Regularmente a imprensa expõe casos de corrupção, desvio ético, fraudes, descaso com o meio-ambiente e outros escândalos envolvendo grandes corporações. 

Exemplos não faltam, como a Odebrecht com uma história longa de corrupção, fraude contábil na Enron que a levou a sua falência, Volkswagen enganando autoridades e controles antipoluição, Arthur Andersen que ocultou os problemas da Enron, chegando a destruir documentos para fugir da lei são alguns. A lista é longa e com frequência surgem novos casos, como a denúncia ainda não comprovada de que a GE há anos esconde prejuízos e está perto da falência.

Parece ser difícil entender como comportamentos que parecem violar qualquer senso de moralidade conhecido são possíveis de acontecer com tanta frequência e em tantas empresas. Seriam todos os diretores e gestores dessas grandes corporações verdadeiros sociopatas ou seres desprovidos de moral? 

Existe uma explicação alternativa que envolve um fenômeno chamado Cegueira Ética. 

O que é Cegueira Ética

Você pode imaginar que gestores (que são pessoas, afinal) usam de diferentes lentes ao tomar uma decisão. Eles pensam nas conseqüências (lente utilitarista), princípios (lente kantiana) e objetivos (lente econômica).

No entanto, muitas vezes, as tomadas de decisão (anti)éticas são menos racionais e deliberadas, e muito mais intuitivas e automáticas. Como conseqüência, a dimensão ética de uma decisão não é necessariamente visível para o tomador de decisão. 

As pessoas podem se comportar de forma antiética sem ter consciência disso, elas podem até estar convencidas de que estão fazendo o certo. E só mais tarde que eles percebem o antiético em suas decisões tomadas. Este é o fenômeno da cegueira ética.

A incapacidade temporária do tomador de decisão de ver a dimensão ética de uma decisão em jogo.

O fenômeno possui três aspectos. Primeiro, baseia-se na suposição de que as pessoas se desviam de seus próprios valores e princípios. Estes valores e princípios fazem parte de suas identidades e elas tentaram viver de acordo com eles no passado. A cegueira ética refere-se ao fato de que “boas pessoas se comportam de formas patológicas que são estranhas à sua natureza ”(Efeito Lucifer de Zimbardo ou Desengajamento moral de Bandura). Resulta da incapacidade das pessoas acessarem valores éticos que, em princípio, estão disponíveis para eles. 

Em segundo lugar, a cegueira ética é vinculada ao contexto e, portanto, um estado temporário. Sob diferentes circunstâncias, essas pessoas seriam capazes e teriam disposição de tomar uma decisão mais ética. Descreve um estado psicológico de pessoas com níveis normais (ou mesmo altos) de integridade e habilidade para o raciocínio moral. Mas por alguns motivos (muitas vezes relacionados ao contexto), eles não são capazes de usar essas capacidades ao tomar a decisão. Contudo, quando a situação muda, é provável que voltem a praticar seus valores e princípios originais. 

Esta característica é bem ilustrada pelo fato de que os tomadores de decisão podem ser surpreendidos ou até mesmo chocados com seu próprio comportamento uma vez que o contexto mudou. Um caso relatado em detalhes é do envolvimento de Dennis Gioia nas decisões que geraram o escândalo dos carros Ford Pinto, onde um erro no design do tanque de combustível levou ao óbito centenas de pessoas. 

Em terceiro lugar, cegueira ética é inconsciente. As pessoas que são eticamente cegas desconhecem o fato de que eles se desviam de seus valores e/ou ou que eles não podem e não acessam esses valores quando tomam uma decisão.

Quais são os fatores que contribuem para causar essa cegueira ética em indivíduos e organizações? 

O efeito do Enquadramento ou Framing rígido

Podemos dizer que as pessoas agem sobre quadros (frames) que eles desenvolvem enquanto interagem com seu ambiente. Esses frames são “estruturas mentais que simplificam e orientam nossa compreensão de uma realidade complexa ” ou, estruturas cognitivas “que as pessoas usam para impor alguma estrutura à informações, situações e expectativas para facilitar sua compreensão”. Eles nos fazem ver o mundo de um jeito particular e, portanto, necessariamente limitado. Eles filtram o que vemos e como vemos.

