Imagine uma banda de jazz no palco. Os músicos estão totalmente presentes, ouvindo atentamente uns aos outros e ao mesmo tempo expressando sua criatividade individual. Eles alternam entre momentos de destaque e de suporte, entre estrutura e improvisação, tudo isso em uma dança sincronizada para criar uma experiência envolvente para o público. Essa imagem é uma ótima analogia para a arte da facilitação, especialmente quando realizada em dupla. Neste breve texto vamos explorar as semelhanças entre facilitação em dupla (ou grupo) e jazz, trazendo algumas pequenas histórias para ilustrar esses desafios.

O mito do jazz (e da facilitação) como pura improvisação

Quando pensamos em jazz, muitas vezes a primeira imagem que vem à mente é a de músicos tocando livremente, criando melodias e harmonias no momento, em uma jam session espontânea. E quando observamos facilitadores experientes conduzindo um grupo com aparente facilidade e fluidez, pode parecer que eles estão simplesmente “improvisando” ali na hora. No entanto, tanto no jazz quanto na facilitação, essa aparente espontaneidade é na verdade resultado de muito treino, estudo e prática dos “fundamentos”.

Os grandes músicos de jazz passam incontáveis horas praticando escalas, frases, progressões harmônicas e standards do repertório tradicional. Eles internalizam essa base técnica de tal forma que, quando estão no palco, podem acessá-la de forma natural e criativa, adaptando e recombinando esses elementos para criar novos improvisos e interagir com os outros músicos em tempo real. O domínio da técnica não limita a criatividade, pelo contrário: ele a liberta, fornecendo um vocabulário rico e flexível para a expressão musical.

Da mesma forma, facilitadores habilidosos geralmente chegaram a esse ponto após muita prática: ler o que está acontecendo no grupo, fazer perguntas abertas e genuínas, parafrasear, propor pequenas estruturas de interação, etc. Esse repertório de ferramentas permite que eles tenham fluidez e segurança para adaptar e improvisar sua atuação de acordo com as necessidades do grupo e do momento.

A história da Marcela ilustra bem os riscos de tentar “improvisar” na facilitação sem ter um bom repertório. Em uma reunião que ela estava facilitando, Marcela tentou conduzir de forma muito solta, sem estruturar bem as atividades. Ela começou dizendo:

“Bom, pessoal, hoje vamos falar sobre o projeto X. Alguém quer começar compartilhando alguma coisa?”

Após alguns momentos de silêncio constrangedor, uma pessoa começou a falar, mas logo foi interrompida por outra, que começou a falar sobre um assunto totalmente diferente. Marcela tentou intervir:

“Ótimo ponto, Fulano! Alguém mais quer comentar sobre isso?”

Mas a discussão continuou desorganizada e dispersa, com várias pessoas falando ao mesmo tempo e ninguém se ouvindo. Marcela caiu na armadilha do amorfismo, ou seja, da falta de estrutura da conversa.

O próximo passo para quem quer se tornar um “facilitador de jazz” é justamente investir tempo e energia para estudar, praticar e internalizar esse repertório básico. Só assim será possível atuar com a flexibilidade e criatividade que a facilitação, assim como o jazz, pede. E, claro, assim como os grandes improvisadores do jazz, os facilitadores também seguem aprendendo, descobrindo e incorporando novos “riffs” ao longo de toda a sua trajetória.

A importância dos acordos e debriefings na cofacilitação

Antes de começar uma facilitação em dupla, é fundamental que os facilitadores reservem um tempo para conversar sobre como vão trabalhar juntos. Alguns perguntas que podem ser respondidas:

  • Qual é o plano de vôo? Quais são as etapas esperadas, formato e estruturas?
  • Que papeis cada facilitador vai assumir em cada momento?
  • Quem vai estar no “palco” facilitando e quem vai estar no suporte em cada momento?
  • Como a pessoa que está no suporte vai apoiar a que está facilitando?
  • Como vamos pedir ajuda um para o outro ou nos comunicarmos durante a facilitação?

Vale ressaltar que esses combinados são muito específicos e dependentes das necessidades de cada dupla de facilitadores. Os que listei acima são importantes para mim, mas encorajo você a descobrir os seus.

Compartilho uma história minha sobre isso. Enquanto eu era mais calmo e preferia dar mais espaço para o grupo, meu parceiro era mais enérgico e me interrompia com frequência para fazer intervenções. Para lidar com isso, combinei que ele me mandaria feedbacks e sugestões por chat enquanto eu conduzia, para não interromper o fluxo da conversa. Assim, eu poderia ler e incorporar as sugestões dele sem quebrar o ritmo. Esse combinado simples permitiu que nossos diferentes estilos se complementassem ao invés de se atrapalharem.

Ainda que os combinados prévios sejam importantes, mais do que tentar prever tudo que pode dar errado, o mais importante para mim é o hábito de fazer debriefings ou reflexões sobre a facilitação depois que ela acontece. É geralmente a partir desses momentos de sentar junto e se perguntar “como foi a facilitação para você?”, fazer autoavaliações e trocar feedbacks, que os aprendizados mais ricos surgem e os acordos vão se afinando.

Esse processo de reflexão contínua é essencial para o desenvolvimento da parceria entre os facilitadores. Assim como no jazz, onde os músicos estão sempre ouvindo e respondendo uns aos outros, na facilitação em dupla é essa escuta mútua e essa disposição para aprender e se adaptar que permite que a “música” flua cada vez melhor.

Conclusão

A facilitação em dupla, assim como o jazz, é uma arte que requer uma combinação de técnica, sintonia e improvisação. O domínio das habilidades fundamentais da facilitação, aliado a uma prática constante de acordos e reflexões com o parceiro, pode nos ajudar a atuar com mais flexibilidade, presença e eficácia. Vimos que a improvisação no jazz e na facilitação não é algo totalmente espontâneo, mas sim resultado de muito estudo e internalização dessa prática.

Obrigado por ler até o final!

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Sobre o(a) autor(a): Davi Gabriel Zimmer da Silva

Davi é designer organizacional e facilitador na Target Teal, especializado em melhorar interações entre times e indivíduos no ambiente corporativo. É pioneiro na prática de Holacracia no Brasil e co-autor da Organização Orgânica, uma abordagem brasileira para autogestão. Davi é formado em Sistemas de Informação pela UNISINOS e pós-graduado em Psicologia Positiva pela PUCRS. É amante dos temas desenvolvimento humano e de organizações, produtividade, futuro do trabalho e cultura organizacional.

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