Ao longo do século XX, testemunhamos uma série de modelos de gestão que transformaram a forma como as organizações operam. Do modelo de produção em massa de Ford ao sistema lean da Toyota, cada inovação refletiu as possibilidades tecnológicas e as demandas sociais de sua época.
Mais recentemente, com o advento das tecnologias digitais, vimos o surgimento do movimento Ágil, com o modelo Spotify ganhando destaque. Desde a década de 70 a sociocracia se desenvolve na Europa, tendo aparecido mais fortemente no continente americano com a criação da Holacracia por Brian Robertson e a S3 por James Priest, influenciadas pela primeira. Em 2017 a Target Teal lança a primeira versão da Organização Orgânica, nosso caminho para a autogestão.
Agora, com a ascensão da Internet das Coisas (IoT), estamos à beira de uma nova revolução na gestão organizacional, segundo Zhang Ruimin, presidente da Haier Group, uma das maiores empresas de eletrodomésticos do mundo. O modelo Rendanheyi (人单合一), desenvolvido por eles, promete ser uma resposta aos desafios da era da IoT, colocando o ser humano no centro e repensando fundamentalmente a estrutura organizacional.
Neste artigo, exploraremos os principais conceitos do Rendanheyi para entendermos como ele se relaciona com o design organizacional emancipatório.
O modelo Rendanheyi da Haier
O termo “Rendanheyi” pode ser traduzido aproximadamente como “integração de pessoas e objetivos”, refletindo a filosofia central do modelo: alinhar os interesses dos funcionários com os dos usuários finais. Zhang Ruimin, CEO da Haier, percebeu que os modelos de gestão tradicionais não eram mais adequados para a era da Internet das Coisas (IoT). Ele afirmou:
“Até recentemente, as empresas chinesas estavam emulando e aprendendo com práticas de gestão avançadas em todo o mundo. Mas na era da IoT, ficamos sem modelos para seguir.”
O Rendanheyi começou a ser implementado em 2005 e evoluiu ao longo de 15 anos, transformando radicalmente a estrutura da empresa. As principais mudanças incluíram:
- Eliminação da hierarquia tradicional: A Haier removeu todas as camadas intermediárias de gestão, transformando 12.000 gerentes de nível médio em empreendedores ou incentivando-os a deixar a empresa.
- Criação de microempresas: A organização de 80.000 funcionários foi reestruturada em mais de 4.000 microempresas (MEs), cada uma preferencialmente composta por menos de 10 pessoas.
- Foco no usuário: A empresa passou a considerar os usuários como os verdadeiros líderes, orientando todas as ações para a criação de valor para o cliente final.
- Autonomia e empreendedorismo: As MEs operam com alto grau de autonomia, assumindo riscos e compartilhando recompensas com base no valor criado.
Ruimin compara a nova estrutura organizacional da Haier a uma água-viva: “Águas-vivas sobrevivem há mais de 600 milhões de anos, mais do que os dinossauros, e são um ótimo exemplo de sobrevivência do mais apto. Uma água-viva sobrevive sem cérebro, sem sistema nervoso central, apenas com tentáculos. Quando um tentáculo sente sua presa, não precisa de um sistema nervoso central para dar comandos. Outros tentáculos automaticamente cercam a presa e a capturam por meio de um esforço coordenado.”
Esta analogia ilustra como a Haier busca criar uma organização altamente adaptável e responsiva, onde as unidades autônomas (MEs) podem reagir rapidamente às necessidades dos usuários sem depender de uma estrutura de comando centralizada.
Principais conceitos do Rendanheyi
Vamos explorar os quatro conceitos mais importantes para o Rendanheyi: microempresas, comunidades micro-ecossistemas, ofertas de cenário e marcas de ecossistema:
Microempresas (MEs)
As Microempresas (MEs) são a unidade básica da estrutura organizacional da Haier. Cada ME é uma equipe pequena e autônoma, geralmente com 10-15 pessoas, que opera como uma mini-startup dentro da organização maior. As MEs têm total responsabilidade por suas decisões de negócios, gestão de pessoas e remuneração.
Essa estrutura promove o empreendedorismo interno, a agilidade e a responsabilidade direta pelos resultados. As MEs competem tanto internamente quanto externamente por recursos e oportunidades, criando um ambiente dinâmico e orientado para o mercado dentro da organização.
Comunidades Micro-Ecossistemas (EMCs)
As Comunidades Micro-Ecossistemas (EMCs) são agrupamentos de MEs ao longo de uma cadeia de valor do ecossistema. As EMCs reúnem MEs relacionadas para compartilhar valor. Ruimin explica:
“Quanto mais valor criado, mais lucro há para compartilhar. Claro, eles assumem quaisquer perdas em tais empreendimentos, e quando as perdas atingem um limite, a comunidade é dissolvida.”
