Vamos falar a verdade: quem nunca sonhou em ser o grande líder, o herói que salva a empresa da crise, o visionário que guia a equipe para o sucesso?

Afinal, somos bombardeados desde cedo com histórias de líderes heroicos, desde os filmes de Hollywood até os livros de negócios que prometem a fórmula mágica para o sucesso. Tá bem, algumas pessoas provavelmente nunca sonharam com isso.

Vamos tentar por outro lado então.

Quantas vezes você já viu um líder excepcional ser contratado a peso de ouro, com a promessa de revolucionar a empresa, e acabar fracassando miseravelmente?

Ou quantas vezes você já sentiu frustração e desmotivação ao interagir com um chefe que centraliza todas as decisões, ignora suas ideias e age como se tivesse todas as respostas?

É aquela coisa estranhamente rara que, por algum motivo, acontece muito mais do que gostaríamos.

A busca incansável por esse líder heróico pode estar nos levando por um caminho duvidoso, perpetuando um modelo de liderança prejudicial para as organizações e para a sociedade como um todo.

O tema da liderança, embora muito popular no meio corporativo, é algo que faz parte da vida de qualquer pessoa. E discutir o fenômeno da liderança é sempre uma investigação sobre poder e privilégio.

E é disso que vamos falar neste artigo.

Boas vindas ao mundo da liderança zumbi: um conjunto de ideias sobre liderança que já estão mortas, mas persistem no mundo como mortos-vivos, espalhando a desmotivação, a ineficiência e a frustração por onde passam.

Antes de prosseguirmos, vamos esclarecer o que quero dizer com “liderança”.

Tradicionalmente, a liderança é vista como um cargo de poder, ocupado por alguém que controla, manda e decide pelos outros.

Muitas vezes é definida como “alguém que tem a capacidade de mover as pessoas para atingir um determinado objetivo“.

Uma definição mais contemporânea e útil de liderança a vê como um processo social emergente de influência mútua, onde líderes e seguidores colaboram para construir um significado compartilhado, alcançar objetivos comuns e gerar valor para todos.

A “liderança zumbi”, por outro lado, se agarra ao modelo antigo, perpetuando mitos que, além de afetar a capacidade de resposta das organizações, também afetam a qualidade de vida das pessoas no ambiente de trabalho.

É como um vírus que se espalha silenciosamente, transformando empresas e sociedades em verdadeiros cemitérios de ideias e talentos.

Mas não se desespere! Assim como nos filmes de zumbi, existem caminhos para sobreviver ao apocalipse. Para combater esse vírus, precisamos primeiro entender como ele opera, quais são seus sintomas e como ele se disfarça no dia a dia das organizações.

Desmascarando a Liderança Zumbi

A “liderança zumbi” se manifesta por meio de um conjunto de crenças e premissas que, embora aparentemente inofensivas e até mesmo inspiradoras, na verdade, perpetuam um modelo de liderança ultrapassado e disfuncional.

Essas crenças, que muitas vezes são apresentadas como verdades absolutas e inquestionáveis, influenciam a forma como as empresas selecionam, desenvolvem e recompensam seus líderes.

Para nos ajudar a identificar esses “mortos-vivos” que caminham entre nós, Haslam, Alvesson e Reicher, autores do artigo que inspirou este texto, utilizam o que eles chamam de “axiomas”.

Um axioma é uma premissa considerada como verdade autoevidente, que serve como base para outras ideias e argumentos.

No caso da “liderança zumbi”, os axiomas são as crenças e premissas que, embora frequentemente apresentadas como inquestionáveis, na verdade sustentam um modelo de liderança ultrapassado e danoso.

A tabela abaixo mostra todos os axiomas e no restou do artigo irei abordar cada um deles em detalhes.

