Vivemos tempos de constante incerteza, inovação social e tecnológica. O trabalho se torna cada vez mais complexo e criativo, enquanto que muitos empregos tradicionais passam a ser automatizados. Estima-se que 47% do trabalho hoje nos Estados Unidos se tornará completamente obsoleto nos próximos 20 anos. Esse ritmo alucinante está deixando marcas no nosso planeta e a necessidade por organizações mais responsáveis sociológica e ecologicamente nunca foi tão tão grande. Como podemos ter organizações mais efetivas e éticas?

Enquanto isso, continuamos utilizando estruturas que surgiram há milênios nas nossas empresas. Sim, estou falando da forma de gestão fundamentalmente autocrática e baseada na cadeia de comando. Apesar das empresas modernas adotarem linguagens e termos sofisticados para descrever supostas novas práticas, a ideia fundamental da subordinação continua presente. Por exemplo, perceba quantas startups adotaram o “modelo Spotify“, mas no fim das contas apenas passam a chamar antigos chefes de Scrum Masters, Squad Leaders ou Chapter Leaders. Novas palavras para velhas práticas.

Para lidar com os efeitos colaterais da estrutura hierárquica e navegar no mundo VUCA, muitos especialistas propõem a criação de contextos onde a auto-organização seja possível. É o caso do Steve Demming, que em sua pesquisa percebeu que a maior parte dos times de alta-performance são auto-organizados. Outras evidências apontam para o mesmo caminho, como o Manifesto das Organizações Responsivas, o Movimento Ágil e as Organizações Evolutivas. As abordagens baseadas na autogestão também preconizam esse caminho, pois rompem definitivamente com a cadeia de comando.

Com o objetivo de aumentarmos o leque de opções de tecnologias sociais para a auto-organização (e também tratar das “desvantagens” das outras abordagens), nós (Target Teal + Parceiros) desenvolvemos um caminho para autogestão chamado de Organização Orgânica (O2).

Organização Orgânica (O2)

A O2 é atualmente composto por um conjunto essencial de regras, chamados de Meta-Acordos, além uma biblioteca de padrões e antipadrões em constante evolução. Ele pode ser utilizado em um time, área, departamento ou em uma organização inteira. A única regra é que esse grupo de aplicação precisa ter um nível de autonomia considerável em relação ao restante. Obviamente, a O2 vai trabalhar em potência máxima somente quando aplicado na organização inteira.

Estrutura de círculos aninhados

Assim como a Holacracia e a Sociocracia 3.0, a O2 divide a organização em círculos semiautônomos. Esses círculos contém papéis que executam atividades da organização em função de um propósito comum.

Em geral, antigas áreas, departamentos e times formam círculos. Estruturas multidisciplinares, como squads, times de projeto, além do próprio modelo Spotify podem ser replicados dentro da estrutura da O2.

Os diferentes círculos são conectados por meio de rituais regulares, chamados de reuniões de círculos. Existem também dois papéis chamados de Guia e Representante que apoiam nessa conexão e comunicação entre diferentes círculos.

4 tipos de interação

Em nossa jornada ajudando organizações a desenvolverem auto-organização, aprendemos que é importante desenvolver boas interações para que o grupo mantenha-se saudável no longo prazo. Na O2, definimos 4 tipos de interações que têm como objetivo revisar o trabalho, sincronizar os esforços, adaptar a estrutura e cuidar das relações entre os integrantes do grupo. Elas são desenvolvidas em reuniões conduzidas por um facilitador escolhido pelo próprio círculo.

Revisar

É impressionante como muitos grupos, até mesmo com alto nível de interdependência, não se reúnem para revisar o próprio trabalho. Alguns fazem isso individualmente, ou através de revisões entre chefe e subordinado, nas famosas reuniões 1o1s, uma dita “boa prática” de startups que se inspiram no vale do silício. Mas esse tipo de revisão um a um só aumenta a dependência do chefe e reforça a submissão. E ainda ouvirmos gestores reclamando que os seus subordinados não fazem nada para melhorar os indicadores. A questão é que você não consegue se preocupar com algo que você não vê ou não entende. É preciso exercitar o ato de revisar.

Quando fazemos essa revisão do trabalho, ou seja, olhamos para o progresso dos projetos, indicadores, atividades recorrentes, algo poderoso acontece. Informações antes eram privadas tornam-se públicas. Isso permite que mais pessoas percebam tensões criativas (o nome que damos para oportunidades no trabalho).

Na O2, a forma como a revisão acontece é definida pelo facilitador ou através de uma regra (restrição) adotada pelo círculo. O formato mais comum é olhar para ações, projetos, métricas e checklists atribuídos aos papéis do círculo, como indica o cartão acima. Leia este texto para mais detalhes sobre essa interação.

Sincronizar

Muitos grupos não desenvolvem mecanismos efetivos para fazer pedidos. E as coisas pioram quando o líder/chefe/gestor centraliza o monopólio da distribuição de tarefas, ou seja, quando uma pessoa só executa tarefas passadas diretamente pelo seu superior. Novamente algo típico das famosas 1o1s.

Não é necessariamente uma questão de má intenção da parte de quem só faz o que o chefe pede. Muitas vezes as expectativas, responsabilidades e autoridades não estão claras. É por isso que na O2 todas as responsabilidades precisam ser contratadas através de papéis explícitos. E quando falo explícito quero dizer descrito. Veja a estrutura da Target Teal como exemplo.

Uma vez que você sabe o que você pode esperar dos seus pares, fica mais fácil fazer pedidos. Assim como em qualquer organização, essas solicitações de novos projetos, ações ou informações podem ser feitas a qualquer momento por qualquer pessoa. Mas através da interação sincronizar, permitimos que isso ocorra com uma frequência mínima em cada círculo.

