O que mais ouço nas organizações é que as pessoas precisam ser desenvolvidas.

“Desenvolvimento de pessoas” são palavras-chave muito usadas no mundo corporativo. Empresas investem em treinamentos, coaching, mentorias, avaliações de desempenho, feedbacks e programas de desenvolvimento para ajudar seus colaboradores a melhorarem habilidades individuais, competências e comportamentos. Isso faz parte das famosas “boas práticas” nas organizações, que prezam pela boa e velha gestão por competências.

Eu mesmo já desenhei experiências voltadas inteiramente para o desenvolvimento pessoal.

Mas, e se a abordagem estiver errada? E se o foco excessivo no indivíduo estiver limitando o verdadeiro potencial das pessoas?

Bom, leitoras e leitores… Longe de mim dizer o que é certo ou errado porque de moralismo o mundo já tá cheio. Agora, se você seguir esse fio comigo, quero falar sobre como esse papo de “desenvolver pessoas” não só limita o potencial criativo das organizações como pode ser até nocivo para os indivíduos.

Premissas do desenvolvimento

A crença de que as pessoas devem ser desenvolvidas é baseada em algumas premissas fundamentais. Essas premissas têm sido amplamente aceitas no mundo corporativo e são frequentemente usadas como base para programas de desenvolvimento de pessoas.

Certamente existem algumas hipóteses que sustentam essa ideia. Deve haver bons motivos para que as organizações escolham seguir por esse caminho.

Para entender melhor o que leva tantas organizações a utilizarem esse recurso, eu comecei a investigar hipóteses, pressupostos, por trás dessas práticas tanto com os meus clientes como em referências bibliográficas.

Organizei as hipóteses que eu encontrei no formato “Se [condição] for atendida, então [comportamento resultante]”. 

Seguem abaixo:

1. Se os seres humanos são racionais e podem aprender novas habilidades e competências, então é possível treiná-los para melhorar seu desempenho.

2. Se o desenvolvimento individual é necessário para o sucesso da organização, então é responsabilidade da organização investir em programas de desenvolvimento.

3. Se a falta de habilidades ou competências individuais está limitando o desempenho da organização, então é necessário investir em treinamentos para desenvolver essas habilidades.

4. Se os colaboradores estão insatisfeitos ou desmotivados, então é necessário investir em programas de desenvolvimento para aumentar sua satisfação e engajamento.

5. Se a organização quer se manter competitiva em um mercado em constante mudança, então é necessário investir em programas de desenvolvimento para manter seus colaboradores atualizados.

6. Se desenvolvermos os colaboradores, então eles se comportarão de forma mais aderente à nossa cultura organizacional.

Talvez você até pense “Poxa, isso não faz sentido? Parece ser bastante coerente.”

Eu também acho coerente, considerando que boa parte das práticas que acompanham essas hipóteses foram desenhadas no século passado, quando discussões sobre relações de poder, colonialismo e desigualdade social ainda não eram tão difundidas.

Problematizando o desenvolvimento

O problema com essas hipóteses é que elas ignoram que o “desenvolvimento” do ser humano é um fenômeno social, que acontece em rede. Também ignoram que o ser humano é quem desenvolve a si mesmo, por vontade própria. Não tem como forçar alguém a se desenvolver (você que trabalha com isso sabe bem, né?).

O desenvolvimento de pessoas nas organizações é apenas um nome bonito para uma estratégia que busca manter a conformidade social.

Opa, agora peguei pesado.

Calma. Não quero condenar o desenvolvimento de pessoas. Seria muito injusto da minha parte jogar fora todo o trabalho que tantas pessoas fizeram para criar espaços em que as pessoas pudessem realmente desenvolver suas habilidades e competências.

Eu definitivamente não quero atacar você, caso trabalhe com isso.

Quero provocar uma reflexão crítica sobre como esse tema é abordado em muitas organizações. E, além disso, quero chamar atenção às limitações desse olhar tão enfático no indivíduo.

Vem comigo que ainda vou oferecer alguns centavos sobre essa questão.

A Sombra do Desenvolvimentismo

Fonte: Unsplash (Nicolas Thomas)

Desenvolver pessoas pode remeter à ideia de que as pessoas não sabem cuidar de si mesmas e precisam de seus pais, ou no caso, das organizações, para fazer isso. Essa visão é um reflexo de uma cultura de paternalismo e controle, que coloca as organizações em uma posição de poder em relação aos colaboradores.

Percebo que esse discurso passa bem longe das organizações. Muitas vezes o desenvolvimento é feito sob o pretexto de “dar mais autonomia e maturidade” aos colaboradores.

Sinceramente, tudo isso dá a entender que os colaboradores não são capazes de cuidar de si mesmos e precisam da intervenção e orientação da empresa para se tornarem melhores.