AxiomaIdeia ChavePrincipais ProblemasPrática Org. Exemplo
1. Liderança é apenas sobre líderesA liderança é exclusivamente sobre aqueles que ocupam posições de liderança formal, como CEOs, presidentes e generais. Além disso, essa liderança pode ser compreendida analisando apenas estes líderes.Ignora que a liderança é um processo relacional, onde a prova definitiva (se ela existe ou não e suas qualidades) está nas ações dos seguidores e na relação com a pessoa líder.Programa de desenvolvimento de liderança envolvendo apenas as pessoas em cargos de liderança.
2. Grandes líderes possuem qualidades específicas que ninguém mais temCertos traços e qualidades, como carisma, inteligência ou assertividade, são intrínsecos aos grandes líderes. Presume que essas qualidades são a chave para o sucesso na liderança. A eficácia da liderança depende mais da percepção dos seguidores do que das qualidades intrínsecas do líder. Traços considerados positivos podem não se refletir em todos os contextos.Modelo de Competência de Liderança
3. Há coisas específicas que todos os grandes líderes fazemExistem comportamentos específicos que definem a liderança eficaz, como ser justo ou promover mudanças.Não leva em conta que esses comportamentos precisam ser adaptados ao contexto do grupo liderado.Palestra de um grande líder para ensinar sobre como liderar.
4. Todos reconhecemos um grande líder quando vemos umAcredita que há consenso universal sobre quem são os grandes líderes.Esse consenso geralmente reflete as visões de grupos dominantes e ignora a diversidade de opiniões e experiências de diferentes grupos sociais.Programa de premiação dos melhores líderes.
5. Liderança é tudo igualHá uma essência universal de liderança que se aplica em todos os contextos, negligenciando as variações contextuais e culturais.A liderança deve ser moldada pelas necessidades, cultura e dinâmica específica de cada grupo ou organização.Cursos de liderança para os gestores de uma empresa dado por um oficial militar aposentado.
6. Liderança é uma habilidade especial limitada a pessoas especiaisEnfatiza que a liderança é uma habilidade rara e preciosa, possuída apenas por um pequeno grupo de indivíduos excepcionais.Essa visão perpetua desigualdades de status e reconhecimento e pode alienar e desmotivar seguidores, além de restringir a adaptação e inovação.Programas de identificação e desenvolvimento de jovens com alto potencial de liderança.
7. Liderança é sempre boa e é sempre boa para todosAssume que a liderança é intrinsecamente benéfica e que é sempre boa e beneficia a todos.A liderança pode favorecer certos grupos à custa de outros e pode ser utilizada para justificar comportamentos autoritários e discriminatórios.Ausência ou enfraquecimento dos canais de denúncia sobre abusos de poder nas posições de liderança.
8. As pessoas não conseguem trabalhar sem líderesSugere que a liderança é sempre necessária para o sucesso do grupo e que, sem líderes, os grupos seriam ineficazes e desorganizados.Isso desconsidera a evidência de que grupos podem se auto-organizar eficazmente e que a liderança centralizada pode, na verdade, prejudicar a coesão e a eficácia do grupo.Contratação de um gestor apenas para cuidar do agendamento de férias e distribuição de projetos para os membros da equipe com menos experiência.
Tabela adaptada do original de Haslam, Alvesson e Reicher(2024).

Axioma 1: Liderança é apenas sobre líderes

  • Afirmação Principal: A liderança é prerrogativa daqueles que ocupam cargos formais de liderança e pode ser compreendida focando-se apenas nos líderes.
  • Problema Principal: A liderança é legitimizada pela “seguidança” e, portanto, exige que estudemos e compreendamos os seguidores.

A liderança zumbi idolatra a figura do líder individual, colocando-o no centro das atenções e atribuindo-lhe todo o crédito pelo sucesso da empresa.

É o CEO que estampa a capa da revista de negócios, o executivo que dá entrevistas para a mídia, o gerente que recebe os bônus milionários. Mas essa fixação no topo cria uma série de problemas.

