Em primeiro lugar já quero começar dizendo que o título deste artigo está errado. Não são os modelos que propagam falácias, são pessoas. Mas como eu queria um título que chamasse atenção preferi deixar assim mesmo. :)

Bom, vamos começar.

Ahhhhh, modelos. Nós amamos modelos. Consultores e facilitadores adoram modelos que ajudam a explicar processos e conceitos. Mas…

Você já parou para se perguntar sobre o que é realmente possível conhecer? Será que nossos modelos de representação da realidade são acurados?

Pois é. As indagações sobre como nós conhecemos a realidade e o que de fato é possível conhecer começaram há muito tempo. Este é um questionamento que vai desde os pré-socráticos a Habermas… e além.

Não importa qual seja a área em que trabalha, você provavelmente já usou um modelo em algum momento para te ajudar a compreender a realidade. Na verdade, arrisco dizer que neste exato momento em que você lê este artigo são vários os modelos que te ajudam a fazer sentido da informação que está aqui exposta.

O que estou a definir como modelo aqui é o seguinte( copiado de um artigo da UFSM que não identifica a autoria ):

Um modelo é uma imagem mental simplificada e idealizada, que permite representar, com maior ou menor precisão, o comportamento de um sistema. O modelo incorpora apenas as características consideradas importantes para a descrição do sistema, selecionadas intuitivamente ou por conveniência matemática. De modo geral, o propósito de um modelo é simplificar certa realidade para que ela possa ser analisada.

Mas um modelo também pode ser um método, um processo, um mapa e qualquer construto intelectual utilizado para explicar, implementar ou desenhar alguma coisa.

Meu objetivo com este texto é provocar uma reflexão sobre como alguns movimentos e pessoas passaram a idolatrar seus modelos como verdadeiros deuses que ditam como devemos nos comportar, contratar pessoas, desenhar organizações, criar sistemas educacionais e todas as estruturas da nossa sociedade como se houvesse uma receita de bolo que pode ser seguida à risca.

Além disso, quero estimular consultores que utilizam modelos conceituais no seu dia a dia a estudarem mais filosofia e especificamente a área da epistemologia, que é um palavrão que pouca gente sabe o que significa nos dias de hoje. Provavelmente já deixei você com sono só de dizer essa palavra.

Acredito que qualquer profissional que trabalhe com intervenções em sistemas sociais deveria ter um contato mínimo com a história da construção do conhecimento científico e as questões filosóficas em volta do conhecimento. Em um mundo que vende soluções rápidas para todos os problemas isso se torna cada vez mais necessário.

Este artigo será construído a partir da idéia de que a realidade se apresenta de forma diferente para cada observador de acordo com os seus modelos internos de representação, isto é, a subjetividade do sujeito que observa.

Esta afirmação por si só já é produto do modelo interno de representação daquele que vos escreve e portanto pode fazer sentido ou não para quem observa.

Qualquer modelo é uma simplificação da realidade.

Diagramado pelo autor

O observador olha para o mundo com uma lente que envolve todas as experiências, crenças, valores e conhecimento que adquiriu durante sua vida.

Qualquer coisa além dos limites da sua percepção é simplesmente ignorada. E aquilo que percebemos é re-apresentado de acordo com os nossos modelos internos.

Não é uma questão da perspectiva estar certa ou errada. É apenas uma dedução que nos leva a crer que a percepção humana é naturalmente limitada. Uma forma comum de falar sobre isso hoje em dia é a partir dos viéses cognitivos, que são modelos conceituais dos nossos “bugs”.

Estamos fechados em nossas próprias caixinhas onde vivenciamos a realidade que idealizamos e especulamos.

E isso às vezes é levado a um extremo onde tentamos forçar o mundo a se adequar aos nossos modelos(já ouviu falar de bater meta?). A realidade deve se submeter à nossa vontade. E quando olhamos pra isso num contexto profissional temos o famoso ditado(normalmente atribuído a Maslow) que nos lembra das limitações dessa abordagem:

Ilustração por Lucie Ravard

Se a única ferramenta que você tem é um martelo, então todo problema vai ser tratado como um prego.

Neste caso a ilustradora resolveu chamar o martelo de “Design Thinking”, como se fosse uma bala de prata para resolver todos os problemas.

