Em um último texto desta seção sobre facilitação, escrevi sobre como podemos, enquanto facilitadores, escorregar para o lado do controle unilateral e manipular a conversa. Vimos que isto pode acontecer caso estejamos operando a partir de uma visão de mundo controladora. Neste texto vou abordar o “aprendizado mútuo”, um modelo mental que é uma resposta ao controle unilateral e permite promovermos conversas mais significativas em grupos. Se você não leu o primeiro artigo, acesse aqui antes de seguir.
Aprendizado Mútuo
Assim como o controle unilateral, o aprendizado mútuo é apresentado como um “modelo mental” composto por valores, premissas e comportamentos. Schwarz acredita que quando nos propomos a facilitar um grupo e promover interações mais efetivas, devemos ser modelos desses novos comportamentos que queremos introduzir. Em outras palavras, nossa prática deve estar alinhada com a mudança que buscamos criar.
O aprendizado mútuo então é apresentado por ele como o antídoto ao controle unilateral – um modelo que promove melhores resultados, relacionamentos e bem-estar individual em grupos. Vamos então começar essa exploração pelos valores.
Valores do Aprendizado Mútuo
Relembrando, no controle unilateral os valores são:
- Vencer a conversa
- Estar certo
- Suprimir sentimentos
- Agir racionalmente
Já no aprendizado mútuo, a história é outra:
Transparência e Curiosidade: Transparência significa compartilhar tudo que for relevante para a conversa em questão, inclusive os seus próprios sentimentos ou informações que podem ser contrárias ao seu ponto de vista. Como neste modelo mental não estamos partindo da ideia que queremos chegar a um determinado resultado (ganhar, não perder), isso se torna mais fácil. Curiosidade tem a ver com nutrir interesse sobre como o outro está pensando, fazendo perguntas genuínas para ele (aquelas perguntas que não sabemos as respostas). Note que é muito difícil ser transparente quando você está pensando a partir do controle unilateral.
Escolhas informadas e responsabilização: Diz respeito a maximizar a chance do grupo tomar decisões a partir de informações relevantes. É diferente de decidir em consenso (Schwarz não defende o consenso, embora existam algumas falas dele que mostram que ele tem preferência por decisões em conjunto). O outro lado deste valor é a responsabilização: quando tomamos decisões a partir de informações relevantes ou em conjunto, nos responsabilizamos por isso. Responsabilização significa ter o seu nome atrelado às suas escolhas, ações, palavras e prestar contas (explicar) quando for solicitado. É também sobre tornar público o que levou você a dizer, decidir ou fazer determinada coisa.
Empatia*: Significa temporariamente suspender o julgamento e tomar consciência sobre os pensamentos e sentimentos do outro, apreciando a sua situação. Ser empático não significa resgatar ou ajudar o outro. Deixar de compartilhar informações difíceis com os outros também não é empatia (pode ser até crueldade).
*Originalmente o termo utilizado é compassion, mas preferi traduzir como empatia porque compaixão pode ser associada a um sentimento de piedade ou desejo de fazer algo pelo outro, o que não corresponde à intenção do Schwarz.
Premissas do Aprendizado Mútuo
O controle unilateral se baseia nestas 5 premissas:
- Eu entendo a situação, os que não concordam não entendem
- Eu estou certo, os que discordam estão errados
- Minhas intenções são puras, as dos que discordam são questionáveis
- Meus sentimentos e comportamentos são justificáveis
- Eu não estou contribuindo para o problema
No aprendizado mútuo, temos 5 outras:
Eu tenho informações, os outros também: Já que o mundo é complexo, cada um tem um pedaço do quebra-cabeça. A informação do outro pode estar alinhada com a sua, ser complementar ou contraditória. Ainda assim é uma informação relevante.
Cada um de nós vê coisas que o outro não vê: Nossas premissas e histórias são tão diferentes que não podemos evitar de enxergar o mundo a partir delas. Geralmente em grupos desconsideramos a opinião da minoria, mas…
Diferenças são oportunidades para o aprendizado: As diferenças percebidas são um convite para exercitarmos a curiosidade e explorarmos diferentes possibilidades. Elas nos ajudam a sairmos dos nossos vieses e expandirmos nossa visão de mundo.
Os outros podem discordar de mim e ainda ter boas intenções: Quando o outro discorda de mim, não significa que ele é mal intencionado, pois não existe uma competição. Ele só parte de outras premissas e enxerga por outra lente.