A O2 busca descentralizar a distribuição de projetos e ações, para dar mais agilidade para o seu grupo ou organização.

A interação sincronizar começa com a construção de uma lista de tensões percebidas pelos participantes, que são necessidades individuais dos integrantes relacionadas aos seus papeis. Essas tensões são então tratadas uma a uma e transformadas em projetos e ações que são atribuídas aos papéis do círculo.

Leia este texto sobre a interação sincronizar para mais detalhes.

Adaptar

Sempre desenhamos as nossas organizações e times com muito carinho. No entanto, um projetista, por mais inteligente e dedicado que seja, nunca será capaz de prever tudo o que pode acontecer, dada a natureza complexa da realidade social. O segredo está em criar um design evolucionário, ou seja, um sistema com capacidade de adaptação própria.

A estrutura organizacional por trás da O2 faz uso desse conceito. Por isso cada expectativa, papel e restrição em vigor dentro do grupo ou organização praticante de O2 precisa ser explícita. Conforme novas tensões e oportunidades de melhoria surgem, o grupo adapta a sua estrutura para lidar com o novo contexto em que está imerso.

Todas essas mudanças acontecem exclusivamente na interação adaptar de cada círculo. Nesse momento os grupos podem alterar seus papéis, criar círculos internos ou definir restrições que afetem os seus membros.

A autoridade explícita, ou seja, a clareza do que cada membro do grupo “pode” e “não pode” fazer permite uma tomada de decisão rápida e menos hesitação no dia a dia.

O processo para fazer essas alterações garante que elas sejam feitas apenas em função do propósito do grupo. Por exemplo, uma pessoa não pode alterar um papel apenas para benefício próprio, sem que isso contribua de alguma forma para o propósito do círculo.

Leia este texto para mais detalhes sobre a interação adaptar.

Cuidar

A ruptura entre o trabalho e a vida pessoal começou nas organizações conformistas (leia aqui para entender melhor). O ambiente corporativo tradicional não acolhe as pessoas inteiramente. As emoções, as incertezas e os medos você deixa em casa. No trabalho você precisa ser um “bom profissional“.

Acontece que no século 21 o trabalho é predominantemente criativo (se o seu não for, talvez você seja substituído por uma robô em breve). E esse tipo de atividade, por ter maior interdependência entre pessoas e papéis, exige comunicação mais eficaz entre os agentes. Para navegar nessa complexidade, você precisa desenvolver melhores relacionamentos e inteligência emocional.

Entendemos que trabalhar o espaço organizacional (estrutura, papéis, restrições, processos) não é o suficiente para um grupo. A interação cuidar tem o objetivo de desenvolver a comunicação, reconhecer necessidades individuais e nutrir abertura entre os membros, mas sem que isso “polua” o espaço da organização.

Leia este texto para mais informações sobre a interação cuidar.

Conclusão

A Organização Orgânica (O2) apresenta-se como uma abordagem inovadora para enfrentar os desafios contemporâneos do mundo organizacional. Ao propor uma estrutura baseada em círculos semiautônomos e quatro tipos de interações fundamentais (revisar, sincronizar, adaptar e cuidar), a O2 busca promover a auto-organização, a adaptabilidade e o desenvolvimento de relações mais saudáveis no ambiente de trabalho. Este sistema de governança representa uma ruptura com os modelos tradicionais de gestão hierárquica, oferecendo uma alternativa que visa aumentar a efetividade e a ética nas organizações.

Ao adotar a O2, as organizações podem criar um contexto propício para a evolução contínua, respondendo de forma mais ágil às mudanças do mercado e às necessidades internas. A transparência na revisão do trabalho, a descentralização na distribuição de tarefas, a capacidade de adaptar a estrutura organizacional e o cuidado com as relações interpessoais são elementos que potencializam a criatividade e o engajamento dos colaboradores. Acreditamos – e temos visto na prática – que a O2 é tecnologia social promissora para organizações que buscam prosperar em um mundo cada vez mais complexo e dinâmico.

Conteúdos sobre Autogestão & O2

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Sobre o(a) autor(a): Davi Gabriel Zimmer da Silva

Davi é designer organizacional e facilitador na Target Teal, especializado em melhorar interações entre times e indivíduos no ambiente corporativo. É pioneiro na prática de Holacracia no Brasil e co-autor da Organização Orgânica, uma abordagem brasileira para autogestão. Davi é formado em Sistemas de Informação pela UNISINOS e pós-graduado em Psicologia Positiva pela PUCRS. É amante dos temas desenvolvimento humano e de organizações, produtividade, futuro do trabalho e cultura organizacional.

5 Comments

  1. […] Se você quiser entender o funcionamento do Organic Organization em maior detalhe, leia esse texto. […]

  2. […] nossos workshops GD² ou na proposição do Catalisador O² não apresentamos uma solução milagrosa na forma de um modelo de gestão revolucionário que […]

  3. […] de posts onde vamos explicar em maiores detalhes diversos elementos da Organização Orgânica, um método de autogestão que usamos na Target Teal. Começaremos falando sobre papéis e círculos, que são os elementos básicos para construção […]

  4. […] Apesar de formar uma hierarquia, este tipo de estrutura não possui cadeia de comando ou linhas de reporte. As decisões também não são tomadas todas em grupo ou de forma coletiva como muitos pensam. Essas abordagens, em linhas gerais, buscam dar autonomia ao indivíduo nos seus papéis, mas criar formas de limitar essa autonomia através de decisões por consentimento. Para entender melhor, leia este texto de introdução à Organização Orgânica. […]

  5. […] temos um bando de pessoas inconscientes sobre os seus hábitos e como estes podem se transformar em antipadrões e prejudicar a eficácia da organização como um todo. O que um dia foi uma boa prática, hoje é […]

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