É essa atitude unilateral de achar que um único método possui todas as respostas que gera o que eu chamo de falácia dos modelos.

Vejamos este exemplo do filósofo Eubúlides:

– Consegue reconhecer seu pai?

– Sim.

– Consegue reconhecer este homem encoberto?
– Não.
– Você se contradiz, pois este homem encoberto é seu pai. E assim você reconhece e, ao mesmo tempo, não reconhece o seu pai.

A falácia consiste simplesmente no fato de a pessoa interrogada pressupor, ingenuamente, que a palavra reconhecer se refere, em todos os casos, ao mesmo fato objetivo, quando, na verdade, sua validade se restringe a certos casos definidos. (C.G Jung, 1971)

Pra que serve esse blábláblá todo?

Essa questão sobre os limites do conhecimento é bastante relevante quando falamos sobre aplicações práticas de modelos que utilizamos no nosso dia a dia. Por exemplo, durante muito tempo acreditamos que os planetas giravam em torno da Terra, que o átomo era uma partícula indivisível e que as leis da física newtoniana descreviam o universo de forma acurada.

Com o tempo nós fomos atualizando os nossos modelos e isso possibilitou a compreensão de alguns fenômenos a partir de outras perspectivas.

Agora, qual é a utilidade de levar todos esses aspectos em consideração quando lidamos com modelos?

Bom, a utilidade prática de tudo isso é basicamente desenvolver o senso crítico. Utilizar modelos de forma crítica significa :

  • Tomar decisões com base em múltiplas perspectivas.
  • Assumir que há sempre uma intersubjetividade a ser considerada dentro de sistemas sociais.
  • Perceber que generalizações não definem questões individuais e vice versa.
  • Reconhecer que nossas premissas podem estar equivocadas
  • Desenvolver hipóteses que possam refutar nossos modelos
  • Adaptar a nossa abordagem de acordo com o contexto

Para cultivar um senso crítico apurado sobre a construção e utilização de modelos conceituais nós vamos ter que explorar um pouco alguns caminhos que foram desbravados por grandes pensadores.

Como já disse anteriormente, muita gente falou sobre essa questão dos limites do conhecimento.

Nós vamos explorar as idéias de três autores que não necessariamente dialogam entre si mas dentro da narrativa que estou construindo eles são bastante complementares.

O primeiro é o Kant com a sua crítica da Razão Pura, do Juízo e da Razão Prática . Depois vamos falar de algumas idéias do psiquiatra suíço Carl Jung(Kantiano declarado), sobre nominalismos cultos, problema dos universais e vamos explorar brevemente os critérios de validação oferecidos por Varela e Maturana(que possuem diferenças com Kant mas podem se complementar em alguns momentos).

No fim da história eu vou fazer uma proposta de como esses conceitos podem nos oferecer estratégias para lidar com a complexidade de forma crítica e respeitando a subjetividade dos fenômenos sociais e dos sujeitos enquanto sistemas observantes.

O texto pode ficar bem enfadonho a partir daqui e vou tentar oferecer exemplos para ser o mais didático possível. É preciso fazer um certo esforço para compreender toda essa panóplia mas eu juro que vale a pena!

Tendo dito isso, vamos começar com Kant!

A teoria do conhecimento de Kant

Immanuel Kant foi um cara que se dedicou basicamente ao estudo. Ele nunca saiu da sua cidadezinha de Konigsberg a vida toda. As suas contribuições para a filosofia foram muitas, mas foi o seu trabalho acerca das possibilidades do conhecer que ficou conhecido como a grande revolução copernicana da filosofia. A linguagem do Kant é muito rebuscada e ele é cheio de termos que só gente erudita entende. A sua doutrina do idealismo transcendental já fala por si só nesse quesito de termos difíceis.

A obra do Kant é gigantesca e o que vamos abordar aqui não representa nem um pedacinho de todo o estudo que ele fez. Na verdade não serve nem como introdução. E eu também não sou um especialista em Kant e posso estar distorcendo alguma coisa no caminho por pura ignorância.

Mas este pequeno conceito que vou apresentar mudou completamente a minha percepção de realidade e da forma como interpreto fenômenos sociais.

