse valor para impressionantes R$ 25 bilhões.
A origem do problema residia em práticas contábeis enganosas e falta de transparência, mascarando o verdadeiro nível de endividamento da empresa. Esse esquema permitiu que a Americanas mantivesse a aparência de saúde financeira enquanto, na realidade, enfrentava dificuldades severas. A descoberta dessas práticas levou a uma queda abrupta no valor das ações, perda de confiança dos investidores e um processo de recuperação judicial que ainda está em andamento .
Uma nova revelação recente destacou ainda mais a gravidade da situação: a existência de uma “sala blindada” onde os executivos da Americanas se reuniam para discutir e esconder práticas contábeis fraudulentas.
Este caso exemplifica os incentivos de aparêcia em nossa tipologia. A busca por apresentar resultados financeiros positivos e atrair investidores incentivou a manipulação contábil. Isso criou uma falsa sensação de segurança no mercado, prejudicando não apenas a empresa, mas também seus stakeholders e o mercado de capitais como um todo.
Estes quatro casos demonstram vividamente como incentivos mal alinhados podem levar a resultados contraproducentes.
Eles nos convidam a refletir: Como podemos projetar sistemas que levem em conta a complexidade das interações humanas e ambientais? Como podemos evitar a armadilha de soluções simplistas para problemas complexos?
Mais importante ainda, estes exemplos nos lembram que, ao lidar com sistemas complexos, devemos sempre estar preparados para o inesperado e dispostos a ajustar nossas abordagens com base em feedbacks contínuos do sistema.
O Poder por Trás dos Incentivos: Desvendando as Estruturas de Opressão
Ao examinarmos os incentivos perversos, é importante compreender como eles se relacionam com as estruturas de poder em organizações e na sociedade. Essa análise nos leva a questões desconfortáveis, mas necessárias: Quem realmente se beneficia desses incentivos? Como eles perpetuam sistemas de opressão?
4.1. Os Beneficiários Ocultos dos Incentivos Perversos
À primeira vista, incentivos perversos parecem prejudicar a todos. No entanto, uma análise mais profunda revela que certos grupos ou indivíduos muitas vezes se beneficiam, direta ou indiretamente, da manutenção desses sistemas.
Considere o caso das metas em call centers. Embora a pressão por atendimentos rápidos prejudique tanto funcionários quanto clientes, ela pode beneficiar acionistas e altos executivos ao reduzir custos operacionais no curto prazo.
Já dizia Michel Foucault, “O poder não é algo que se adquire, arrebata ou compartilha, algo que se guarda ou deixa escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis.”
Nessa perspectiva, os incentivos perversos podem ser vistos como mecanismos sutis de exercício e manutenção do poder. Eles moldam comportamentos, definem prioridades e, muitas vezes, reforçam hierarquias existentes.
4.2. Consequências Inesperadas e Corrupção Sistêmica
Os incentivos perversos não apenas beneficiam certos grupos, mas também podem levar a uma corrupção sistêmica das organizações e instituições. Isso ocorre através de um processo que o sociólogo Robert Merton chamou de “profecia autorrealizável“.
Por exemplo, em sistemas educacionais focados excessivamente em testes padronizados, vemos:
- Escolas “ensinando para o teste”, negligenciando habilidades críticas não mensuradas.
- Estudantes aprendendo a “jogar o sistema” ao invés de desenvolver um amor genuíno pelo aprendizado.
- Administradores manipulando dados para melhorar as classificações das escolas.
O resultado é um sistema educacional que, ironicamente, falha em seu objetivo fundamental de educar de forma abrangente.
Esses sistemas servem apenas para reproduzir desigualdades sociais existentes, beneficiando aqueles que já possuem capital cultural e econômico para navegar e explorar essas estruturas.
Reconhecer a relação entre incentivos perversos e estruturas de poder é o primeiro passo para a mudança. No entanto, transformar essas estruturas profundamente enraizadas é um desafio complexo que requer uma análise cuidadosa e uma abordagem informada pela complexidade.
Ao examinarmos criticamente os incentivos que moldam nosso comportamento e nossas organizações, damos o primeiro passo para transformar as estruturas que perpetuam a opressão.
A questão que fica é: Como podemos criar sistemas que distribuam poder de forma mais equitativa e que incentivem comportamentos alinhados com os valores que professamos?
5. Uma Lente Sistêmica para Incentivos Perversos
Até agora, exploramos a natureza dos incentivos perversos, sua ligação com estruturas de poder e as consequências inesperadas que eles podem gerar. No entanto, para abordar esse desafio de maneira eficaz, precisamos adotar uma nova lente conceitual – a perspectiva do pensamento sistêmico e da complexidade.
O pensamento sistêmico nos convida a ver o mundo como um conjunto de sistemas interconectados, onde as partes individuais influenciam e são influenciadas pelo todo. Essa abordagem nos ajuda a reconhecer os padrões subjacentes, as relações de causa e efeito não lineares e os ciclos de retroalimentação que influenciam o comportamento dos sistemas.
Ao aplicar essa lente, começamos a ver como os incentivos perversos emergem das interações complexas entre estruturas, políticas, normas culturais e comportamentos individuais. Não são simplesmente “falhas” a serem corrigidas, mas sintomas de sistemas maiores que precisam ser compreendidos.
A ciência da complexidade, por sua vez, nos lembra que esses sistemas sociais são inerentemente imprevisíveis e sujeitos a mudanças não lineares. Pequenas flutuações podem desencadear grandes transformações. O comportamento do todo é bem diferente do que a simples soma das partes.
Considere uma empresa que premia executivos apenas com bônus trimestrais. Isoladamente, pode parecer racional. Mas interconectada com pressões de investidores, cultura de curto prazo, sistemas contábeis que obscurecem externalidades e comportamentos individuais egoístas, um padrão emerge: decisões que maximizam ganhos imediatos às custas da sustentabilidade de longo prazo.
Essa perspectiva nos desafia a abandonar a ilusão do controle total e a aceitar a incerteza, a necessidade de adaptação contínua. Ao invés de buscar soluções definitivas, devemos nos concentrar em cultivar a flexibilidade e a capacidade de aprender com o sistema.
Ao integrar essas lentes conceituais, deixamos de tratar apenas os sintomas para examinar os padrões profundos que geram os incentivos perversos. Não mais caçamos “culpados”, mas repensamos esses sistemas de forma abrangente – realinhando estruturas, normas e comportamentos com nossos objetivos coletivos.
É um desafio complexo, mas uma mudança de perspectiva poderosa. Deixamos de meramente remediar os males para compreender e transformar os sistemas que os produzem.
Eu falo mais sobre o que podemos fazer para lidar com essas estruturas perversas na parte 2 desse artigo: 5 princípios para eliminar incentivos perversos.
Para compreender melhor a nossa abordagem sistêmica para intervir em estruturas sociais eu recomendo que você faça o nosso curso de Pensamento Sistêmico e Complexidade Aplicados(PESCA). A próxima turma se aproxima!
UM CONVITE
Nós não acreditamos em soluções milagrosas para problemas complexos. Intervimos na cultura escutando as pessoas e fazendo experimentos de intervenções. Os feedbacks recebidos a partir dessas intervenções geram novas histórias e novas intervenções, e assim a cultura se transforma.
Não trabalhamos com produtos de prateleira e nem sempre vamos buscar agradar as lideranças com as nossas propostas. Sabemos que as mudanças geram desconforto. Afinal, se ninguém tá incomodado, é porque a transformação é só cosmética mesmo.
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