O desenvolvimentismo muitas vezes se concentra mais em questões individuais. Isso acaba levando a uma visão limitada dos desafios organizacionais, ao desconsiderar elementos estruturais mais amplos, como as relações de poder, a governança, condições de trabalho e fatores ambientais.

A prática de desenvolver pessoas também está ligada a um certo tipo de violência simbólica, pois tenta mudar o tal mindset do indivíduo, impondo uma forma de pensar e agir considerada mais adequada ou valorizada pela organização. Essa imposição pode ser comparada a uma prática neocolonialista, na medida em que reflete uma atitude que se coloca como superior e capaz de moldar as pessoas de acordo com seus interesses.

Eu sei, eu sei, é meio pesadinho. Mas é urgente falar sobre essas questões! Precisamos de organizações que buscam práticas decoloniais ao invés de tentar colonizar seus funcionários com a sua cultura.

A mera existência de uma área de desenvolvimento de pessoas em uma organização pode indicar a centralização excessiva da tomada de decisão e da alocação de recursos.

Em organizações que consideram suas estruturas de poder e buscam descentralizá-las, a responsabilidade pelo desenvolvimento das pessoas é entregue nas mãos dos próprios funcionários, que são incentivados a tomar decisões sobre seu próprio desenvolvimento.

Além disso tudo que trouxe aqui, tem outros pontos que merecem atenção:

  • A ideia de que as habilidades e competências individuais são as principais responsáveis pelo sucesso ou fracasso de uma pessoa em sua carreira, desconsiderando fatores como privilégios sociais, oportunidades e condições estruturais;
  • A crença de que o desenvolvimento individual é a solução para problemas organizacionais complexos, ignorando a necessidade de mudanças estruturais e sistêmicas;
  • A pressão para que os colaboradores estejam constantemente se desenvolvendo e aprimorando suas habilidades, criando uma cultura de competição e individualismo em detrimento da colaboração;
  • A falta de atenção às necessidades de bem-estar emocional e psicológico dos colaboradores, focando apenas em habilidades técnicas e competências profissionais;
  • A imposição de um modelo único de sucesso e desenvolvimento, que pode não ser adequado ou valorizado por todos os colaboradores e pode reforçar estereótipos e preconceitos;
  • Treinamentos, que muitas vezes, desconsideram a sobrecarga das pessoas e propõem uma série de atividades para quem já tem muita coisa no prato.

Muitas vezes essas ideias ficam implícitas no discurso do desenvolvimento de pessoas para que sejam mais maduras e autônomas.

Pode ser difícil revelar o que fica encoberto num discurso que traz uma preocupação em cuidar das pessoas.

Como vocês podem ver, esse negócio de desenvolvimento vem com tensões bem cabeludas. Expondo a coisa assim até parece que é o fim do mundo e o melhor é jogar a coisa toda fora… Mas não é bem assim.

Não quero convidar você para uma reflexão crítica e parar por aí. Existem caminhos que  prezam  pela emancipação das relações no ambiente de trabalho e cuidam desse tema de desenvolvimento.

O que fazer, então?

Fonte Unsplash (Greenforce Staffing)

Desenvolver pessoas pode ser comparado ao trabalho de um jardineiro, que cria condições para que as plantas cresçam e floresçam por conta própria, ao invés de um escultor, que modela e esculpe a matéria de acordo com sua própria visão. Essa metáfora destaca a importância de criar condições favoráveis para o crescimento e desenvolvimento autônomo das pessoas, ao invés de tentar moldá-las conforme as necessidades da organização.

A primeira coisa é parar de achar que as pessoas precisam ser desenvolvidas. A organização pode e deve criar condições para que os funcionários cresçam e se fortaleçam de todas as formas. Agora, fazer isso de forma obrigatória é bem ruim.

Ninguém desenvolve ninguém. As pessoas se desenvolvem em comunhão.

Paráfrase de Paulo Freire

Claro que se alguém trabalha numa indústria metalúrgica terá que fazer uma série de treinamentos técnicos para estar no ambiente de trabalho.

Não estou sugerindo aqui que não existam formações compulsórias nas organizações.

O meu ponto é que os recursos devem existir para que os funcionários utilizem se quiserem. Em outras palavras, libera a grana pra galera se desenvolver como bem entender. Respeitando, como é óbvio, as restrições de cada contexto.

Este é o ponto que diz respeito à questão do desenvolvimento em si.

Trabalhe o Sistema

Agora pensa comigo. Todas essas abordagens desenvolvimentistas querem estimular determinados comportamentos nos indivíduos. Certo?

Para mudar o comportamento das pessoas, você precisa alterar as estruturas em torno do indivíduo para que ele se comporte de maneira diferente. 

Dessa forma, ao invés de ditar o modo de pensar do indivíduo, você altera as interações entre os elementos do ambiente, permitindo que a pessoa escolha sua própria maneira de se adaptar.