Em primeiro lugar, desmotiva as pessoas. Quando os colaboradores sentem que suas contribuições não são reconhecidas e valorizadas, a energia e o entusiasmo se esvaem. Eles se tornam meros executores de ordens, sem voz nem poder de decisão.

Em segundo lugar, inibe a comunicação transparente e o aprendizado mútuo.

A distância entre líderes e liderados cria uma barreira invisível que dificulta o diálogo honesto e aberto. Os colaboradores temem retaliações, escondem problemas e deixam de compartilhar ideias. A liderança zumbi transforma organizações em um jogo de telefone sem fio, onde a mensagem se perde no caminho e alguém tem que pagar o pato.

Em terceiro lugar, centraliza a tomada de decisão, tornando-a ineficaz e lenta. A crença de que o líder tem todas as respostas leva a decisões unilaterais, sem a participação de quem realmente entende os processos e desafios do dia a dia.

A liderança “real”, muitas vezes, emerge de colegas experientes que fornecem orientação e apoio, e não dos chefes com cargos formais.

Axioma 2: Grandes líderes possuem qualidades específicas que ninguém mais tem

  • Afirmação Principal: Certas qualidades (por exemplo, inteligência, carisma) equipam pessoas específicas para a liderança.
  • Problema Principal: O que importa é se essas qualidades são percebidas pelos seguidores.

A liderança zumbi nos leva a crer que líderes nascem prontos, dotados de qualidades especiais que os diferenciam dos meros mortais.

É a busca incessante pelo “fator X”, o ingrediente secreto que transforma pessoas comuns em líderes extraordinários. Mas essa crença em qualidades inatas de liderança é um mito que precisa ser desmistificado.

Um exemplo clássico dessa fixação em qualidades dos líderes é o livro “O Fator Churchill: Como um homem fez a história”, de Boris Johnson. A obra perpetua a ideia do líder heroico, atribuindo o sucesso da Grã-Bretanha na Segunda Guerra Mundial exclusivamente a Winston Churchill, ignorando as contribuições de outros líderes, dos soldados e da população em geral. É como se a Segunda Guerra Mundial tivesse sido vencida por um único homem incrível, o que sabemos ser uma simplificação grotesca da realidade.

Além disso, a longa lista de qualidades que já foram associadas à liderança eficaz – inteligência, carisma, humildade, persistência, etc. – é contraditória e confusa. Qual a fórmula mágica? Ser extrovertido ou introvertido? Decisivo ou conciliador? A verdade é que não existe uma receita pronta para a liderança.

Liderança é sobre a relação entre a pessoa líder e as pessoas que a reconhecem como tal.

Muitas vezes o que os líderes “são” não é tão relevante. Afinal, a qualidade da liderança está sempre nos olhos de quem vê.

Axioma 3: Há coisas específicas que todos os grandes líderes fazem

  • Afirmação Principal: Comportamentos específicos (por exemplo, ser justo, iniciar mudanças) são a marca registrada da liderança eficaz.
  • Problema Principal: A liderança exige que o comportamento seja adaptado às circunstâncias do grupo que está sendo liderado.

O guia de melhores práticas da liderança zumbi diz que os líderes precisam “cuidar” daqueles que lideram, respeitando-os e tratando-os de forma justa. Mas, ao mesmo tempo, eles também precisam definir – e muitas vezes redefinir – os papéis e responsabilidades das pessoas para “garantir” que sejam apropriados para a tarefa que têm pela frente.

Além disso, a noção de que os líderes precisam provar suas credenciais de liderança redesenhando e reestruturando sua organização em todas as oportunidades pode ser considerada uma das ideias centrais da gestão contemporânea.

A liderança zumbi é cheia de listas de “melhores práticas” e “mandamentos” que prometem o sucesso na liderança. É o líder que precisa “inspirar a equipe”, “comunicar a visão” e “tomar decisões difíceis”.

O problema é que, mesmo que não seja desastrosa, a mudança organizacional impulsionada por líderes muitas vezes é simplesmente inútil.