Esta estrutura promove a colaboração entre diferentes MEs, evitando a mentalidade de silos comum em organizações tradicionais. As EMCs são formadas organicamente com base nas necessidades do mercado e dos usuários, permitindo uma resposta mais rápida e eficaz às mudanças no ambiente de negócios.
Ofertas de cenário
A Haier acredita que, na era da IoT, os produtos tradicionais serão substituídos por “ofertas de cenário”. Em vez de se concentrar apenas em produtos individuais, a empresa cria experiências integradas que atendem às necessidades holísticas dos usuários.Ruimin explica:
“Não existe um produto perfeito, apenas um cenário que itera em direção à perfeição. […] Quando cada residência se torna uma casa inteligente, nenhum produto único é suficiente, e nenhuma indústria única pode atender a todas as necessidades.”
Um exemplo disso é a oferta de cenário de “pato assado de Pequim em casa”, onde a Haier integra eletrodomésticos conectados, parcerias com chefs renomados e um serviço de entrega para proporcionar uma experiência gastronômica completa aos usuários.
Marcas de ecossistema
A Haier introduz o conceito de “marcas de ecossistema” como uma evolução das marcas de produto e marcas de plataforma tradicionais. As marcas de ecossistema visam criar relacionamentos de longo prazo com os usuários, indo além da simples transação de venda. Ruimin argumenta:
“Economistas apontam que as organizações no século 21 têm apenas um verdadeiro nível de competitividade – ter usuários para toda a vida. Vender apenas produtos não lhe dará usuários para toda a vida. Na era da IoT, as marcas de ecossistema são a resposta inevitável porque seu prêmio agora depende da experiência.”
As marcas de ecossistema da Haier são construídas em torno das ofertas de cenário, integrando produtos, serviços e parceiros externos para criar experiências completas e personalizadas para os usuários.
No próximo tópico, exploraremos como a Haier mede o sucesso desse modelo através da declaração de valor agregado ganha-ganha.
A declaração de valor agregado ganha-ganha
Uma das inovações mais interessantes do modelo Rendanheyi é a introdução de uma nova demonstração financeira: a declaração de valor agregado ganha-ganha. Esta ferramenta foi desenvolvida para superar as limitações das demonstrações financeiras tradicionais e refletir melhor a criação de valor em um ecossistema empresarial. Ruimin explica a necessidade desta nova declaração:
“A doutrina da ‘primazia do acionista’ foi proposta pelo ganhador do Nobel Milton Friedman em 1970. Ele argumentou que o propósito de uma organização é obter lucro e fornecer retornos aos seus acionistas. Os negócios foram governados por essa mentalidade por 50 anos. […] Mas isso não leva em conta os usuários que são essenciais para a era da IoT.”
A declaração de valor agregado ganha-ganha da Haier consiste nos seguintes elementos:
- Recursos do usuário: Este elemento lista todos os recursos que os usuários fornecem ao EMC (Comunidade Micro-Ecossistema). Isso reconhece o papel ativo dos usuários na criação de valor, algo que as demonstrações financeiras tradicionais não capturam.
- Provedores de recursos: Aqui são listados todos os parceiros externos que fornecem recursos ao EMC. Diferentemente dos fornecedores tradicionais, esses provedores de recursos são vistos como co-responsáveis pelo resultado.
- Valor total da plataforma do ecossistema: Este elemento lista todos os lucros obtidos das diferentes “ofertas de cenário” vendidas pelo EMC. Isso reflete a receita do ecossistema, não apenas a receita do produto.
- Receitas e Custos: Estes são elementos mais tradicionais que listam as receitas e custos gerados no ecossistema.
- Ganhos marginais: Este elemento final mostra como o EMC consegue transformar suas “ofertas de cenário” em motores de crescimento. Ruimin explica: “No ecossistema da Haier, os ganhos marginais estão aumentando. Por exemplo, o pato assado da Haier (EMC de Cozinha Inteligente) e o cenário da varanda (EMC da Varanda) não estão apenas gerando receita com a venda de geladeiras ou máquinas de lavar, eles transformam geladeiras e máquinas de lavar em veículos de valor do ecossistema que geram receitas e ganhos do ecossistema para que os ganhos marginais possam continuar aumentando.”
