Quando a transformação digital se preocupa apenas em colocar as tecnologias da informação no centro do processo, tudo pode dar errado. Precisamos olhar para o design organizacional, ou como a cultura e a estrutura organizacional interagem para gerar ou destruir valor. Para ilustrar essa proposição, vou contar uma história que me aconteceu no mês passado:
Prólogo
Sou cliente há mais de 2 anos de um banco 100% digital e supostamente ágil. Um belo dia, ao tentar acessar o aplicativo para realizar uma transação, fui pego de surpresa, não consegui acessar a conta e recebi uma mensagem que a conta estava inativa. Achei estranho, pois no dia anterior tinha acessado normalmente e minhas movimentações não eram tão pequenas.
Ato 1 – O e-mail
Liguei para o call center e depois de uma hora e várias tentativas consegui falar com um atendente. Ele leu um script de maneira seca dizendo que minha conta estava inativa pois eu não tinha respondido um email que fora enviado 10 dias antes. Procurando o e-mail, fui orientado para checar na caixa de spam, e surpresa, ele estava lá. O banco tinha usado um domínio e um endereço de remetente inédito e que violava as diretrizes do gmail. Esse e-mail dizia em um longo texto que eu precisava refazer meu cadastro, por conta de uma nova diretriz do Banco Central, e que se eu não entrasse em contato no prazo de 10 dias minha conta seria encerrada.
Ato 2 – O call center
Surpreso com a falta de interesse do banco em manter minha conta, que até investimentos tinha, eu tentei de todo jeito convencer o atendente de que eu poderia rapidamente enviar os documentos para o cadastro e que não era culpa minha o e-mail ter parado na caixa de spam. Depois de uma hora no telefone e ter sido repassado para outro atendente mais intransigente ainda, eu desisti. Chegaram a dizer que era minha culpa não checar a caixa de spam todos os dias. Pedi para transferir os meus recursos para uma conta em outro banco. Após desligar o telefone enviei um e-mail confirmando a conta corrente de outro banco que deveria receber os fundos da conta que fora encerrada sem a minha concordância.
Ato 3 – A espera e a surpresa
Alguns dias se passaram e nada. Para aumentar as chances de que tudo se resolveria e para expressar meu descontentamento com essa situação estressante entrei com uma reclamação no Banco Central e outra no site Reclame Aqui. Comecei a ficar nervoso e ansioso. Tentei falar na ouvidoria do Banco, mas a URA (sistema eletrônico de atendimento) estava com algum defeito e desisti. Resolvi enfrentar mais uma vez o call center. Ao ligar, tive uma grande surpresa, o atendente me disse que tudo não passava de um engano e que bastava eu enviar alguns documentos que minha conta seria reativada. Ele me passou uma lista por e-mail do que era pedido e respondi o e-mail com uma cópia de vários documentos. Fiz isso em menos de 2 horas, pois estava desesperado para acessar o meu dinheiro.
Ato 4 – Reclamação não procedente
Dois dias depois de enviar a documentação, sete dias depois de ter minha conta bloqueada, tive acesso aos meus recursos e tudo voltou à funcionar. Dois dias depois recebo um outro e-mail do banco. Dessa vez era um “Legal Specialist” responsável por responder a reclamações enviadas ao Banco Central. Ele citava uma série de informações incorretas ou falsas e terminava com: “Portanto, sua reclamação não procede. A situação poderia ter sido solucionada, como de fato foi, de forma extrajudicial, não havendo qualquer motivo que justificasse a abertura desta reclamação.” Respondi de maneira educada mostrando as inconsistências do e-mail anterior.
Ato 5 – Rescaldo
Depois de alguns dias recebo um telefonema do setor de qualidade do banco. A pessoa com uma voz tranquila e um conversa amigável pedia desculpas pelo ocorrido. Concordava com todas as minhas reclamações. Implorava para eu voltar atrás e cancelar minha nota no site Reclame Aqui. Só faltou me enviar um buquê de flores.
Epílogo
Eu não fui o único obviamente a passar por isso. Por conta de uma sucessão de erros e processos truncados, um enorme stress foi causado para milhares de clientes. Minha confiança no banco ficou abalada e acabou com a possibilidade de eu indicar ele para um conhecido.
Olhando para essa história podemos inferir um conjunto de problemas com o design organizacional do banco.
O Ato 1 mostra que alguma área ou diretoria tinha um prazo para que todos os clientes renovassem seus cadastros se adequando às normas do Banco Central. Criou para isso um e-mail dramático e enviou sem o cuidado necessário. Essa área não se importou com outras consequências ou impactos no call center.
No Ato 2, o call center, provavelmente uma empresa terceirizada, perseguindo cegamente alguns SLAs (Service Level Agreement) seguiu a risca a comunicação enviada por e-mail. Um SLA comum nesses casos se refere ao tempo que o cliente fica sem uma resposta. Então, a resposta foi: não podemos ter você como cliente (sic).
No Ato 3 novamente a comunicação com o cliente foi feita pelo call center, desta vez este estava mais bem informado e provavelmente recebeu uma ordem direta para lidar de outra maneira. Assim o atendente conseguiu dar uma resposta minimamente satisfatória.
No Ato 4 uma terceira área da organização entra em contato e expõe sua cara burocrática. Seu interesse era provavelmente bater a meta que colocava um limite no número de reclamações procedentes no Banco Central. Não importando como o cliente se sente ao ver sua reclamação desdenhada e informações inverídicas escritas em um e-mail.
No Ato 5 acontece uma tentativa tardia da área de qualidade de pedir desculpas provavelmente motivada por uma um meta relacionada à média geral de notas no site Reclame Aqui.
Cada área perseguia seu prazo, sua meta ou seu SLA. Todos eles geraram o que chamamos de otimização local ou subotimização. Para o cliente, uma péssima experiência.
O design organizacional certo pode criar as condições para que situações absurdas como essa deixem de acontecer. No mundo digital precisamos desenhar e redesenhar a estrutura e a cultura da organização o tempo todo para que ela possa lidar com um mundo cada vez mais VUCA (volátil, incerto, complexo e ambíguo).
É um mundo cruel para organizações que:
- Usam cegamente scripts no call center;
- Acreditam que pressionar áreas para bater metas e cumprir prazos é a única saída para que as pessoas trabalhem com afinco;
- Criam áreas e departamentos exclusivamente para cuidar da qualidade ou da inovação;
- Possuem áreas e diretorias que funcionam como feudos, onde cada diretor reina e se protege ao máximo;
- Criam cargos e job descriptions que caducam rápido e pouco dizem sobre o trabalho a ser feito;
- Acreditam que basta tirar o elemento humano e automatizar que a qualidade do serviço vai aumentar;
- Não se preocupam em construir uma cultura organizacional centrada no cliente e no propósito;
Todos esses são elementos ainda muito presentes na maioria das organizações. Precisamos olhar com mais ceticismo para as melhores práticas. Será que isso ainda funciona? Uma organização que utiliza um design organizacional antiquado, não importa quanta tecnologia digital ela vai empregar, nunca estará apta a lidar com o mundo de hoje. Ou como diria Dee Hock:
“In industrial age organizations, purpose slowly erodes into process, procedure takes precedence over product and the doing of the doing is why nothing gets done”.
(“Nas organizações da era industrial, o propósito lentamente se deteriora e vai se transformando em processos, procedimentos ganham precedência sobre o produto e o fazer pelo fazer é a razão pela qual nada acabe sendo feito de fato.”, tradução livre).