Investir em educação é importante, mas dificilmente teremos tempo para esperar que as pessoas tomem consciência e mudem seus comportamentos.

É importante ressaltar que uma coisa não anula a outra. Por exemplo, precisamos investir em ações de conscientização das pessoas sobre o impacto dos agrotóxicos, desigualdade de gênero, disparidades sociais e tudo mais.

Mas se não houverem políticas públicas (estruturas) que propõem intervenções nessas questões a sociedade entra em colapso.

É por isso que o título desse post é “Desenvolva Sistemas, Não pessoas”. É hora de desenhar organizações que tratam as pessoas como adultos capazes de fazerem escolhas, tomarem decisões e seguirem seus próprios caminhos. As ajudas e os empurrõezinhos continuam sendo úteis e necessários, mas propostos de uma forma diferente.

Não adianta nada regar a planta (indivíduo) se o solo (sistema) não está bem cuidado. :)

Muitas vezes, pessoas nas organizações acreditam que treinamentos e programas de desenvolvimento são a solução para diversos problemas internos.

Fonte: Unsplash (Benjamin Jopen)

Trabalhar em sistemas organizacionais é como construir uma casa. Se nos concentrarmos apenas no aprimoramento de cada tijolo (desenvolvimento individual), sem levar em conta o projeto e a estrutura geral da casa (sistema organizacional), a casa pode ser instável e ineficiente, por mais bonito que o tijolo seja.

Um exemplo comum de problema que muitas organizações tentam resolver com treinamentos é a falta de diversidade e inclusão. É comum que as empresas criem programas de treinamento para ensinar os funcionários a serem mais inclusivos e a lidar com as diferenças. Fala sério, né gente? Sabemos que na maioria das vezes isso não é suficiente para criar uma cultura de inclusão.

Para que uma organização seja inclusiva, é necessário trabalhar o sistema como um todo. Isso inclui revisar as políticas de recrutamento e seleção, salários, investigar possíveis vieses inconscientes e pressupostos da organização e aí sim investir em programas educativos que abordem as desigualdades estruturais que afetam a diversidade e inclusão.

Outro exemplo é a falta de engajamento dos funcionários. Muitas organizações acreditam que o treinamento de liderança e a promoção de uma cultura de feedback são a solução para esse problema. No entanto, muitas vezes a falta de engajamento dos funcionários é causada por problemas estruturais, como falta de reconhecimento, baixos salários, excesso de trabalho e falta de autonomia.

Um outro olhar

Quero convidar você a ajudar organizações a equilibrarem o seu foco tanto em intervenções estruturais quanto no desenvolvimento de pessoas.

Não dá pra focar apenas em um lado, ambos são relevantes.

Espero que esse punhado de palavras tenha despertado curiosidade em você para aprender mais sobre como trabalhar sistemas e explorar outros caminhos que permitam o auto-desenvolvimento na sua organização.

Se você se identificou com essas ideias e quer próximos passos claros sobre como seguir adiante com esse tema, você pode:

  • Investir em estruturas e políticas que permitam aos colaboradores tomarem decisões e fazerem escolhas de forma autônoma.
  • Proporcionar oportunidades de desenvolvimento que sejam alinhadas com os valores e interesses pessoais dos colaboradores, e não apenas com as necessidades da organização.
  • Reconhecer que o desenvolvimento de habilidades e competências individuais não é suficiente para resolver problemas organizacionais complexos, e que mudanças estruturais e sistêmicas também são necessárias.
  • Oferecer recursos e informações para que os colaboradores possam tomar decisões sobre seu próprio desenvolvimento, sem que isso seja imposto pela organização.
  • Se for fazer treinamentos, busque abordagens que prezam pela autodireção e aprendizagem coletiva ao invés de aulas expositivas (tipo sala de aula).

Além disso, nós da Target Teal podemos te ajudar com esses e muitos outros desafios organizacionais. Para aprender mais sobre mudança sistêmica você pode entrar no nosso curso de Pensamento Sistêmico e Complexidade Aplicados e o Culture Hacking.

Nós podemos te ajudar a desenhar intervenções para as questões estruturais que precisam mudar para que a sua organização seja mais humana e responsiva aos desafios do século XXI. 

Chama a gente para tomar um cafézinho e podemos falar sobre consultoria!

Obrigado por ficar até aqui comigo! :)

Este post contou com feedback, sugestões e revisão das seguintes pessoas:

Tami Lima, Gabriela Inácio, Raquel Ferreira, Maria Thereza, Aline Figueiredo, Samir Bravo, Erika Rios, Mônica Santos, Cynthia Mendes, Eliza Fortuna, Felipe Novaes, Rodrigo Bastos e Davi Zimmer.

Sou muito grato pela ajuda de cada uma dessas pessoas na concepção deste artigo. <3