Não que as pessoas sejam inúteis. Mas tentar mudar um sistema social sozinho é impossível.

A falácia presente neste axioma é bastante parecida com o primeiro.

Os traços reconhecidos como pertecendo a “líderes” são altamente dependentes da comunidade de seguidores.

Os seguidores são mais propensos a ver o mesmo comportamento de líder como justo quando ele é realizado por um líder que é visto como “um de nós”, em vez de “um deles” (membro do grupo interno ao invés de um membro do grupo externo).

Além disso, a justiça de qualquer forma de distribuição depende de quem são as pessoas entre as quais os recursos estão sendo distribuídos.

Dar o mesmo a todos é frequentemente tido como injusto se alguns dos beneficiários forem “eles” (ou seja, um grupo externo) em vez de “nós”.

Enfim, acaba que o que “o líder faz” e “os traços” que essa pessoa tem, acabam não importando muito. O que é relevante são as percepções e avaliações dos seguidores sobre o comportamento dessas figuras.

Axioma 4: Todos reconhecemos um grande líder quando vemos um

  • Afirmação Principal: Há um consenso de que alguns líderes são melhores do que outros.
  • Problema Principal: Não há. O consenso é fabricado ao privilegiar perspectivas específicas.

A liderança zumbi nos faz crer que existe um consenso universal sobre o que constitui um grande líder, como se a liderança fosse uma qualidade objetiva que pudesse ser medida e avaliada por qualquer pessoa. Mas a percepção da liderança é altamente subjetiva, influenciada por nossa cultura, nossos valores e nossos próprios interesses.

As pessoas veem a liderança como sendo mais eficaz e legítima quando é exercida por alguém que parece e soa como elas – e menos eficaz e legítima quando é exercida por alguém que não parece ou soa como elas.

O que as pessoas querem e esperam de um líder e como avaliam qualquer líder em particular – varia muito com sua identidade e valores.

A crença na objetividade da liderança pode levar à escolha de líderes baseada em critérios superficiais, como aparência, carisma e popularidade.

Claramente, então, a percepção da grandeza da liderança é muito mais sobre quem está fazendo o julgamento do que sobre quem está sendo julgado.

Embora a liderança zumbi goste de imaginar que existe um consenso em torno de quem são os grandes líderes e sobre o que constitui grande liderança, esse consenso é uma ilusão.

É produzido privilegiando as perspectivas de grupos específicos que têm poder e status na sociedade – acadêmicos de elite, comentaristas de mídia, executivos seniores – e pedindo-lhes que definam quem são os grandes líderes e o que os torna grandes.

O resultado disso é que os líderes que são celebrados como “grandes” são aqueles que atendem aos interesses desses grupos específicos, enquanto os líderes que são demonizados são aqueles que desafiam seus interesses ou representam grupos que são desprivilegiados ou marginalizados.

Mas tudo isso é bem normal na liderança zumbi. Por isso precisamos aprender a identificar os sintomas desse vírus tão danoso.

Axioma 5: Liderança é tudo igual

  • Afirmação Principal: Existe uma “liderança” essencial que pode ser discernida em todos os contextos.
  • Problema Principal: Não existe. O que a liderança parece ser muda (e precisa mudar) com o contexto e com as diferentes perspectivas das pessoas.

A liderança zumbi prega a uniformidade da liderança, como se existisse uma única perspectiva que funciona em qualquer contexto. É a crença no líder “faz-tudo”, que pode ser transferido de uma empresa para outra, de um setor para outro, sem precisar se adaptar ou aprender novas habilidades.

O problema é que e essa concepção ignora que a liderança é sempre dependente de contexto. Não acontece no vácuo.

O que constitui liderança no contexto “crianças brincando num parquinho” é totalmente diferente do que significa liderança numa multinacional.

Da mesma forma, as qualidades e os comportamentos que são valorizados em líderes variam muito de cultura para cultura.