Segundo Kant, nós não podemos conhecer a essência das coisas-em-si. Só podemos conhecer as coisas segundo nossos modelos mentais que nos permitem apreender e interpretar a experiência empírica.

Ele vai apresentar esta idéia fazendo uma distinção entre fenômeno(do grego phainomenon = observável) e a coisa em si, que ele chamava de númeno. Já começa a ficar confuso né? Pois é, coisa de filósofo.

Além disso, há julgamentos que fazemos antes da experiência(a priori) e depois da experiência(a posteriori).

Esses julgamentos a priori formam a nossa caixinha de representação interna.

Diagramado pelo próprio autor

Quando o sujeito observa algo, as primeiras informações sobre aquele objeto serão transmitidas a partir dos sentidos/sensações. Mas uma vez que o sujeito processa uma informação a partir de estímulos sensoriais é impossível dissociar a percepção do sujeito daquilo que é apreendido.

Todos os conceitos, crenças, valores e tudo mais que contribui com a visão de mundo do sujeito vão influenciar em como, de fato, observamos o fenômeno e na própria forma como este fenômeno se manifesta para sua mente.

Observe que há uma distinção entre o que aparece(fenômeno observável) e o que de fato é a coisa em si que está sendo observada. Já dizia Piaget que

“Os fenômenos humanos são biológicos em suas raízes, sociais em seus fins e mentais em seus meios”

Em outras palavras, a experiência é um todo bio-psicosocial. Primeiro, nós percebemos o mundo(sensações). Depois, a nossa percepção gera juízos racionais e emocionais que por sua vez vão influenciar diretamente o nosso comportamento e a forma como nos relacionamos com o mundo.

Este modelo não afirma a impossibilidade do conhecimento. Apenas ressalta a impossibilidade de conhecer a essência das coisas que observamos porque não temos como dissociar as nossas estruturas racionais da nossa percepção de mundo. Em outras palavras, não há conhecer sem conhecedor.

Vamos tentar compreender isso a partir de um exemplo.

Que representação alguém obteria da essência de um lápis, por exemplo, caso se lhe dissesse apenas: o lápis é o lápis? Obviamente nenhuma. Para descrever o lápis, precisaríamos nos expressar mais ou menos assim: o lápis é uma coisa extensa, é alongado, fino, tem forma cilíndrica, é colorido, duro, pesado, etc. Vemos aqui, portanto, toda uma quantidade de qualidades contidas ou abarcadas numa unidade (o lápis), as quais são todas diferentes umas das outras. (Denken und Wirklichkeit, Spir – 1873)

Nós podemos enumerar todas as qualidades possíveis do lápis a partir dos fenômenos, mas ainda assim nunca vamos conseguir descrever a essência do lápis como um todo. Essa é a grande sacada do Kant. Nós sabemos que o lápis existe e damos uma utilidade prática para este objeto. Mas eu conheço o lápis em toda a sua essência mesmo que eu consiga descrever com detalhes tudo aquilo que faz um lápis ser um lápis? Kant diria que o lápis em si é incognoscível, isto é, impossível de conhecer.

Confuso? Leia este artigo super didático para compreender melhor o que Kant queria dizer com isso.

Críticas à Teoria do Conhecimento de Kant

Kant certamente foi muito criticado ( leia um resumo da crítica de Schopenhauer e de Einstein, mas é impossível negar a sua influência na ciência contemporânea. Todo este campo do estudo do saber e das várias formas de ciência se enquadra dentro do campo da epistemologia. Um outro campo de estudo que surge como um desdobramento da pesquisa de Kant é o que conhecemos como Fenomenologia(estudo dos fenômenos), que tem como um de seus pré-cursores Edmund Husserl(que discordava da distinção de fenômeno e númeno de Kant). A fenomenologia por sua vez vai ser abordada em grande detalhe por muitos outros autores(Heidegger, Levinas, Sarte, Merleau Ponty para citar alguns) e será impossível abordar qualquer coisa sobre isso aqui sem fazer os leitores dormirem antes de terminar o artigo.