Esta abordagem para medir o desempenho empresarial reflete a mudança fundamental de mentalidade no modelo Rendanheyi. Em vez de se concentrar exclusivamente no valor para os acionistas, a Haier busca capturar e maximizar o valor para todos os participantes do ecossistema – usuários, parceiros e funcionários.
A declaração de valor agregado ganha-ganha fornece uma visão mais holística do desempenho da empresa e incentiva comportamentos alinhados com a criação de valor a longo prazo e a satisfação do usuário. Ela encoraja as EMCs a pensar além das métricas financeiras tradicionais e a considerar como suas ações impactam todo o ecossistema. Bem diferente das tradicionais metas de gestão com incentivos.
O ser humano no centro do Rendanheyi
A descentralização dos três poderes de tomada de decisão – decisões de negócios, decisões sobre pessoas e decisões de remuneração – é um detalhe bastante relevante no modelo Rendanheyi da Haier que contribui para tornar o sistema mais humano.
Ao tirar esses 3 poderes das mãos dos gestores, a Haier permite que os funcionários exerçam sua criatividade e iniciativa. Isso não apenas aumenta o engajamento, mas também reconhece a competência e o conhecimento único que cada indivíduo traz para a organização. Esta autonomia promove um senso de propriedade e responsabilidade, fundamentais para a realização pessoal no trabalho.
A descentralização das decisões sobre pessoas devolve aos indivíduos e equipes o poder de moldar seu ambiente de trabalho. Isto inclui a capacidade de escolher com quem trabalhar, como estruturar equipes e como desenvolver talentos.
Não podemos também desconsiderar a importância de descentralizar as decisões sobre remuneração, que na nossa experiência na TT, foi um elemento crucial nos projetos de autogestão mais profundos que pudemos participar.
Esta abordagem de descentralização reconhece que os seres humanos são mais do que simples recursos a serem gerenciados. Ela respeita a inteligência, a criatividade e a capacidade de cada indivíduo de tomar decisões significativas que afetam seu trabalho e sua vida.
Conclusão
O modelo Rendanheyi da Haier oferece um exemplo concreto e inspirador do que chamamos na Target Teal de “Design Emancipatório”. Ele demonstra como uma organização pode incorporar princípios fundamentais de um design organizacional radicalmente diferente, alinhando-se com nossa visão de estruturas mais fluidas, adaptativas e centradas no ser humano.
A abordagem da Haier exemplifica os princípios-chave que defendemos: um processo contínuo e incremental de design, evidenciado pela evolução constante do Rendanheyi; colaboração ampla, com cada microempresa contribuindo ativamente para a forma da organização; clareza organizacional, proporcionada pela autonomia e responsabilidades bem definidas; empoderamento estrutural, manifestado na descentralização dos poderes de decisão; e livre fluxo de informações e pessoas, facilitado pela estrutura em rede sem hierarquias rígidas.
O Rendanheyi também oferece caminhos para desafios comuns em organizações tradicionais, como a formação de silos e a tomada de decisões distante da linha de frente. Ao transformar funcionários em “microempreendedores” e criar comunidades micro-ecossistemas, a Haier redefine conceitos fundamentais de responsabilidade, autoridade e fluxo de trabalho, alinhando-se com nossa busca por estruturas que evitem antipadrões de design.
Enquanto cada organização deve encontrar seu próprio caminho, o Rendanheyi nos mostra que é possível – e necessário – reimaginar radicalmente como estruturamos nossas organizações para o futuro.
Leia aqui como o RenDaHeYi pode ser replicado com a O2.
Este artigo foi baseado no texto “The Next Management Model… Is From China?”, da Corporate Rebels.
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Fala Davi!
Ótimo texto.
Fiquei pensando sobre os possíveis problemas que esse modelo traz, além dos benefícios. Em especial na parte da descentralização dos 3 poderes, colocando funcionários no centro, e em como são tomadas decisões, se pessoas não ficam sujeitas a efeitos colaterais de gestão descentralizada sem equilíbrio, coisas do tipo. Pode ser que só perpetue problemas anteriores, e não sejam novos, mas fiquei curioso se chegou a investigar algo nesse caminho.
Valeu!
Desconheço esses detalhes do modelo deles (como as decisões são tomadas dentro das MEs, por exemplo), mas acredito que não deve ter uma resposta única e padronizada para isso. Nesse sentido reproduzir o modelo da Haier com O2 pode ser uma melhor alternativa, pois essas lacunas serão preenchidas. Uma desvantagem que imagino do modelo em geral é que toda a lógica se baseia na declaração de valor agregado. Pode ser que decisões éticas e de longo prazo que não possam ser representadas ou medidas pela declaração sejam despriorizadas.