Consequentemente, o que a liderança parece ser, e o que os líderes precisam fazer para serem eficazes e como eles são julgados pelos outros varia muito dependendo do contexto no qual essa liderança está sendo exercida.

Mas a liderança zumbi simplesmente ignora essas nuances.

Na zumbilândia acredita-se que a liderança é um fenômeno único e objetivo, independente de contexto.

Sendo assim, se você for uma pessoa líder excepcional em um contexto, presume-se que você também será excepcional em qualquer outro contexto.

Um exemplo clássico é o fenômeno do “líder superstar”, que é recrutado para liderar organizações com base em sua reputação, em vez de sua experiência ou conhecimento específico.

O problema é que líderes que são eficazes em um contexto podem ser desastrosos em outro.

Isso ocorre porque a liderança eficaz requer uma compreensão profunda do contexto específico, dos desafios e oportunidades que ele apresenta, e das necessidades e expectativas dos seguidores.

A crença de que toda liderança é a mesma também leva à ideia de que existem “melhores práticas” de liderança que podem ser aplicadas em qualquer situação.

Dizer que liderança é tudo igual é uma simplificação perigosa que ignora a complexidade e a diversidade desse fenômeno multifacetado.

Axioma 6: A Liderança é uma habilidade especial limitada a pessoas especiais

  • Afirmação Principal: A liderança é uma atividade de elite que é extraordinária, exclusiva e cara.
  • Problema Principal: Tratar líderes como superiores aos grupos que lideram cria problemas para esses grupos.

A liderança zumbi perpetua a ideia de que a liderança é um dom, uma habilidade especial que apenas alguns poucos escolhidos possuem. É a crença na elite dos líderes, que se coloca acima dos outros, justificando a hierarquia, a desigualdade e a concentração de poder.

De forma mais geral, colocar os líderes e sua liderança em um pedestal muitas vezes pode diminuir a eficácia da organização porque cria uma sensação de distância entre aqueles no topo e os membros da equipe da linha de frente que eles estão tentando liderar.

Além disso, conceder riquezas aos líderes enquanto nega recompensas a seus subordinados limita a disposição dos subordinados em fornecer feedback, que é essencial para a detecção e correção de problemas.

Esse axioma é bastante danoso e tem uma série de consequências observáveis.

Por exemplo, ele alimenta uma baixa auto estima nos liderados. É comum ouvir narrativas de colaboradores que pensam que “nunca serão tão bons quanto seus superiores” ou que não “possuem maturidade para serem promovidos”.

No caso dos grupos historicamente desfavorecidos(como mulheres, pessoas pretas e pessoas com deficiência) o fenômeno é ainda mais expressivo.

Entender a liderança como sendo exclusiva também gera um senso de gandiosidade entre os líderes. As chefias entendem que o trabalho deles é essencial para melhorar toda a operação e por isso eles merecem salários muito maiores.

De fato, com privilégios como esses, os defensores da liderança zumbi parecem não se importar com essas questões.

A elitização da liderança desestimula o desenvolvimento de talentos, cria uma cultura de dependência e passividade, e perpetua a desigualdade, limitando as oportunidades de crescimento e desenvolvimento para a maioria dos colaboradores.

Axioma 7: A Liderança é sempre boa e é sempre boa para todos

  • Afirmação Principal: A liderança é um bem universal do qual todos se beneficiam.
  • Problema Principal: Não é. Eles não se beneficiam. A liderança pode apoiar a desigualdade e a tirania.

Talvez a liderança não seja sempre grandiosa. Mas ela é sempre boa. Tudo que tiver alguma coisa que se considera positivo na sociedade faz parte desse conceito de ldierança.

A liderança zumbi nos vende a imagem do líder idealizado, associando a liderança a valores positivos como integridade, ética e altruísmo. É o líder que “inspira”, “motiva” e “transforma” a empresa e a vida das pessoas.

