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Liderança e Autogestão – Uma coisa não exclui a outra

A ideia de autogestão e liderança parece contraditória para muitos. Enquanto a autogestão sugere independência e ausência do comando e controle, a liderança normalmente é vista como algo que envolve a tomada de decisões por alguém com mais poder e autoridade.

Minha provocação é que a ideia de liderança não só é importante para a autogestão como é inseparável. Não existe autogestão sem liderança.

Antes de começar essa exploração, quero adiantar que não vou trazer aqui aquela costumeira distinção entre “chefes e líderes” que brota no linkedin. Na maioria das vezes isso é apenas uma forma de tentar apresentar aqueles que ocupam altos cargos na hierarquia como heróis que vão salvar o dia de uma forma menos autoritária.

Esse papo de liderança é complexo. Muita gente fala sobre e, cá entre nós, é bem difícil separar o joio do trigo. Tem realmente muita bullshitagem – ou se preferir, muita baboseira mesmo – sobre o assunto.

Normalmente, quando falam de liderança por aí eu ouço isso de 4 formas:

A liderança como atributo do sistema é a única definição que realmente faz sentido. As definições de liderança situacional e desenvolvimentista, por outro lado, são meras variações da liderança como atributo individual, pois ambas se concentram na figura do líder e não nas dinâmicas sociais da organização que tornam a liderança possível.

Em um artigo anterior, eu já critiquei a liderança como atributo individual e, nesta reflexão, quero me concentrar na aparente contradição entre a liderança e as organizações autogeridas.

Para ilustrar essa comparação, vou me concentrar em duas perspectivas distintas: liderança como atributo do indivíduo e liderança como atributo do sistema, que também pode ser chamada de liderança emergente.

As críticas que eu tenho a fazer à liderança desenvolvimentista e situacional são as mesmas que faço à liderança como atributo do indivíduo. No caso do desenvolvimentismo, este artigo pode ser útil para ilustrar melhor as problemáticas em torno desse tema.

Muitos dos nossos clientes que estão implementando autogestão ficam confusos sobre o que fazer em relação a este tema. Parece que a palavra liderança se torna um tabu e eu acho que nós da TT acabamos contribuindo com isso.

Este artigo é uma tentativa de conciliar o tema “liderança” com as premissas da autogestão.

A contradição

A liderança como atributo do indivíduo envolve a tomada de decisões por uma pessoa com mais poder e autoridade, enquanto a autogestão sugere independência e ausência de hierarquias entre pessoas. No entanto, a liderança pode ser invocada por todos nas organizações autogeridas, ao invés de ser exclusividade de um grupo de indivíduos.

Por exemplo, em uma organização autogerida todos podem ter a oportunidade de liderar projetos ou iniciativas, independentemente de sua posição na organização. A liderança não precisa ser vista como uma posição de poder e autoridade.

Em organizações tradicionais, você dificilmente verá pessoas que estão numa posição de liderança deixando essa posição, é como se houvesse uma fusão entre o indivíduo e a posição de liderança.

No contexto hierárquico, se estabelece uma relação entre líder e liderado. Na autogestão, temos uma relação de parceria onde todos podem atuar como líderes, se quiserem.

Perceba que eu frisei o “se quiserem”. Não há nenhum problema se uma pessoa prefere seguir outra pessoa na autogestão. Isso acontece o tempo todo!

Eu sou inspirado todos os dias pelos meus parceiros na TT e me envolvo nos projetos que eles propõem com frequência. Da mesma forma, eu também inicio projetos onde outras pessoas se sentem inspiradas e resolvem participar.

Nós costumamos dizer que a pessoa que inicia algo na autogestão é “dona” daquele projeto. A pessoa “dona do projeto” vai acionar os outros, mobilizar recursos, invocar reuniões e investir uma energia considerável para que o projeto aconteça.

Ou seja, não existem liderados na autogestão, apenas parceiros e parceiras que lideram em comunhão.

Sendo assim, deixamos de olhar para a “liderança” como um atributo do indivíduo e passamos a compreendê-la como um fenômeno social emergente.

Como algo que emerge a partir das dinâmicas do sistema e das relações interpessoais.

Além disso, a autogestão permite que os membros da organização tenham mais autonomia e envolvimento, o que pode contribuir para aumentar a motivação e o desempenho. Isso significa que a liderança é uma parte importante da autogestão, pois permite que todos participem ativamente e contribuam para o propósito da organização.

Muita gente acha que na autogestão ninguém tem mais autoridade que ninguém. Isso não é verdade. As pessoas têm sim mais “autoridade” que as outras sobre determinados escopos e assuntos, a depender dos papéis que desempenham.

Autogestão não é sobre horizontalidade. Não é sobre todo mundo decidir tudo junto. Não é sobre todo mundo ter a mesma autoridade sobre tudo.

