Trabalhando com autogestão, dando cursos e consultoria, costumo encontrar pessoas dizendo que querem criar o seu próprio modelo de gestão, seu framework de governança ou sua maneira de organizar o trabalho sem fazer o uso da cadeia de comando e, nesse sentido, compartilham comigo um objetivo nobre e desafiante.

Porém, a maioria dessas pessoas nunca trabalhou em uma organização autogerida. Mas sinto que elas foram muito traumatizadas trabalhando em organizações hierárquicas. Me parece que para elas, a autogestão não se popularizou pois não existem práticas ou tecnologias sociais que funcionem e que agradem a ponto de se espalhar pelo mundo todo e tornar-se mainstream. Portanto, sobrou para elas criarem algo único, e quem sabe, revolucionário.

Para essas pessoas, tenho três mensagens que podem soar como duras ou ríspidas.

  1. Note que o capitalismo não é um ambiente fértil para a autogestão.
  2. Aprenda uma língua antes de se tornar um linguista.
  3. A dificuldade não está no uso, mas no aprendizado.

O capitalismo não é um ambiente fértil para a autogestão

Dois anos após a criação da Holacracia foi publicado o artigo que deu origem ao Bitcoin e, com isso, iniciou-se um período de crescimento de tecnologias, empresas e iniciativas ligadas ao blockchain e derivados. Novas maneiras de se fazer marketing como Inbound Marketing também explodiram e se popularizaram em pouco tempo. Até o movimento ágil que teve seu marco histórico em 2001, em menos de 20 anos se tornou uma força avassaladora na área de desenvolvimento de software.

Com a autogestão não teremos esse crescimento e popularização. A autogestão bate de frente com estruturas nas organizações que refletem uma visão de mundo hierárquica, patriarcal e que super valoriza o capitalismo e seus seres imaginários: meritocracia, livre mercado e o líder herói empreendedor.

Ela vai muito além de remover os obstáculos para os times produzirem software para os donos do capital. Ela não propõe mecanismos para facilitar a venda de produtos digitais e nem para circulação desregulada e livre de capital. A autogestão distribui autoridade e dá voz para as pessoas tratarem de suas tensões, inclusive aquelas sobre como os salários são definidos.

Tenho certeza que ainda existe muito espaço para evoluir as práticas de autogestão. Mas sua baixa disseminação não é sinal de que as práticas atuais “não funcionam”. Ela só é um sinal de que a autogestão não será a queridinha de nossa sociedade capitalista. Existe um avanço e interesse, mas se olharmos a curva de adoção, estamos caminhando lentamente e sem previsão de se tornar algo amplamente disseminado.

Aprenda uma língua antes de se tornar um linguista

Não deveria nem ter que falar isso, mas ler um livro não te torna conhecedor da autogestão. Ler dois ou cinco, também não. É algo que precisa ser vivenciado em um sistema social, pelo menos em uma organização. Eu sei, as oportunidades são ainda raras, mas não dá para fingir o contrário.

E criar algo novo, pressupõe que você conheça o velho, até para poder distinguir o novo. É muito bom quando podemos aprender com a experiência do outro e isso precisa ser feito. Sociocracia, Holacracia, O2, etc, já foram criados e continuam sendo usados por organizações espalhadas pelo mundo. É muito mais fácil começar com um deles e evoluir do que querer fazer do zero, ou buscando extrair do livro Reinventando as Organizações dicas e heurísticas úteis.

Além disso, o aprendizado profundo de uma língua – e no final, a tecnologia social O2, como entendo e promovo, é muito mais uma linguagem para construir acordos – depende do uso cotidiano em um contexto social. Por isso que os relatos encontrados em artigos e revistas não bastam.

Aprenda sobre autogestão vivenciando ela, antes de propor o novo jeito único, e quem sabe, revolucionário.

A dificuldade não está no uso, mas no aprendizado

Minha filha em seu aniversário de 10 anos resolveu fazer uma festa do pijama com algumas amigas em casa. Para jantar pedimos uma pizza e todas sentaram à mesa para esperar. Minha filha na cabeceira da mesa começa a falar engrossando a voz e interpretando uma chefe de uma empresa em sua reunião de diretoras. A brincadeira segue uma cena típica do mundo corporativo que conhecemos. Na hora senti um pouco de desespero, mas não estava tão surpreso.

As pessoas já chegam nas organizações sabendo muito bem como se comportar em organizações que possuem chefes e subordinados. Elas conhecem os scripts, elas sabem ou aprendem rapidamente a jogar o jogo para obter poder e influência. Elas foram expostas na família, na escola e na mídia à lógica das estruturas hierárquicas.

A mudança de hábitos, crenças e culturas não é simples. Na verdade, é 100 vezes mais difícil do que fazer autogestão em si. Enfrentamos um desafio enorme de (des)aprendizagem e aprendizagem de uma nova língua. Não teremos uma fórmula mágica, uma simples regra de ouro capaz de tornar ou criar uma organização autogerida. É trabalhoso e não é glamoroso.

A busca por modelos facilmente replicáveis ignora esse contexto. Muitos acham que as abordagens atuais conhecidas são muito complicadas, quando na verdade seriam alternativas simples, se fossem ensinadas e vividas desde muito cedo como parte da nossa cultura, mas elas infelizmente não são.

Finalizando

Portanto, se você tem interesse em criar organizações que não fazem uso da cadeia de comando, estamos no mesmo caminho e gostaria muito de trocar com você. Mas se você resolver ignorar essas mensagens de maneira deliberada, por favor me avise, pois talvez eu reconsidere participar dessa troca. ;)


Observação: Criamos a O2, depois de um período de experiência prática com a Holacracia. E convidamos você a fazer o mesmo. Experimente a O2, e depois modifique ou customize um conjunto de meta-acordos para sua organização. Estamos aqui se você quiser ajuda.

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Sobre o(a) autor(a): Rodrigo Bastos

Rodrigo é facilitador e designer organizacional. Formado em Engenharia de Materiais pela POLI-USP. Atuou por mais de 10 anos na criação e condução de programas de desenvolvimento de times e líderes utilizando a educação experiencial como método. Já foi engenheiro e gestor. Apaixonado pelo trabalho com organizações, hoje ele acredita que atuando no sistema social e não nas pessoas, consegue contribuir mais e ser muito mais feliz.

Comentário

  1. Jorge Carneiro 28 de dezembro de 2021 às 18:38 - Responder

    muito bom …
    super concordo com o contexto …
    grato por partilhar este texto acredito que traz muito sentido

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