Isso não quer dizer que aqueles que defendem a liderança zumbi não reconheçam que os líderes às vezes fazem coisas ruins ou lideram grupos que fazem coisas ruins.

No entanto, quando o fazem, eles tendem a tratar isso como um desvio da liderança “real” ou “normal” na qual desejam se concentrar.

A ideia de que a liderança é fundamentalmente uma força para o bem está muito presenhte em diversos livros best-sellers sobre líderes.

Isso ocorre porque a liderança zumbi pressupõe um “mundo de consenso” no qual o que é bom para o líder e para a organização é bom para o indivíduo – e para a sociedade.

E, claro, mais uma vez, estamos falando de um mundo fantasioso, completamente desconectado da realidade.

É fácil descontruir a ideia de que a liderança é uma força do bem.

Um líder pode lucrar ao aumentar a rentabilidade da empresa, mas isso pode vir ao custo de piores condições de trabalho, salários mais baixos e mais demissões para os trabalhadores.

Além disso, pregrar ideias como “resultado a todo custo”, “sede por mudança” e “predição e controle” é uma receita infalível para tornar a vida das pessoas miseráveis no ambiente de trabalho.

Sem falar da arrogância, o narcisismo e as táticas de intimidação e assédio que são conhecidas de pessoas que foram infectadas pelo vírus da liderança zumbi.

E mesmo quando um líder é eficaz em motivar e mobilizar seguidores e avançar os interesses do grupo como um todo, isso pode vir às custas dos interesses (ou, na pior das hipóteses, da sobrevivência) de outros grupos.

O poder (quase sempre) corrompe. E líderes, como qualquer ser humano, são falhos e suscetíveis a cometer erros e abusos.

Axioma 8: As Pessoas não conseguem trabalhar sem Líderes

  • Afirmação Principal: Todos precisam de liderança e a liderança é sempre necessária para o sucesso do grupo.
  • Problema Principal: Eles não precisam. A liderança pode tornar os grupos menos eficazes, especialmente se levar os seguidores a se desligarem.

Nenhum grupo não consegue se organizar sem líderes. Quanto mais liderança tivermos, melhor!

Como um gupo se organizaria de forma eficaz sem alguém para dirigir o grupo e organizar as coisas?

Os filmes e a literatura mainstream contam histórias sinistras sobre sociedades apocalípticas que não tinham uma liderança. Normalmente esse é o enredo básico para iniciar o conto e introduzir a figura do líder heróico.

A liderança zumbi nos faz crer que as pessoas são incapazes de funcionar sem um líder para guiá-las, como se a autonomia, a responsabilidade e a inteligência coletiva fossem ameaças à ordem e ao progresso.

Esses arquétipos culturais se baseiam em dois pressupostos básicos:

  • Primeiro, que as narrativas de liderança válidas giram necessariamente em torno de uma figura de liderança heroica singular, e
  • Segundo, que as pessoas não podem se organizar efetivamente sem alguém para liderá-las.

Mas a experiência mostra que as pessoas são capazes de se auto-organizar, de tomar decisões e de resolver problemas sem a necessidade de um líder para supervisioná-las a todo momento.

Por um lado, uma das afirmações recorrentes da psicologia das multidões, por exemplo, é que os agitadores – “líderes” – estão sempre dirigindo as massas.

Mas existem evidências bem concretas de que as multidões conseguem se organizar sem uma liderança central. Especialmente quando possuem um senso comum, uma identidade e algo que motiva uma ação em massa.

Temos pelo menos três danos que frequentemente são causados por esse axioma:

  • A própria noção de que você precisa de líderes é um insulto ao resto do grupo.
  • Quando um líder é tido como “especial”, acaba por afirmar sua presença e desperdiçar o tempo das pessoas com atividades que não agregam valor algum para os indivíduos e para as organizações.
  • Se os líderes forem apresentados como “excepcionais”, os seguidores podem ficar inclinados a serem menos proativos e confiar nas figuras de liderança para fazerem todo o trabalho.