Eu posso estar contribuindo para o problema: Sabemos que o observador geralmente é parte do próprio sistema e que seu ato de observar afeta o comportamento do que é observado. Por isso, geralmente quando enxergamos um problema, também estamos contribuindo de alguma forma com ele. É importante exercitarmos a curiosidade para descobrir quais são as nossas contribuições. Acima de tudo, precisamos entender que:
“O comportamento inefetivo do outro pode ser uma resposta ao seu próprio comportamento inefetivo.” – Roger Schwarz
Comportamentos do Aprendizado Mútuo
Quando operamos a partir do controle unilateral, geralmente engajamos nestes comportamentos:
- Trazer minha perspectiva sem perguntar a dos outros e vice-versa
- Ocultar informações relevantes
- Falar de forma genérica e não acordar sobre termos importantes
- Manter meu racional oculto, não perguntar para os outros sobre o deles
- Defender minha posição sem declarar meus interesses
- Assumir que minhas inferências são verdadeiras sem testá-las
- Controlar a conversa de acordo com meus interesses
- Evitar conversas difíceis
Os comportamentos do aprendizado mútuo são:
1) Declare suas opiniões e faça perguntas genuínas: Este comportamento é a materialização dos valores transparência e curiosidade. Deixar de declarar a sua opinião quando ela é relevante para conversa também é um ato de controle unilateral, já que você pode estar evitando se posicionar para ganhar algum tipo de vantagem. Quando queremos compreender o racional do outro, devemos fazer perguntas abertas e que não sabemos a resposta. Por exemplo, uma pergunta como “você não acha melhor considerar o modelo de previsão também?” está mais para uma opinião disfarçada de pergunta do que uma pergunta genuína.
2) Compartilhe todas as informações relevantes: Informações relevantes podem incluir inclusive coisas que vão contra o seu ponto de vista. Os seus sentimentos e necessidades também. Esse comportamento permite trabalharmos a partir de um conjunto comum de informações e fazermos escolhas bem informadas, que é um dos valores do aprendizado mútuo.
3) Use exemplos específicos e chegue a um acordo sobre o significado de palavras importantes: Muitos jargões utilizados em reuniões podem ter interpretações diversas pelos participantes. Por isso é importante utilizar a curiosidade para identificar essas diferenças e acordar significados. Muitas vezes podemos nos esconder atrás de palavras sofisticadas, como uma forma de ocultar o significado ou até mostrar superioridade intelectual.
4) Explique o seu raciocínio e a intenção: Ao invés de apenas declarar uma posição, devemos declarar o que nos leva a pensar daquela forma e inclusive a nossa intenção ao dizer algo. Quando compartilhamos nosso raciocínio e intenção, isso reduz a chance de quem ouve fazer inferências e criar histórias sobre o nosso comportamento e também aumenta a transparência.
5) Foque em interesses, não em posições: Posições são as soluções que damos para os problemas que percebemos. Interesses são nossas necessidades. Muitas vezes chegamos em impasses durante a conversa porque nos recusamos a compartilhar o nosso interesse ou então nos apegamos demais a nossa posição.
6) Teste premissas e inferências: Isso ajuda a trabalharmos em cima de informações válidas e relevantes, ao invés de uma história que pode ser verdadeira ou não. É importante testarmos as inferências que fazemos durante as conversas.
7) Desenhe próximos passos em conjunto: Significa considerar as necessidades de cada indivíduo no grupo ao invés de tentar controlar unilateralmente o caminho. Desenhar em conjunto pode ser tão simples quanto propor algo e depois verificar se as pessoas consentem com aquele caminho. Pessoal, estou preocupado com o tempo e queria propor seguirmos para o próximo item da pauta. Topam?
8) Discuta o indiscutível: Muitos dos assuntos mais difíceis de tratar em grupos são aqueles que mais limitam a eficácia deles. Esses assuntos são comumente discutidos fora do grupo – de forma individual e fragmentada – ao invés de em conjunto. Botar o elefante na sala pode ajudar um grupo a transitar para outro nível de confiança e fortalecimento das relações.
Exemplo de conversa
Abaixo vou analisar junto com você um pequeno trecho de conversa que aconteceu em uma turma do curso FATO – Facilitação de Times Organizacionais – da Target Teal. Estávamos em um momento de mentoria em grupo, em que os participantes compartilham questões de facilitação e recebem aconselhamento dos demais. Nesse momento específico o grupo estava realizando diversas perguntas de esclarecimento para a Paula, que estava compartilhando uma situação específica. Eu estava facilitando a conversa. Leia o diagrama da esquerda para a direita.