Como resultado, criamos definições específicas de problemas, relações causais entre fenômenos, avaliações normativas (o que é certo e errado) e recomendações de como agir. Os frames se desenvolvem através de processos de socialização onde estímulos e fenômenos sociais são filtrados repetidamente e de forma específica. 

Normalmente, os quadros são exclusivos, ou seja, usamos apenas um quadro de cada vez.

Como ilusões ópticas como o vaso de Rubin demonstra, nós podemos ter uma interpretação só de cada vez. 

Interpretação 1. Dois rostos escuros olhando um para o outro na frente de um fundo escuro, com as bordas sendo vistas como parte das faces.

Interpretação 2. Um vaso brilhante na frente de um fundo escuro, com as bordas sendo vistas como parte do vaso.

Não podemos ter ambas as visões simultaneamente.

Se alguém tem dificuldade em mudar de um frame para outro, dizemos que essa pessoa tem um enquadramento ou framing rígido. O enquadramento rígido prejudica seriamente a capacidade de uma pessoa ver um imagem mais completa ou mais rica do mundo.

Através de interpretações coletivas, as pessoas de uma organização podem desenvolver “um microcosmos moral que provavelmente não poderia sobreviver fora da organização” . No entanto, eles acreditam que “têm o quadro completo” e ignoram qualquer informação que não possa ser capturada ou compreendida pelo frame utilizado inicialmente. 

Como conseqüência, uma decisão que pode parecer irracional, antiética, e patológica fora do microcosmo pode ser considerada racional, ética e normal dentro do frame. 

O enquadramento rígido dificulta que a pessoa transcenda uma visão de mundo específica e veja as coisas de outra forma. Impede as pessoas de compensarem seus vieses e de desenvolver uma compreensão mais profunda da situação.

Um problema pode ser visto de múltiplas perspectivas, usando quadros diferentes (por exemplo, uma visão econômica, legal, técnica e ética). Mesmo que não seja possível adotar quadros diferentes ao mesmo tempo, é possível empregá-los de forma sequencial. Idealmente, os insights obtidos a partir desta seqüência são posteriormente integrados e uma decisão mais equilibrada pode ser elaborada.

Influência do contexto

A probabilidade de cegueira ética pode aumentar dependendo de como o contexto e o frame do tomador de decisão estão em oposição ou apontam para a mesma direção. Por exemplo, pessoas com uma formação tradicional em administração que trabalham em uma organização que incentiva um foco principalmente no lucro, terão uma maior dificuldade de usar diferentes frames e estarão mais propensas à cegueira ética. 

Além disso, forças situacionais, como a pressão do grupo dentro de um departamento, dificultam o emprego de diferentes frames. Adicionalmente se a organização fizer parte de um contexto institucional dominado pelo ideologia do mercado livre com um forte foco na desregulamentação, a probabilidade de enquadramento rígido também é alta. 

É interessante observar que exatamente essas condições estiveram presentes na Enron antes de todo o sistema que foi construído lá entrou em colapso evaporando 100 bilhões de dólares. 

Aspectos da situação imediata podem reforçar ainda mais um enquadramento rígido e assim, aumentar o risco de cegueira ética. Algumas situações são tão poderosas que provocam comportamento específico em muitas pessoas, independentemente de intenções, nível de desenvolvimento moral, valores ou raciocínio. 

Pesquisas sobre a influência da autoridade são boas para ilustrar o impacto de um contexto forte. Muitas pessoas estão dispostos a se envolver em comportamento antiético se quem pediu para fazê-lo foram figuras de autoridade legítima.

A pressão dos pares é outro fator situacional influenciando o enquadramento, especialmente em contextos organizacionais com forte conformidade cultural. Barbara Toffler descreveu em sua análise do colapso de Arthur Andersen como o empresa tentou transformar graduados da escola de negócios em “Androids” altamente intercambiáveis, impondo-lhes o “caminho de Arthur Andersen”, um conjunto de fortes normas sociais.

Efeito do tempo

O fato de muitas decisões virarem rotina indica que o tempo deve desempenhar um papel fundamental na compreensão da cegueira ética. Com o tempo, a probabilidade de as pessoas verem tons éticos em decisões rotineiras diminui e, portanto, aumenta o risco de cegueira ética.

Tal processo de mudança lenta e incremental pode ser entendido como uma sequência de pequenos transgressões – como um ex-executivo da Enron declarou: “Você faz isso uma vez, cheira mal, você faz de novo, não cheira tão mal” . O ponto de referência para a decisão de hoje é a decisão de ontem e se a transgressão de hoje for um pouco além da decisão de ontem, a diferença ética permanece aceitável e a progressão geral em direção a um curso de ação mais antiético passa despercebida. Um programa de TV leva essa ideia ao extremo na criação de um cenário onde pessoas comuns são impelidas a cometerem supostos assassinatos

As pessoas têm dificuldades em ver ou imaginar conseqüências que estão temporalmente distantes. Se eles tentarem imaginar essas conseqüências, elas são tão abstratas e especulativas que as pessoas não podem se conectar emocionalmente a elas. Hannah Arendt descreveu isso como um falta de imaginação moral. Assim, neste caso, o conhecimento sobre as conseqüências não leva a mudanças comportamentais. Se o atraso temporal entre uma decisão e suas consequências são grandes, a cegueira ética se torna mais provável.

A progressão em pequenos passos é impulsionada por um fenômeno descrito como a escalada de compromisso. As pessoas tendem a continuar um curso de ação, uma vez tomada, mesmo que suas decisões anteriores possam parecer ruins. A razão para isso é que se as pessoas investiram tempo, dinheiro ou outros recursos em uma decisão, isso acaba criando a impressão de existem custos irrecuperáveis. (ver falácia dos custos irrecuperáveis)

Porque Compliance não funciona

Existe uma tendência no mundo corporativo de promover estratégias que fazem uso da conformidade ou compliance para impedir que sujeitos ou organizações tomem ações antiéticas.  Em geral essas estratégias ignoram a existência da cegueira ética ou a tratam de maneira superficial. Não é com conformidade que você combate cegueira ética, é com dissidência. Quando existe espaço para o contraditório, para diferentes frames, as decisões começam a ser tomadas levando em conta tons éticos e morais.   

Algumas estratégias  podem introduzir essas divergências: 

  • Distribuir a autoridade com estruturas organizacionais que não fazem uso da cadeia de comando
  • Trabalhar com altos níveis de transparência dentro da organização 
  • Compor equipes levando em conta a diversidade
  • Adotar processos decisórios que integram diferentes perspectivas
  • Promover um espaço seguro para as pessoas expressarem seus valores e opiniões de maneira autêntica

Como consequência, práticas, políticas e decisões organizacionais são expostas a pessoas independentes e diferentes e, portanto, a múltiplas perspectivas, enfraquecendo rotinas e processos que geram a cegueira ética.

O enquadramento rígido é mais provável de se desenvolver se existirem rígidas definições do que é certo e errado, e se opiniões alternativas são vozes suprimidas e críticas são silenciadas.

Conclusão

Nesse artigo me abstive de tomar uma posição normativa ou seja, do que é certo e errado nos atos e decisões que deflagraram escândalos na mídia. Mas apliquei um ponto de vista normativo em relação ao fenômeno da cegueira ética em si e seus fatores determinantes. 

A cegueira ética é o resultado de um processo de construção de sentido (sensemaking) que se desdobra ao longo do tempo durante o qual o enquadramento e pressões de contexto reforçam-se mutuamente e em última análise, transformam um ao outro. 

Quando cegas eticamente, mesmo pessoas com altos níveis de integridade podem se desviar de seus próprios valores. 

A melhor maneira de prevenir é atuar no design organizacional, criando um ambiente de abertura, segurança psicológica, autoridade distribuída e visão crítica. 


Se você quiser ajuda da Target Teal na jornada de repensar o design organizacional para que cegueira ética seja algo muito improvável de acontecer, vamos conversar.