A ideia é basicamente a seguinte: onde quer que um líder tenha assumido esse papel, nós seguidores devemos estar gratos por essa sorte.

É assim que o baile segue na liderança zumbi. Enquanto isso, alimentamos uma dicotomia entre líderes e seguidores e reforçamos uma noção de que as pessoas são estúpidas e por isso não conseguem se organizar sem um empurrãozinho.

Por que a ameaça zumbi é tão séria?

A liderança zumbi não é apenas um conjunto de ideias antiquadas e inofensivas. Ela é uma ameaça real para as empresas, para os indivíduos e para a sociedade como um todo.

Ao perpetuar a desigualdade, a liderança zumbi concentra o poder e a riqueza nas mãos de poucos, criando uma cultura de privilégios e ressentimento.

Além disso, a liderança zumbi impede o desenvolvimento do potencial humano em sua plenitude. Ao limitar a autonomia e a criatividade dos colaboradores, a liderança zumbi desperdiça talentos e oportunidades. As organizações se tornam reféns de um pequeno grupo de “iluminados” que, muitas vezes, estão mais preocupados em manter seu poder do que em promover o crescimento e o bem-estar da equipe.

O impacto da liderança zumbi se estende para além das empresas, contribuindo para a desconfiança nas instituições, o aumento da polarização social e a erosão da democracia.

A crença de que apenas alguns poucos são capazes de liderar e que a maioria das pessoas precisa ser guiada por figuras de autoridade alimenta o populismo, o autoritarismo e a descrença na capacidade da sociedade de resolver seus próprios problemas.

Por que a liderança zumbi passa tão despercebida?

Se a liderança zumbi é tão prejudicial, por que ela continua a assombrar as empresas?

Por que tantas pessoas ainda acreditam no mito do líder heroico e se recusam a questionar esse modelo ultrapassado?

A resposta pode estar na cultura, na economia e na própria estrutura das organizações e da sociedade.

Somos expostos desde cedo a histórias de líderes salvadores, de heróis que enfrentam desafios impossíveis e conquistam a vitória com sua inteligência, coragem e determinação. A mídia, a literatura, o cinema e a educação reforçam essa crença, tornando difícil enxergar a realidade da liderança zumbi e seus efeitos negativos.

A indústria da liderança lucra com a perpetuação desse mito. Livros, cursos, palestras, workshops e consultores prometem soluções mágicas e receitas prontas para o sucesso na liderança, alimentando a crença de que a liderança é uma habilidade especial que pode ser aprendida por um preço. A busca por “segredos” e “fórmulas mágicas” para a liderança desvia a atenção da necessidade de construir uma cultura de colaboração e autonomia.

A academia, muitas vezes, se torna cúmplice da liderança zumbi ao se concentrar em debates teóricos e ignorar as implicações práticas da liderança para o mundo real. A crítica à liderança tradicional é frequentemente marginalizada, enquanto os modelos heroicos continuam a ser ensinados e celebrados.

A desconexão entre o mundo acadêmico e a realidade das empresas também contribui para a perpetuação de um modelo de liderança que não serve mais aos desafios do século XXI.

A liderança zumbi persiste porque se beneficia da nossa falta de atenção, da nossa crença em mitos e da nossa dificuldade em romper com os modelos tradicionais. E, claro, persiste também porque atende os interesses da hegemonia.

Mas a mudança é possível.

Ao desmascarar os axiomas da liderança zumbi, podemos começar a construir um novo caminho para a liderança, um caminho que valorize a colaboração, a autonomia e a inteligência coletiva.

E as massas, embora muitas vezes envolvidas com as piores calamidades que já testemunhamos na humanidade, também possuem sua sabedoria.

Sobrevivendo ao apocalipse zumbi

Para sobreviver ao apocalipse, precisamos construir abrigos e fazer alianças.

Muitas vezes esses abrigos se manifestam nas relações mais próximas, ao buscarmos pessoas que também estão lutando contra a liderança zumbi.