É sobre ter escopos bem definidos, acordos explícitos consentidos pelas partes envolvidas,  e estruturas que permitem que as pessoas exerçam sua autoridade sem ter que pedir permissão para o outro, exceto quando algum acordo diz o contrário. :)

Quando a liderança é tóxica

Fonte: Unsplash(Sebastiaan Stam)

Quando olhamos para a liderança em uma organização tradicional, é quase como se não houvesse um escopo definido para a autoridade da pessoa líder, muitas vezes ouço relatos ou reclamações de pessoas que nunca sabem se podem ou não fazer algo sem antes “alinhar” com a pessoa líder. Já vi pessoas líderes entendendo que tinham autoridade  para decidir sobre a escolha de vestimenta, cores, estilo de roupa e até mesmo como as pessoas deveriam organizar suas mesas de trabalho.

Infelizmente, muitas vezes a liderança como atributo do indivíduo pode se manifestar com práticas de dominação e controle exacerbado. A hierarquia rígida e uma cadeia de comando sem fluidez alguma são aspectos comuns dessas organizações, onde algumas pessoas são vistas como mais importantes ou com mais poder do que outras.

Em algumas empresas, os gerentes podem controlar rigorosamente o trabalho dos funcionários, limitando sua capacidade de tomar decisões. Isso pode levar a uma cultura de medo e inibição, onde os funcionários não se sentem motivados ou engajados. Além disso, as práticas que acompanham a hierarquia podem limitar a diversidade de opiniões e perspectivas, o que pode prejudicar a inovação e a colaboração dentro da organização.

Com isso não quero dizer que na autogestão tudo é perfeito e não existem ambientes tóxicos. A diferença é que, ao remover a hierarquia entre pessoas e a cadeia de comando, nós inibimos esses fenômenos de subordinação e dominação ao máximo.

A autogestão não vai resolver todos os problemas relacionais e apagar os momentos ruins das nossas vidas no ambiente de trabalho. Mas vai criar as condições necessárias para que todos se responsabilizem e ajam quando os problemas aparecem, diferente de organizações hierárquicas, onde os líderes têm que “apagar incêndios, cuidar do time, fazer e acontecer” porque são os super heróis da organização.

Líder, você não é o problema!

Recentemente tive uma conversa com um possível cliente de autogestão. No meio do papo, um dos gerentes que estava presente na reunião perguntou “Mas o que vocês fazem com os chefes nesse contexto? Demitem todo mundo? “

A resposta, caso você não saiba, é negativa. Se a nossa abordagem fosse demitir os chefes, isso seria uma atrocidade, seria violento.

O que nós buscamos fazer é convidar as pessoas que ocupam cargos de liderança a atuarem em papéis operacionais dentro da organização. Botar a mão na massa.

Há uma premissa que foi herdada do Taylorismo pela maioria das organizações hierárquicas que diz o seguinte: algumas pessoas pensam (gerentes) e outras executam (operários).

Num ambiente autogerido todo mundo pensa e todo mundo executa. Não há essa distinção entre pessoas que cuidam da estratégia e pessoas que cuidam das operações.

Por exemplo:

  1. Uma pessoa gerente de vendas pode se tornar um vendedor ativo, vendendo produtos ou serviços para clientes.
  2. Uma pessoa diretora de recursos humanos pode trabalhar diretamente com a equipe de recrutamento, realizando entrevistas e avaliando candidatos.
  3. Uma pessoa CFO pode trabalhar diretamente com a equipe financeira, ajudando a criar orçamentos e gerenciar fluxo de caixa. 

Mas sabe o que pode acontecer também? Uma pessoa CFO pode ter um interesse em trabalhar com marketing, com atendimento ou com UX Design. Isso se torna possível porque a organização autogerida não confina as pessoas em suas áreas. As pessoas passam a ter uma vida profissional mais colorida, onde podem expressar a sua multipotencialidade. 

Sendo assim, as pessoas que antes ocupavam cargos de alto escalão vão continuar pensando estrategicamente, mas também vão se envolver com as operações de forma mais próxima, ao mesmo tempo que mais pessoas também estarão pensando estrategicamente.

Naturalmente que, com isso, muitos desafios aparecem. É comum encontrar pessoas nessas posições com  dificuldade em aceitar essas mudanças.

A hierarquia organizacional cria uma premissa de que as pessoas só podem subir para cargos mais altos. Voltar para as operações é ser rebaixado. 

A transição de uma organização hierárquica para uma organização autogerida  pode ser bem dura para líderes e liderados. 

Algumas pessoas realmente preferem que digam para elas o que deve ser feito. 

E alguns líderes sentem que a sua vida profissional perde o propósito quando se vêem numa situação onde não podem mais usufruir dos privilégios de liderança enquanto cargo.

Nós lidamos com esse tipo de resistência com uma certa frequência, mas existem também os casos onde pessoas líderes ficam felizes de poder botar a mão na massa. Algumas sentem falta disso.