Que pensei e senti | O que vi e ouvi |
A Luciana está esperando alguma resposta específica sobre a pergunta que fez à Paula. A Paula está tentando entender que tipo de resposta é essa e por isso está demorando para pensar, ou talvez não tenha entendido a pergunta. A Luciana parece querer sugerir algo para a Paula, mas talvez esteja com receio de compartilhar. Será que devo ou não falar algo? Mas eu nem lembro qual era a pergunta. Talvez seja precipitado. Bom, vou arriscar. |
Luciana fez algumas perguntas para Paula que não consegui compreender muito bem. Paula demorou alguns segundos para responder |
Eu: Luciana, tive a impressão na sua fala que tem algo que você queira falar para a Paula mas não está falando, talvez por algum receio. Mas posso estar errado. Se isso for verdadeiro, queria pedir que falasse. Caso não seja, simplesmente ignore. Como é para você isso? | |
Parece que ela ficou envergonhada com a minha pergunta. Talvez eu tenha sido pouco cuidadoso no jeito que formulei ela. Talvez eu devesse ter prestado mais atenção na fala dela para entender especificamente o que na pergunta me incomodou, porque eu não sei dizer. | Luciana: Não, eu só estava curiosa. As perguntas eram pra entender mesmo. Mas se não for esse o momento, eu falo outra hora… |
Este registro foi extraído do meu diário de facilitação, um recurso que utilizamos durante o curso para refletirmos sobre a nossa prática.
Análise da conversa
Apesar de não ser uma facilitação exemplar, é uma situação real. Ainda assim consigo alguns elementos do aprendizado mútuo.
Em termos de valores, acredito que tenha sido transparente e ao mesmo tempo curioso em entender como a Luciana enxergava a situação. Também me responsabilizei pela minha percepção, trazendo ela para o grupo e permitindo que as pessoas fizessem uma escolha a partir dessa intervenção
Sobre as premissas do aprendizado mútuo, assumi que a minha inferência poderia não ser verdadeira e que os outros poderiam ter visto algo que eu não vi, e vice-versa. Não consegui identificar outras premissas nessa intervenção.
Entre os comportamentos que identifiquei estão o 1, 2, 3, 4, 6 e 8. Declarei minha opinião e fiz uma pergunta genuína. Compartilhei o que estava vendo e expliquei meu raciocínio (a intenção acho que não). Falei de forma específica, para a Luciana, e não para o grupo todo. Testei minha inferência, ainda que não tenha declarado precisamente a observação que a gerou. Trouxe uma conversa potencialmente difícil (pelo menos para mim).
Agora vamos explorar como a intervenção de facilitação poderia ter sido aprimorada.
Melhorando a intervenção
Primeiro de tudo, eu poderia ter pedido que a Luciana repetisse a pergunta que ela fez para a Paula. Vamos supor que eu fizesse isso. Vamos também supor que a Luciana respondesse algo como:
A pergunta era “O que você deveria ter feito nessa situação?”.
Então eu diria algo como:
Davi: Eu observei que estávamos ouvindo o relato da Paula e fazendo perguntas de esclarecimento para ela. Então depois ouvi essa pergunta que você repetiu agora. Também observei que a Paula demorou alguns segundos para responder a sua pergunta. Luciana, você viu ou ouviu algo diferente?
Luciana: Não, acho que foi isso mesmo.
Davi: Luciana, quando você fez essa pergunta, eu imaginei que você estivesse esperando alguma resposta específica da Paula, como se quisesse levar ela a algum lugar. Também imaginei que a Paula demorou para responder porque estava tentando captar que tipo de resposta você estava esperando. Eu me senti um pouco ansioso nessa hora porque fiquei imaginando algumas situações parecidas que vivi isso. Como você vê isso?
Luciana: Não, eu estava tentando entendê-la. E também estava tentando mostrar para a Paula como ela poderia ter utilizado um conceito diferente para lidar com aquela situação.
Davi: Nesse caso, eu proponho que você ofereça a sua perspectiva na forma de uma afirmação, assim eu e outras pessoas podemos compreender com mais clareza a sua intenção. O que acha disso?
Colocando tudo isso em prática
Utilizar o aprendizado mútuo do Schwarz não é nada trivial. Quando estamos envolvidos emocionalmente na conversa, é difícil pararmos e conseguirmos engajar nos comportamentos desse modelo mental. As reflexões posteriores sobre as intervenções, junto com os diagramas de duas colunas podem ajudar. O caminho é repetir isso inúmeras vezes, até que se torne natural para nós.
Por fim, queria te convidar para participar do curso FATO da Target Teal. Além de aprender mais sobre o tema junto com a gente, você vai ter um espaço de exploração, prática e troca com outros facilitadores.
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