Formar uma aliança anti-zumbi ou participar de uma que já existe é um ótimo caminho para manter a sanidade mental e sobreviver ao apocalipse.

Ninguém sobrevive sozinho a um apocalipse. Você pode e deve criar alianças anti-zumbi na sua organização. O caminho é árduo. Ás vezes você vai ter que fazer de forma furtiva e pode acabar sendo devorado no caminho, mas o apocalipse é assim mesmo.

A liderança não é um cargo, mas um processo social de influência e colaboração, que pode ser exercido por qualquer pessoa, em qualquer nível da organização.

A liderança é um fenômeno social que emerge a partir da interação dos indivíduos com as estruturas sociais. Não existe em isolamento.

Para que a liderança aconteça, também é preciso ter quem siga. E seguir, paradoxalmente, muitas vezes é o maior ato de liderança que alguém pode fazer.

Talvez agora seja o momento de colocar aqui uma lista com bullet points com as minhas recomendações do que fazer.

Se você quer combater a liderança zumbi, considere os seguintes pontos:

  • Reinventar a Liderança: Abandonar a crença no líder heroico e reconhecer que a liderança é um processo social, distribuído e emergente, que surge da colaboração e da interação entre os membros da equipe.
  • Transformações Estruturais: Implementar modelos de organização que promovam a autonomia, a responsabilidade compartilhada e a tomada de decisão distribuída, como a tecnologia social aberta que desenvolvemos na Target Teal chamada Organizações Orgânicas(O2).
  • Desenvolver Habilidades para a Autogestão: Investir no desenvolvimento de habilidades como comunicação assertiva, transformação de conflitos e tomada de decisão distribuída, para que os colaboradores possam participar ativamente da gestão.
  • Oferecer espaços para conversas difíceis: Criar rituais que proporcionam espaços para que as pessoas possam lidar com questões relacionais de forma aberta e não-violenta.
  • Eliminar incentivos perversos: Mapear elementos na estrutura organizacional que estimulam comportamentos da liderança zumbi e elimininá-los por completo.

Além desses pontos, é preciso divulgar os axiomas da liderança zumbi para o máximo de pessoas, pois muitas nunca tiveram contato com uma visão crítica sobre esse tema.

Ufa! É “só isso”. Se fizermos essas coisas aí em cima tá tudo bem. Talvez tenhamos até o privilégio de ver novas gerações desfrutando de uma vida menos zumbi.

Ok, chega de brincadeira. Estou ciente de que essa abordagem sobre o tema de liderança pode incomodar alguns e enfurecer outros.

Mas o meu objetivo, honrando o desejo dos autores do artigo original, é tornar isso atraente e acessível para o máximo de pessoas possível – mesmo que tenha que perturbar algumas no caminho.

A era do líder heroico está chegando ao fim. O futuro pertence às organizações que ousarem abandonar a liderança zumbi e amplificar a inteligência coletiva de seus colaboradores.

É hora de acordar do sonambulismo e construir um novo modelo de liderança, mais humano, ético e eficaz, que promova não só o sucesso das empresas mas o bem-estar das pessoas e do planeta como um todo.


Créditos

O meu trabalho com este artigo foi de simplificar e traduzir o que o artigo original propôs de forma acessível. Eu usei uma linguagem menos acadêmica, e omiti os estudos e autores citados, apostando que pessoas que não estão acostumadas com a literatura acadêmica vão se engajar mais com esse conteúdo neste formato.

Todos os axiomas e a estrutura desse artigo foram diretamente inspirados no artigo de Haslam, Alvesson e Reicher.

O artigo original é magnífico e incontornável. Eu recomendo muito a leitura não só do artigo em si, como de todas as referências que foram mencionadas.

O que os autores apresentam neste artigo era o arcabouço teórico que nós precisávamos para fundamentar o que estamos falando há anos aqui na Target Teal.

Artigo Original: