Muitas vezes nos deparamos com situações frustrantes no trabalho ou vida pessoal que pareciam fáceis de resolver, mas acabam persistindo indefinidamente. Você já passou por isso? Algum problema visível que todos reclamam, mas nunca muda.
Por exemplo, você provavelmente já teve que lidar com uma boa dose de burocracia. A burocracia é como aquele parente chato que sempre aparece nas festas de família. Você não suporta a presença dele, mas de alguma forma todo mundo acaba aceitando e ninguém toma uma atitude. É o tio ranzinza, reclamão e inconveniente, que critica a comida, implica com as crianças e reclama da música alta. No entanto, ele sempre é convidado e recebido de braços abertos.
Nas organizações acontece um fenômeno parecido. Todos nós lidamos com problemas crônicos e recorrentes como “pedras no sapato” que insistem em fazer parte do cotidiano das empresas, do governo e até mesmo das nossas famílias.
Por que certas disfunções óbvias e amplamente criticadas nunca são de fato corrigidas? Por que há sempre alguém defendendo o indefensável e impedindo a mudança? É minha gente, a tese que eu defendo aqui é que isso frequentemente acontece porque existem ganhos ocultos que ofuscam e até aniquilam as soluções para essas tensões.
Ganhos ocultos são os benefícios não explícitos obtidos por indivíduos ou grupos que impedem a resolução de determinados problemas. Em outras palavras, alguém se beneficia com a perpetuação daquele problema, por isso ele nunca é resolvido.
O que pouca gente quer admitir é que a burocracia se mantém porque algumas pessoas ganham com isso. Afinal, se manter ocupado com papelada sempre deu um status de gente importante dentro das organizações.
Aqui estão dois exemplos hipotéticos que provavelmente são familiares pra você:
- Áreas que não se comunicam e trabalham em silos, gerando descoordenação, duplicação de esforços e falhas. Integrá-las exigiria dedicação das lideranças para alinhar as equipes, o que ninguém quer fazer porque é melhor não ter que dar satisfação pra ninguém.
- Um sistema de gestão ultrapassado e pouco amigável, criticado por todos. Porém, sua manutenção gera contratos gordos para o fornecedor, que é amigo do CEO. Melhor deixar como está do que desagradar os de cima.
Além desses exemplos, podemos facilmente identificar alguns casos reais de corrupção que ficaram famosos por beneficiar as pessoas e empresas envolvidas.
Caso Brumadinho: A ruptura da barragem de rejeitos em Brumadinho, da mineradora Vale, expôs como a empresa ignorou problemas visíveis na estrutura. A perpetuação desses riscos gerava ganhos de produtividade e lucro para a Vale.
Dieselgate: A Volkswagen fraudou testes de emissões nos EUA utilizando softwares para mascarar níveis reais de poluentes. A companhia se beneficiou por anos vendendo carros fora dos padrões exigidos de controle de emissões.
Theranos: A startup Theranos exagerava sua capacidade de realizar exames de sangue com poucas gotas. Seus executivos lucravam enganando investidores e clientes sobre as limitações da tecnologia.
Caso Enron: A gigante Enron escondia dívidas e inflava ganhos por meio de artifícios contábeis. Seus executivos enriqueceram com bônus astronômicos baseados em resultados fraudulentos.
Caso Americanas: A varejista Americanas contabilizava estoques fictícios para melhorar seu fluxo de caixa. Gestores e acionistas se beneficiaram por anos com o aumento artificial no valor de mercado da empresa.
Ok, talvez eu tenha exagerado com esses casos reais. Talvez não. Mas você percebe o fenômeno? Se o problema constantemente deixa de ser resolvido, é provável que alguém esteja ganhando com isso. Esses casos são de uma dimensão muito maior, obviamente. No dia a dia das organizações, esses ganhos ocultos se manifestam de forma sutil. Mas na maioria das vezes ajudam a mascarar causas reais e obstruir a dissolução dos problemas.
Esses ganhos normalmente estão relacionados com elementos análogos a esses aqui:
- Controle e poder: Gerentes adoram processos cheios de regras porque reforçam seu poder sobre funcionários.
- Incompetência mascarada: Pessoas incompetentes se escondem atrás de normas e procedimentos para evitar responsabilização.
- Comodismo: Mudar gera desconforto. Manter problemas no lugar é mais cômodo do que reorganizar processos.
- Medo e Poder: Agendas pessoais e medo de desagradar os chefes impedem ação sobre problemas visíveis.
Mas por que temos tanta dificuldade de resolver essas disfuncionalidades? Os motivos são muitos, mas aqui estão alguns que podem oferecer pistas relevantes:
- Resistência à mudança: mudar processos gera incerteza e exige sair da rotina. Por que mudar algo se nós sempre fizemos as coisas assim?
- Agendas pessoais: interesses individuais ou políticos muitas vezes se sobrepõem ao coletivo e impedem mudança.
- Conflito: mexer em problemas crônicos gera atritos entre grupos. Evitamos conflito sempre que possível.
Como quebrar esse ciclo e resolver esses problemas crônicos? Não existe bala de prata ou solução mágica. É importante observar o contexto com atenção e abandonar a ingenuidade de que o problema não beneficia ninguém. Compreender isso vai te poupar tempo e provavelmente aumentará as chances das suas intervenções serem “compradas” pelas pessoas que você precisa convencer para mudar alguma coisa.
Seguem aqui algumas dicas para agentes de mudança que querem aumentar suas chances de hackear organizações:
- Mapeie ganhos ocultos: identifique quem se beneficia e por quê. Pergunte “quem ganha o quê mantendo esse problema?”.
- Negocie agendas: proponha soluções que atendam os interesses mapeados. Não ignore totalmente ganhos alheios.
- Envolva pessoas-chave: traga para o diálogo indivíduos com poder de influência sobre o problema e tente compreender o que elas ganham com a falta de resolução do mesmo.
- Comece pequeno: conquiste vitórias incrementais antes de buscar transformações radicais.
- Foco na experimentação: esqueça a ilusão de organização perfeita. Trabalhe com melhorias contínuas.
Transformações profundas raramente ocorrem da noite para o dia. Exigem persistência, sensibilidade política e um olhar atento para as estruturas do sistema organizacional. Ao revelar os interesses ocultos, você pode trazer as pessoas certas para a mesa e propor soluções que atendam, ao menos parcialmente, os ganhos mapeados.
Agora, se você ignora quem se beneficia com aquela tensão que você tanto quer resolver, é bem provável que você tenha muitas dificuldades em “vender” as suas ideias na organização que você quer transformar. Ou pior, você pode acabar perdendo seu emprego na tentativa de propor uma mudança.
Na Target Teal nós desenvolvemos um método estruturado para auxiliar agentes de mudança a “hackear” organizações considerando as relações de poder envolvidas no processo de transformação. Você pode aprender mais sobre isso no nosso curso Culture Hacking. Ali nós exploramos casos em organizações reais onde você pode praticar e aprender num espaço seguro o suficiente para falhar.
Muito bom!
Eu só senti falta de algo sobre intencionalidade/inconsciência nesses ganhos. Muitas vezes as pessoas tem ganhos e nem percebem, e não é consciente ou intencional, mas ainda assim sabotam. Entender isso diminui um pouco a interpretação de jogo de poder para uma de jogo de consciência, e talvez destrave algumas mudanças sem necessariamente exigir grandes negociações ou disputas de poder