Este conteúdo também está disponível como vídeo.

No texto “Facilitação e os 2 problemas fundamentais”, falei um pouco sobre como a facilitação é um processo de ajuda que demanda consentimento do grupo sendo facilitado.

Hoje quero dar mais nitidez ao tema da manipulação, que considero a antítese da facilitação legítima. Na melhor das hipóteses, esse texto te ajudará a ser uma pessoa facilitadora mais transparente e coerente. Na pior das hipóteses, você pode se tornar um mestre malquisto da manipulação.

A facilitação é um processo de ajuda, porém é mais fácil falar dessa suposta ajuda do que oferecê-la legitimamente na prática. Vejamos um exemplo disso:

Carina (gerente de um time de marketing) pediu ajuda para a Ana (Business Partner do RH). Segunda ela, o time estava com muitos conflitos internos e isso estava prejudicando algumas entregas importantes. Ana então chamou o Cleber (facilitador), um agilista, para facilitar a reunião de planejamento trimestral do grupo, mas pediu que ele deixasse a parte de conflitos com ela, que organizaria um team building em breve com o grupo, mas sem a presença da gestora Carina. Cleber concordou com Ana que o time ainda não tem maturidade para discutir os conflitos na presença da liderança.

Durante a reunião de planejamento, a conversa fica tensa enquanto dois participantes (Jonas e Mari) começam a debater um assunto técnico e específico, cada um tentando convencer o outro que sua solução era melhor. Estava claro que havia alguma tensão relacional entre eles para além do que estava sendo discutido. Cleber fica preocupado com a situação, pois já tinha alinhado com a Ana (BP) que essa reunião seria apenas para planejar o trimestre, já que ela cuidaria da parte dos conflitos. Então Cleber gentilmente interrompe a conversa e diz: Pessoal, vamos olhar para aquilo que é mais importante para a empresa como um todo e por isso focar na conversa aqui de planejamento, ok?

Em uma primeira análise pode parecer que o Cleber estava preocupado com o processo da conversa e de alguma forma ajudou o time a voltar ao trilho. Por melhores que fossem as suas intenções, ele utilizou uma estratégia de manipulação, já que ele não poderia compartilhar o racional da sua escolha com o grupo – isso tornaria a estratégia menos efetiva.

Manipulação

A manipulação acontece quando ocultamos do grupo nossas intenções, sentimentos, necessidades e estratégias de ação. Ou seja, não podemos “explicar” para o grupo porque estamos agindo da forma que estamos, caso contrário isso seria catastrófico. Imagine na situação anterior se o Cleber dissesse:

Pessoal, Jonas e Mari estão discutindo aqui um assunto que vamos deixar para o team building na semana que vem. Eu acho que vocês não têm maturidade para ter essa conversa, ainda mais com a Carina (gerente) estando aqui presente. Eu já alinhei isso com a Ana (Business Partner). Por isso vamos encerrar agora esse debate e voltar para o planejamento.

Seria desastroso, não? Isso talvez inflaria mais as pessoas que iriam querer discutir o assunto agora mesmo – o que seria o contrário do que Cleber planejava. Ou seja, compartilhar a intenção destruiria a estratégia dele – isso é manipulação.

A manipulação nem sempre é facilmente detectável, mas existem certos atos de fala que podem levantar uma “bandeira vermelha”. Os exemplos incluem tentativas de manipulação tanto da pessoa facilitadora quanto dos participantes:

  • Perguntas retóricas: Fazemos perguntas buscando reafirmar nossa opinião ao invés de ouvir o outro. Exemplo: Vocês não acham mais adequado focarmos aqui na pauta do planejamento? Geralmente buscamos com as perguntas retóricas manter o ouvinte atento ao nosso ponto ou levá-lo a pensar como nós pensamos.
  • Chamado oculto: Convidamos o grupo para fazer alguma coisa que muda o rumo da conversa, mas sem declarar nossa intenção ou o que observamos que nos levou a agir dessa forma. Exemplo: Vamos avançar para o próximo item da pauta. Como disse anteriormente, ocultamos a intenção do chamado para confundir as pessoas sobre nossas intenções e evitar que descubram nossa estratégia manipuladora.
  • Amenização: Quando alguém traz algo doloroso para a conversa ou então uma nova ideia, reduzimos a importância disso. Exemplo: Entendo que esteja preocupada com o turnover, mas vamos ver pelo lado positivo. Amenizar pode ser uma forma de se opor a uma tensão trazida por alguém, mas de forma menos explícita.
  • Generiquês: Esconder exemplos específicos ou generalizar ideias (abstraí-las) para evitar se comprometer. Na história anterior, caso o grupo perguntasse ao Cleber do porquê interromper o debate entre Jonas e Mari, ele poderia dizer algo como: Precisamos nos manter focados em temas relevantes para a empresa. A intenção dele com isso poderia ser preservar sua relação com o grupo, já que admitir explicitamente o que o motivou degradaria a confiança e/ou as relação com aquele grupo.
  • Coletivês: Falar de forma coletivizada quando se trata de uma opinião individual. Exemplo: Jonas: O time se sentiria mais seguro se a liderança não participasse do team building. Da mesma forma que o generiquês, o indivíduo que fala coletivês busca se esconder no coletivo para evitar se comprometer e se responsabilizar pelo que fala e faz.

Um outro aspecto importante da manipulação é que geralmente supomos que sabemos o que é melhor para os outros quando estamos manipulando. Essa atitude coloca a pessoa como perseguidora ou salvadora do grupo, olhando pela ótica do Triângulo do Drama. Na história compartilhada, Cleber acha que o time não tem maturidade para ter a conversa e pressupõe que é melhor esse papo acontecer sem a gerente. Um caminho mais honesto e transparente seria perguntar para as próprias pessoas o que elas preferem.

É importante notar que a forma com que a pessoa facilitadora foi “contratada” para facilitar aquele grupo já comprometeu a ação dela e a colocou em um possível lugar de facilitação/manipulação. Na história de exemplo, Cleber prometeu à Ana (BP) que não abordaria os conflitos na reunião de planejamento na presença da Carina, mas isso era o oposto do que os participantes pareciam desejar. Se os participantes perguntassem porque Cleber quer tanto focar no planejamento, ele teria que revelar o que pensa, e isso desviaria a conversa ainda mais do plano original dele. Quando fazemos esse tipo de promessa acabamos por limitar muito nossa atuação enquanto facilitadores.

O risco de manipular

Quando manipulamos, corremos um grande risco da pessoa do outro lado desconfiar das nossas intenções e isso prejudicar nossa relação. Muitas vezes, por mais que achemos nossa estratégia de manipulação muito sofisticada, fica óbvio para o outro lado que há informação faltando ou um recado nas entrelinhas. Pode ser que a pessoa facilitadora escolha ocultar informações para evitar algum desconforto, mas essa estratégia não funciona, porque gera desconfiança e desconforto. Cito uma história que vivi:

Certa vez, fiz um workshop em um cliente com um colega da Target Teal para área de agentes de mudança. Depois do workshop, o gerente veio até mim para falar sobre como tinha sido. A linguagem corporal dele sinalizava um misto de empolgação e incômodo com o que tinha acontecido no workshop. Ele disse: “Davi, achei sensacional o workshop, acho que você conduz muito bem. Você é uma pessoa que admiro bastante, pelo seu trabalho e tudo mais. É um tema muito importante esse que discutimos e estou feliz com os resultados. Inclusive acho você mais atencioso e competente que o seu colega. [E mais muitos elogios].

Confesso que fiquei bastante confuso, não sabia se agradecia o elogio ou perguntava mais sobre o que tinha incomodado. Ficou tudo misturado na minha cabeça e fiquei sem reação, mas com aquela sensação de “tem algo estranho aí”. Mas já estava na minha hora e eu fui embora, sem ter a chance de esclarecer com ele.

Depois comentei com o meu parceiro sobre esse feedback do gerente e também minha sensação de estranhamento. Foi aí que meu colega me lembrou de que em dado momento no workshop ele tinha dito algo que poderia ter feito o gerente se sentir invalidado frente a sua equipe. Então conectei as coisas e formulei um julgamento na minha cabeça (mas que nunca validei com o gerente se era verdadeiro ou não): o gerente provavelmente queria falar sobre o incômodo que teve durante o workshop, e a forma que encontrou foi me “elogiando” e estabelecendo uma comparação com o meu parceiro. Talvez estivesse com receio de como eu receberia a crítica. De certa forma, parece que tentou me manipular.

O que fazer quando perceber outros manipulando

Existe um perigo inerente sempre que aprendemos um novo modelo. Começamos a enxergar a realidade a partir dessa nova lente e encaixar tudo que vemos nela. Depois de ler esse texto, provavelmente você vai perceber você e outras pessoas manipulando em várias situações. Nessa hora podemos cair na armadilha de achar que essa perspectiva é a verdade última e que se os outros estão manipulando então você precisa fazer alguma coisa, como dizer “hey, seu manipulador! Estou vendo”.

Primeiro de tudo devemos tratar nossa perspectiva como apenas uma possibilidade. Se o outro está manipulando ou não, só ele pode avaliar e afirmar, pois depende das intenções da pessoa, que só ela conhece (ou nem mesmo ela). Por isso sempre trate a manipulação como uma inferência sua, do observador. E na facilitação, quando temos inferências é prudente checarmos elas.

Na história anterior, vamos supor que Jonas se incomode com a interferência repentina do Cleber, que disse “Pessoal, é importante pensarmos naquilo que é mais importante para a empresa e por isso focar na conversa aqui de planejamento, ok?”. Vamos supor também que o Jonas suspeite que há algo importante que o Cleber não compartilhou sobre sua intervenção. Então ele poderia dizer:

  • Fiquei incomodado com a sua intervenção, Cleber. Eu gostaria de discutir isso com a Mari, mesmo que não seja o que planejamos (revelar);
  • O que te faz pensar que é melhor deixarmos esse tópico de lado e focar no planejamento, Cleber? (perguntar);
  • Como eu e a Mari queremos muito conversar sobre isso, vamos ir para outra sala ter esse papo enquanto vocês seguem com o planejamento (propor).

Em nenhuma situação acima Jonas fala que acha que o Cleber está manipulando. Não que isso seja proibido, mas geralmente é mais construtivo para a conversa revelar o que observamos, como nos sentimos e nossas necessidades.

Ou seja, devemos tratar a manipulação do outro como um julgamento e inferência nossa, respondendo a isso com atitudes ligadas à facilitação. Podemos cair na tentação de tratar esse julgamento como uma certeza, subir a escada da inferência e acabar criando uma profecia autorrealizável, nos engajando em atos manipulativos.

Sumarizando, quando julgamos que o outro está ocultando algum elemento importante na sua narrativa, convidamos ele a compartilhar essa informação. Mas também devemos respeitar caso a pessoa não queira fazer isso.

O que fazer quando se perceber manipulando

Depois de ler esse texto você talvez se perceba manipulando, ou seja, evitando compartilhar informações relevantes sobre suas intenções e necessidades em uma conversa.

Primeiro de tudo, respire fundo, está tudo bem. Provavelmente você está agindo dessa forma porque tem medo das consequências de compartilhar essas informações com o grupo. Esse medo talvez esteja relacionado a uma necessidade sua de segurança, aceitação, reconhecimento, ou até pertencimento. Caso seja possível, experimente talvez dizer ao grupo que você não se sente seguro ou à vontade de dividir essas informações. Esse pequeno ato de vulnerabilidade já pode fazer uma grande diferença.

Depois da conversa e quando estiver sozinho e sem a pressão de dar uma resposta na hora, você pode refletir sobre como você acabou por se envolver em um contexto que não viu outra opção que não manipular. Que outras estratégias seriam possíveis? O que seria necessário mudar no contexto para você não se ver nessa enrascada? Lembre-se que a forma da contratação da facilitação é essencial para fugir dessas situações que não vemos outra opção que não manipular.

Manipulamos quando não nos sentimos seguros para nos vulnerabilizar. De fato, nem todos os contextos e grupos são seguros para isso. É uma escolha muito pessoal, por isso convido você a ficar à vontade para avaliar quando fazer e quando não. Por outro lado, só alguém tendo coragem e dando esse primeiro passo para que outros também façam.

Aprenda mais sobre manipulação (ou como não fazê-la)

Existe um ótimo livro sobre manipulação, muito recomendado por diversos gurus de liderança. Chama-se “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, do Dale Carnegie. Desse paradigma proposto pelo autor surge uma consagrada prática de gestão que se chama “feedback sanduíche”.

Se você ainda não teve o desprazer de conhecer isso, vou te explicar. Quando você quer criticar o trabalho de outra pessoa, você começa falando de algo que admira ou gosta, depois introduz a crítica, e por fim termina com algo positivo. É uma forma de dar feedback que supostamente aumenta a aceitação e reduz o desconforto. É a mais pura manipulação, e de um jeito bem ridículo, porque a maior parte das pessoas percebe essa estratégia furada.

Dica: Leia o livro do Carnegie e faça tudo ao contrário.

Gostaria de creditar também algumas ideias desse texto ao livro The Skilled Facilitator, onde Roger Schwarz propõe o “Controle Unilateral” como antítese do “Aprendizado Mútuo”, este último fala sobre a forma de atuação da pessoa facilitadora. Muitos elementos do controle unilateral inspiram o que chamamos de manipulação por aqui. Aqui no blog já escrevemos sobre isso, nos textos “Facilitação ou manipulação de grupos?” e em “Facilitando sem manipular”.

No mais, espero que esse texto tenha servido de provocação para você no sentido de refinar sua prática de facilitar e participar de diálogos.

Meus sinceros agradecimentos pela revisão e contribuição de Tami Lima, Vanessa Yumi Souto, Monica Santos e Dyego Cantu.

Conteúdos sobre Facilitação

Inscreva-se abaixo para receber mais conteúdos sobre facilitação por email.

Sobre o(a) autor(a): Davi Gabriel Zimmer da Silva

Davi é designer organizacional e facilitador na Target Teal, especializado em melhorar interações entre times e indivíduos no ambiente corporativo. É pioneiro na prática de Holacracia no Brasil e co-autor da Organização Orgânica, uma abordagem brasileira para autogestão. Davi é formado em Sistemas de Informação pela UNISINOS e pós-graduado em Psicologia Positiva pela PUCRS. É amante dos temas desenvolvimento humano e de organizações, produtividade, futuro do trabalho e cultura organizacional.

Deixar um comentário