Parece que muita gente acha que nós odiamos líderes como se fossem uma doença do sistema. Veja bem, a liderança tóxica é um sintoma que se manifesta em organizações que buscam fortalecer relações de poder sobre o outro. Nós tivemos muitas experiências onde pessoas que atuavam como líderes se encaixaram muito bem num sistema onde partilham poder com o outro.

Há por exemplo o caso do diretor de uma instituição financeira que passou a assumir papéis que o colocavam de forma mais presente no desenrolar das estratégias de marketing e das ações de negócio. 

Ou ainda o caso de um CEO numa empresa de software que voltou a atuar como programador.

As pessoas líderes não são o problema. O problema é o sistema operacional dessas organizações que estimula a dominação nas relações.

A liderança na autogestão

Na autogestão toda pessoa é responsável por encontrar caminhos para resolver as suas tensões. Se você quer mudar algo, é sua responsabilidade envolver outras pessoas e buscar soluções para os problemas que você identifica. Dessa forma, todos têm a oportunidade de atuar como “líderes” e eventualmente todos vão se envolver em projetos “liderados” por outras pessoas.

Como disse antes, a liderança na autogestão não é exclusividade de uma pessoa ou posição, mas sim algo que pode ser invocado por todos. Isso significa que todos têm a oportunidade de liderar projetos, iniciativas ou soluções para problemas, independentemente de sua posição na organização. Aqui a liderança é baseada na colaboração e na participação ativa de todos, ao invés de ser baseada no poder e na autoridade de uma pessoa.

Talvez você se pergunte… “Mas as pessoas têm maturidade pra isso?”

A ideia de que as pessoas precisam ter maturidade para atuar como líderes é um equívoco comum que incorre no erro fundamental de atribuição. Esse erro ocorre quando se atribui a uma característica individual, como a maturidade, o comportamento ou o sucesso de uma pessoa em uma situação, ao invés de levar em consideração as circunstâncias sociais e a estrutura do sistema.

Em outras palavras, não adianta você exigir proatividade, maturidade e “liderança” dos funcionários quando eles trabalham numa organização baseada no poder sobre o outro. Se você muda a estrutura do sistema para uma organização baseada no poder com o outro, o comportamento segue a estrutura.

Nós já perdemos a conta de quantas vezes um estagiário brilhou como um “verdadeiro líder” durante o processo de transição para autogestão.

Conclusão

Liderança é um conceito complexo e amplo que pode ser visto de diferentes formas. No entanto, a liderança como “atributo do indivíduo” é focada em relações de subordinação, e pode limitar a diversidade de opiniões e perspectivas.

A autogestão, por outro lado, permite que todos tenham a oportunidade de liderar projetos ou iniciativas e de participar ativamente na construção do propósito da organização. A liderança na autogestão é baseada na colaboração e na participação ativa de todos, e não apenas em uma pessoa ou posição. A tabela abaixo tenta sumarizar esses pontos.

Liderança IndividualLiderança emergente
Baseada nas habilidades inatas de uma pessoaBaseada numa combinação de fatores, incluindo a estrutura organizacional, as normas sociais e a dinâmica dos relacionamentos
Foco em influenciar e exercer poder sobre os outrosFoco em criar um ambiente onde a liderança pode ser invocada por todos
Favorece a cadeia de comando e hierarquiaFavorece a participação ativa de todos, independente da hierarquia
Pode ser restritiva e limitar o potencial dos lideradosNão existem liderados, apenas parceiros que eventualmente seguem uns aos outros.

A liderança é um atributo fundamental da autogestão e não algo a ser demonizado.

A Autogestão permite que todos os membros da organização tenham a oportunidade de desenvolver suas habilidades de liderança, ao invés de serem limitados a uma posição ou papel específico.

A liderança como atributo do indivíduo é como um show de um artista solo, enquanto a liderança como atributo do sistema é como uma banda de jazz, onde cada músico é valorizado e todos trabalham juntos para criar algo maior do que a soma de suas partes.

Eu espero que essas palavras tenham ajudado a elucidar a importância da liderança para organizações autogeridas. É impossível dissociar uma coisa da outra. Quando criticamos figuras de liderança nas organizações tradicionais, estamos sempre nos referindo à liderança como um atributo do indivíduo e não como um fenômeno social.

Se você quer ajuda para aprofundar este tema na sua organização nós podemos tomar um cafézinho e explorar mais. Entre em contato!

Obrigado por ler até aqui. :)

Este post contou com feedback, sugestões e revisão das seguintes pessoas:

Tami Lima, Gabriela Inácio, Rodrigo Bastos, Davi Zimmer, Eduardo Montenegro, Aline Figueiredo, Vanessa Yumi, Davi Bufalo, Maria Thereza do Amaral, Eliza Fortuna, Cynthia Mendes Fior, Felipe Novaes Rocha e Mônica Santos.

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