É importante considerar que eu também estou imprimindo a minha própria visão de mundo e estou considerando Kant como uma referência absolutamente importante aqui mas isso não significa que existe um consenso no meio filosófico e científico sobre as idéias de Kant. Tampouco significa que Kant concordaria com a salada de frutas que estou a fazer. Na verdade, deve ser bem estranho ler esse artigo se você for um filósofo. Recomendo o livro de Gustavo Castanõn – Introdução à Epistemologia – para quem gostaria de se iniciar no estudo da evolução da ciência e obter uma visão muito mais ampla do que estou oferecendo aqui neste pequeno artigo.

Também não vou falar sobre as questões levantadas pelo Karl Popper e o seu princípio de falseabilidade para não deixar esse artigo gigantesco. Mas este é um conceito absolutamente importante para navegar essa questão dos modelos.

O teste do ponto cego

Uma boa síntese para toda essa questão das limitações do conhecimento vem diretamente de Varela e Maturana, que embora discordem de Kant em alguns aspectos e tenham uma epistemologia própria, também acabam se complementando em alguns momentos:

Como é possível que eu mesmo possa dar conta das regularidades e variações perceptivas do meu próprio mundo, incluindo o surgimento de explicações sobre elas, se não tenho como me situar “fora” de minhas pró- prias percepções? (Árvore do Conhecimento, 1987)

Vamos ilustrar essa questão dos limites da nossa percepção com um simples experimento conhecido como “teste do ponto cego”.

Feche seu olho direito. Posicione a sua cabeça a mais ou menos 50cm da tela do computador. Olhe para o sinal de + com o seu olho esquerdo. Lentamente, aproxime sua cabeça da tela enquanto você olha para o sinal de +. Em uma determinada distância, o ponto vai desaparecer…

O que aconteceu?

Bom, uma das explicações mais aceitas para este fenômeno é que quando o ponto desaparece isso significa que está em uma área que o nervo óptico não é sensível à luz e por isso não pode perceber o ponto.

Aqui nós podemos perceber que a nossa percepção não se limita apenas a nível cognitivo mas de forma biológica como um todo. Todo modelo possui um ponto cego.

Um modelo da busca pelo sentido da vida

Vamos fazer uma pausa nesse papo sobre a teoria do conhecimento Kantiana e explorar essa questão dos modelos com uma outra abordagem.

Quero contar uma anedota que aprendi com John Croft para ilustrar o que observo que acontece com os modelos dentro da nossa sociedade em geral.

Uma das funções primordiais que os modelos exercem em nosso dia-a-dia é oferecer um sentido para a vida. De fato, nós fazemos isso desde que adquirimos a habilidade de contar histórias. Os mitos foram e ainda são os modelos que utilizamos para explicar de onde viemos, para onde vamos e a razão da nossa existência.

E é a partir disso que vou contar uma historinha(lá vem outro modelo) sobre como essa busca pelo sentido da vida faz com que, às vezes, acabemos confundindo os nossos modelos existenciais com a realidade em si(lembra do Kant?).

A história fala de quatro personagens: O Hedonista, Fundamentalista, Guru-Chaser e o Herói.

Eventualmente chega um momento em nossas vidas em que começamos a nos questionar sobre qual é o sentido da nossa existência.

Para o Hedonista o sentido da vida não é importante. O que importa é viver o momento presente e desfrutar dos prazeres da vida. Eventualmente pode acabar virando um fundamentalista ou guru-chaser.

Para o Fundamentalista o sentido da vida está escrito em algum lugar e é representado de forma totalmente acurada por um modelo.

Para o Guru-Chaser o sentido da vida vai ser explicado por alguém, uma autoridade. Eventualmente pode acabar virando um Fundamentalista.

Para o Herói o sentido da vida é descobrir o sentido da vida. Talvez nem tenha um sentido e provavelmente nunca saberá. Mas isso não importa porque a sua vida ganha sentido com a própria busca. O Herói é aquele que se joga no desconhecido, que se dedica a uma causa maior que a si próprio, que enfrenta o status quo.

Embora essa questão do “herói” tenha se tornado um clichê e gerado toda uma indústria que tenta vender a idéia de super heróis invencíveis, eu peço aos leitores que se mantenham comigo na idéia de que este herói é uma pessoa normal que não veste uma capa. São as pessoas que diariamente desafiam o status quo e navegam a complexidade sabendo que não vão necessariamente encontrar uma resposta. E tá tudo bem.

