A razão pela qual não podemos fingir que “só falar” não será opressivo.

Por Ted Rau, originalmente publicado em Enlivening Edge Magazine em 05 de abril de 2018. Traduzido por Tanya Stergiou. Revisão por Mateus Fernandes.

Quando eu estou ensinando ou facilitando, ouço com frequência: “Podemos deixar a reunião fluir e só falar, sem um formato especial? Parece mais natural assim.”

Claro que você pode. Mas eu não vou participar. Por que? Porque eu estou consciente do que é que vem junto quando promovemos fluxo “natural”.

O que é fluxo natural e quais os seus efeitos?

“Fluxo natural” é quando as pessoas falam no momento em que se sentem movidas a falar. É o que acontece fora de qualquer formato acordado.

Os estudos citados abaixo mostram que a ausência de intencionalidade em cada rodada (quando uma pessoa fala por vez) se manifesta em padrões opressivos. Como um exemplo, os resultados abaixo são sobre gênero, embora gênero seja apenas um eixo de padrões opressivos em nossas sociedades.

  • Homens falam por mais tempo e fazem contribuições com mais frequência do que mulheres em contextos formais. (1), (2)
  • Homens interrompem com mais frequência, especialmente quando a pessoa na conversa é uma mulher, e mesmo quando a mulher está numa posição de poder. (3)

Se você quer me dizer que nas suas reuniões todas as pessoas são iguais, considere a possibilidade de que você está enviesado (como visto em (4)). Todos nós — homens e mulheres — mantemos a preconcepção de que mulheres falam mais do que homens, mesmo quando isso não está apoiado por fatos.

Ao perceber isso, eu não tenho certeza se acredito ou não quando alguém diz que em suas reuniões todas as pessoas são iguais.

Veja também essa anedota de uma pesquisadora que pediu para que alguém mensurasse seus próprios resultados de facilitação:

“Mesmo quando eu estava tentando explicitamente, eu ainda não conseguia fazer que os participantes da discussão representassem de forma equitativa a população de alunos e alunas na minha sala de aula.” (5)

Se você está pensando que mulheres apenas precisam ser mais assertivas, isso subestima a complexidade do assunto, já que pode ser mostrado (veja (6)) que mulheres assertivas – não homens assertivos – tendem a ser penalizadas por esse comportamento.

Antes de conversarmos mais sobre o que pode ser feito, vamos ver o que acontece em grupos quando eles seguem o “fluxo natural”:

  • Falta de informação: menos pessoas falando significa que há menos informação na mesa.
  • Falta de empoderamento: um membro de uma equipe que tende a ser mais silencioso (por qualquer razão) verá suas idéias serem representadas com menor frequência.
  • Muito foco no processo: um grupo que não tem um processo ou formato acordado deixa o gerenciamento das rodadas, em que cada pessoa fala por vez, para o grupo inteiro. Linguisticamente, as rodadas são frequentemente gerenciadas com marcadores não-verbais — como, por exemplo, um som audível de respirar indica que alguém quer falar ou discordar. Ter que gerenciar as rodadas dessa maneira nos tira a atenção do conteúdo.
  • Falta de escuta: no “fluxo natural”, as pessoas tendem a preparar sua próxima interrupção, ou elas ficarão chateadas por serem interrompidas – tudo isso enquanto poderiam estar praticando uma escuta profunda.

Sistemas: o desafio diante de nós

Padrões são sorrateiros e persistentes. Os antigos sistemas estão entrelaçados em como agimos e no que esperamos – e todos nós internalizamos mais do que estamos cientes.

Hábitos e várias camadas de interações entre preconceitos internalizados e padrões sutis de poder não vão “simplesmente” embora.

Ao reconhecer essa realidade, como alguém pode insistir em “fluxo natural”? Observe como estou usando aspas quando cito a expressão “fluxo natural”. É porque me recuso a aceitar o desequilíbrio de poder como natural. Historicamente, muitas formas de opressão foram justificadas como “naturais”.

Não podemos combater sistemas opressivos pela ausência de sistemas. Precisamos de sistemas melhores.

Um exemplo: Um estudo descobriu que o método de tomada de decisão e a proporção entre homens e mulheres parecem fazer diferença (7): o consenso como método de tomada de decisão é mais inclusivo para vozes de mulheres em grupos mistos em comparação com a regra da maioria. Implementar sistemas melhores realmente faz a diferença.

Precisamos de mais sistemas que apoiem o tipo de equivalência que queremos ver, e que não se baseiem em percepções potencialmente enviesadas de justiça.

Rodadas: ilhas de intencionalidade

A melhor opção que conheço é usar rodadas. Conversas em rodadas são usadas na sociocracia, mas esse é um formato que existe há muito tempo. Uma rodada significa que todos falam, um por um. Sabemos que ouviremos a todos e que reduziremos as interrupções ocorridas entre as falas. Dessa forma, todo mundo sabe quando é a sua vez de falar e pode relaxar e se acostumar a escutar.

Falar em rodadas não significa que todas as pessoas tenham que falar na sua vez. Passar a fala quando chega sua vez enfraquece o uso de uma rodada? Não.

  • Ter sua vez de falar e optar por passar é completamente diferente de não ter sido perguntado. Depois de ouvir a voz de um membro da equipe, tendo uma ideia de seu lugar de fala e sabendo que essa pessoa não está deixando de dizer algo que ela poderia querer dizer – tudo isso nos dá informações que nos ajudam a permanecer unidos como equipe.
  • Alguns grupos usam o fluxo natural e perguntam periodicamente às pessoas silenciosas sobre sua opinião. Embora eu aprecie muito a intenção, eu não gosto da inerente suposição sobre a diferença de poder. Sermos perfeitamente iguais numa rodada é diferente de quando as pessoas mais assertivas convidam as vozes dos introvertidos. Ouça todas as pessoas desde o início ao invés de passar a maior parte do tempo somente com as ideias dos extrovertidos.

Isso é sobre sistemas (não sobre pessoas) e sobre nossa disposição de ser intencional nos sistemas em que fazemos parte.

Veja mais sobre rodadas e sobre vários padrões e sistemas intencionais, incluindo exemplos sobre como facilitar, em nosso novo livro Muitas vozes, uma Canção (MVUC).

Não é a minha intenção apontar dedos. Mulheres são parte do problema que mantém esses padrões vivos, assim como também são os homens. Felizmente, ilhas de intencionalidade são potentes para quebrar esses padrões.

Uma rodada pode até ser num grupo de duas pessoas. Significa que você ouve quando a outra pessoa está falando, e você espera até que a pessoa tenha terminado seu pensamento. Uma rodada é uma maneira de falar e de ouvir. Você pode usar rodadas com a próxima pessoa que você encontrar depois de ler esse texto!

Referências

  1. Janet Holmes (1992). “Women’s Talk in Public Contexts”.
    Em: Discourse and Society. Volume: 3 issue: 2, pp. 131- 150. Publicado: April 1, 1992. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0957926592003002001
  2. Smith-Lovin, Lynn and Brody, Charles (1989). “Interruptions in Group Discussions. The effects of gender and group composition”. Em: American Sociological Review. Vol 54, pp. 424-435.
  3. Kunsman, Peter (2000). “Gender, Status and Power in Discourse Behavior of Men and Women”. Em: Linguistik online 5 1/00.
  4. Cutler, Anne and Scott, Donia R (1990). “Speaker sex and perceived apportionment of talk”. Em: Applied Psycholinguistics 11 (1990), pp. 253-272.
  5. Kirkpatrick, Jessica (2014). “Stop interrupting me. Gender Conversation Dominance and Listener Bias”. Disponível em: http://womeninastronomy.blogspot.com/2014/07/stop-
    interrupting-me-gender.html.
  6. Rudman, Laurie A. and Glick, Peter (2001). “Prescriptive Gender Stereotypes and Backlash toward agentive women”. Em: Journal of Social Issues. Volume 57, Issue 4,
    Winter 2001, pp. 743–762.
  7. Karpowitz, Christopher F.; Mendelberg, Tali and Shaker, Lee (2012). “Gender Inequality in Deliberative Participation”. Em: American Political Science Review.
    DOI: 10.1017/S0003055412000329

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Sobre o(a) autor(a): Tanya Stergiou

Tanya Stergiou é facilitadora, hacker cultural e designer organizacional e sócia da Target Teal, motivada por desafiar velhos padrões e detectar novos. Usa Organização Orgânica, Dragon Dreaming, Action Learning para ajudar organizações e grupos na transição para sistemas responsivos com autonomia, integridade e poder distribuído. Há mais de 20 anos trabalha com facilitação, projetos e organizações em contextos diversos com foco em criar espaços coletivos de aprendizagem e gestão. Tem mestrado em Política e Economia com foco na Ásia e América Latina pela escola Normal Patterson School of International Affairs.

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