Esses personagens vivem em todos nós seja de forma simultânea, em fases diferentes ou apenas como um modelo conceitual.

Quem nunca buscou uma autoridade externa para atualizar seu próprio modelo interno?

Quem nunca achou que havia encontrado grandes respostas em um livro?

Quem nunca deixou a “verdade” para cometer o pecado do prazer pelo prazer?

Quem nunca entrou na água sem saber a profundidade do rio?

A realidade é dialógica e contraditória. É fácil utilizar um modelo como esse para classificar as pessoas como hedonistas, fundamentalistas, guru-chasers e heróis.

Naturalmente que também somos muito mais que isso. E esta é a natureza limítrofe dos modelos.

O que essa historinha tem a ver com o nosso objeto de estudo aqui?

Pense em momentos em que algum desses personagens esteve mais presente na sua vida em relação a um assunto novo que você estava aprendendo… Como podemos praticar a autocrítica de vez em quando sobre a forma como nos relacionamos com nossos queridos modelos?

A veneração dos modelos

Autor Desconhecido

Especialmente no campo do desenvolvimento humano, os modelos são muitas vezes venerados como verdadeiras receitas para o sucesso. Um efeito colateral que pode surgir a partir disso é, por exemplo, a indústria do coaching e auto-ajuda que oferece soluções rápidas para todos os problemas psíquicos baseados em modelos advindos da programação neurolinguística, behaviorismo e outros.

Não que isso seja um problema, mas talvez isso esteja relacionado com grandes massas seguidoras que propagam as falácias a partir do que ouvem e das referências que escolhem acreditar. Talvez. Numa perspectiva reducionista, poderíamos observar essas atitudes no espectro do fundamentalismo ou guru-chasing.

Mas que modelos são esses? Ah, isso é fácil.

Pense em coisas como a pirâmide de necessidades do maslow, astrologia, triângulo de Karpman, estágios de aprendizagem, estágios de formação de grupos do Tuckman, fases do luto da Kubler-Ross, CNV, MBTI, ciclo de vida de produtos e a lista continua indefinidamente… Isso porque nem citei metodologias, práticas terapêuticas, modelos econômicos, ideologias políticas e outras peripécias que servem de insumo para uma abordagem fundamentalista. Apesar de que o fundamentalismo pode se manifestar em qualquer lugar né?

O problema é que isso não gera apenas abordagens unilaterais que são implementadas em organizações. Isso reflete todo o nosso sistema educacional, econômico e a intolerância à divergência que se manifesta na nossa sociedade. Óbvio que isso – a falácia dos modelos – não é a causa raiz de tudo. Mas será que não contribui um pouco? A pergunta é retórica, tá?

Não pense que estou simplesmente a condenar todos os modelos. Leia até o final e verá que penso bem diferente disso.

Um olhar crítico da Psicologia Analítica

É aqui que eu gostaria de invocar a sabedoria de um grande autor que admiro muito: Carl Gustav Jung.

Jung desenvolveu a psicologia analítica e é até hoje um dos autores mais famosos na história da psicologia. Talvez eu também possa afirmar que ele é um dos menos compreendidos. Naturalmente que a sua erudição e forma de escrever também não facilitou muito para os desavisados.

Dentro das explorações que tenho feito como estudante de psicologia analítica descobri que Jung acabou por desenvolver quatro postulados que embasam toda a sua psicologia. Vou me permitir fazer uma síntese com interpretação livre sabendo que isso não reflete exatamente o que ele disse.

Seguem os quatro princípios básicos da psicologia analítica ou complexa:

  1. Uma afirmação psicológica só é útil se, e somente se, o seu oposto também for considerado.
  2. O genérico não importa perante o individual e o individual não importa perante o genérico.
  3. Em psicologia analítica não existem regras e isto não é uma regra.
  4. O único critério de validez de uma hipótese é o seu valor heurístico.

Gosto de pensar que esses princípios podem ser úteis para designers sociais.

A minha proposta é fazer uma transposição desses princípios para o processo de design sistêmico para gestão, aprendizagem, desenvolvimento humano e basicamente tudo que se relaciona com fenômenos sociais. Naturalmente que isso é só mais um modelo e baseia-se apenas em conjecturas, mas acredito que pode contribuir bastante para lidar com problemas complexos. Os princípios foram adaptados para o uso de modelos conceituais para invervenções práticas em sistemas sociais.

Uma afirmação só é útil se o seu oposto também for considerado

Qualquer afirmação feita com base em observações de fenômenos deve ser questionada se o seu oposto também não poderia ser “verdadeiro”. E não só questionada, mas é importante realmente buscar um cenário em que o oposto daquela afirmação também se manifesta.

Por exemplo, talvez eu possa afirmar que distribuir a tomada de decisão na minha empresa é um bom caminho para estimular a autonomia das pessoas. Mas também devo considerar que algumas pessoas preferem não participar de processos que envolvem tomar decisões.

Pode parecer contra-intuitivo mas qualquer modelo possui um lado virtuoso e um lado vicioso.

O genérico não importa perante o individual e o individual não importa perante o genérico

Vamos supor que você descobriu um novo método que funcionou muito bem com ativistas sociais, ongs e associações para projetos de curto prazo. Um belo dia você recebe um convite para levar a sua metodologia para uma empresa com fins lucrativos que tem um propósito voltado para impacto social e com o passar do tempo começa a observar que a sua metodologia não funciona tão bem e precisa ser adaptada.

Especialmente quando falamos de sistemas sociais, não adianta tentar reproduzir processos que funcionaram em um contexto específico para qualquer contexto.

Da mesma forma, olhar para as particularidades de um sistema não vai garantir por si só algo que seja útil para todos os contextos.

Todo ser humano é um mamífero bípede. Isto é uma afirmação generalizada sobre uma espécie que se tornou possível a partir de observações e experimentos empíricos.

Quando falamos de fenômenos sociais e desenvolvemos tecnologias para intervir nesses sistemas não temos como categorizar pessoas e organizações em famílias e espécies.

Este é o princípio básico da intersubjetividade, isto é, cada contexto possui as suas especificidades e nós precisamos trabalhar muito para compreender as nuances de cada cenário.

Quando fenômenos individuais são generalizados estamos ignorando a subjetividade de cada contexto. E quando fenômenos coletivos são individualizados ignoramos a subjetividade de cada indivíduo.

Não existem regras e isto não é uma regra

Você já deve ter percebido que todos esses princípios estão relacionados e acabam reforçando aspectos um do outro.

Dinâmicas sociais são imprevisíveis e expressam múltiplas perspectivas o tempo todo.

Isto é uma característica básica do que chamamos de emergência: a formação de padrões complexos a partir de múltiplas interações dentro de um sistema.

Especialmente quando fazemos intervenções em sistemas sociais, não existem regras que definem o que podemos e não podemos fazer.

Por exemplo, quando trabalhamos com uma tecnologia social como O2 temos um conjunto de processos que estão sendo estabelecidos como parte de um método. Ao aplicá-la num contexto organizacional isso envolve inúmeras adaptações que acabam por ignorar completamente a forma como alguns processos foram estabelecidos(Ignorar elos duplos de ligação é muito comum durante a transição).

Ao mesmo tempo, não significa que não tenhamos práticas que possam estabelecer a forma como abordamos problemas complexos e que atuam como um conjunto de acordos que estabelecem contornos para como o trabalho será realizado.

Seja qual for a busca em uma intervenção social, é bom estar pronto para abandonar regras, receitas e princípios a qualquer momento em que parem de fazer sentido.

O importante é fazer isso a partir de uma abordagem que integra as diferentes perspectivas no processo.

O único critério de validez de um modelo é o seu valor heurístico

Modelos são importantes. Nós precisamos deles para compreender a nós mesmos e o mundo.

O que diferencia uma abordagem complexa de uma abordagem linear é justamente o modelo que utilizamos para embasar a nossa visão de mundo.

O problema é que às vezes os nossos modelos são traiçoeiros. E pior, acabam por se tornar absolutamente inúteis.

Precisamos de modelos que ofereçam uma utilidade prática.

Este princípio vem diretamente do pragmatismo, uma vertente filosófica que busca a praticidade acima de tudo. Os pragmatistas diriam para Kantianos, fenomenólogos e metafísicos que não importa se é possível conhecer a essência das coisas ou não. O que importa é como isso nos ajuda a de fato interagir com sistemas sociais e formular possíveis intervenções práticas.

Vamos dar uma olhada em um trecho retirado do artigo de William James de 1948 chamado “O que é Pragmatismo”:

O método pragmatista é, antes de tudo, um método de terminar discussões metafísicas que, de outro modo, seriam intermináveis. O mundo é um ou muitos? Livre ou fadado? Material ou espiritual? Essas noções podem ou não trazer bem para o mundo; e as disputas sobre elas são intermináveis. O método pragmático nesse caso é tentar interpretar cada noção identificando as suas respectivas consequências práticas (…) Se nenhuma diferença prática puder ser identificada, então as alternativas significam praticamente a mesma coisa, e a disputa é inútil.

Ou seja, quando nos deparamos com uma proposta de modelo devemos nos perguntar:

Este modelo me oferece alguma utilidade prática?

Me ajuda a compreender algo? Me oferece estratégias? Me dá clareza sobre alguma coisa?

Não? Então jogue fora.

Para quem não conhece a palavra heurística, gosto muito da definição de Daniel Kahneman: “Heurística é um procedimento mental simples que ajuda a encontrar respostas adequadas, embora várias vezes imperfeitas, para perguntas difíceis.”

Se um modelo não oferece nenhuma heurística então é só masturbação intelectual.

Um outro paradigma

Os princípios da psicologia analítica oferecem uma sólida base para utilizar modelos de forma responsável, eu diria, quando aplicados a qualquer modelo conceitual que utilizamos para descrever sistemas sociais.

Este olhar que descrevo aqui, ao sumarizar todas essas perspectivas e dialogar com o pensamento sistêmico, é fruto de uma ruptura com uma ciência tradicional essencialmente mecanicista, cartesiana e linear.

A ciência tradicional foi muito importante para chegarmos até aqui. E com “ruptura” não quero dizer que devemos abandonar aquilo que conquistamos a partir de todas as revoluções científicas que experimentamos enquanto organismo social nos últimos 300 anos.

A diferença é que, ao invés de partir do princípio de que a realidade se comporta de forma estável, objetiva e simples, nós entendemos que a realidade é instável, intersubjetiva e complexa(Vasconcellos,2010)…

A busca de leis gerais e atemporais constitui-se num dos principais objetivos da ciência tradicional (Schmidt, Schneider, & Crepaldi, 2011).

Já não dá mais para perpetuar a abordagem linear da ciência tradicional em que temos um mapa acurado da realidade, que compreendemos fenômenos sociais em sua totalidade, que sabemos como vai ser o dia de amanhã.

A abordagem sistêmica envolve tanto o pensamento mecanicista como o holístico. É possível olhar para as engrenagens da máquina e a relação entre as partes ao mesmo tempo.

O mapa não é o território e Isto não é um Cachimbo

Gregory Bateson, no livro Steps to an Ecology of Mind (1972), argumentou a impossibilidade de saber o que é qualquer território real. Qualquer compreensão de um território é baseada em um ou mais canais sensoriais relatando de forma adequada, mas imperfeita:

“Dizemos que o mapa é diferente do território. Mas qual é o território? Alguém saiu com um medidor e fez representações que foram colocadas no papel. O que está no mapa de papel é uma representação do que foi representado para o homem que fez o mapa; e conforme você repete a questão, o que você descobre é uma regressão infinita, uma série infinita de mapas. O território nunca entra. … O processo de representação sempre será imperfeito de modo que o mundo mental seja apenas mapas de mapas, ad infinitum.”

Foi Alfred Korzybski que propagou a máxima de que o “mapa não é o território” e, embora tenha se tornado uma frase de efeito, ainda captura muito bem a idéia de que modelos são apenas re-apresentações da realidade.

O que nos leva diretamente para o famoso quadro de René Magritte chamado “A Traição das Imagens”.

O que vemos neste quadro é obviamente a imagem de um cachimbo. Abaixo temos a frase que diz “isto não é um cachimbo”.

Magritte está se re