A autogestão com a Organização Orgânica começa a ficar divertida quando começamos a pensar em mecanismos mais sofisticados e criativos para distribuir autoridade. Geralmente isso toma a forma de restrições de círculo, um elemento da estrutura organizacional que até hoje não exploramos muito nos nossos textos.

Este é uma leitura avançada, destinada a quem já pratica O2. Caso você não conheça ainda o funcionamento geral do método, recomendamos ler mais sobre ou então participação nos nossos cursos intensivo e/ou online.

Definição

Buscando o conceito de restrições, encontramos a seguinte frase nos Meta-Acordos da O2:

2.5 Restrições

“Restrições” são limitações de autoridade que aplicam-se a todos os Papéis de um Círculo. Restrições são compostas por um nome e uma descrição.

Assim como um papel ou um círculo interno, uma restrição é criada dentro do círculo através do Adaptar. Porém, a sua função é bem diferente. Ao invés de definir expectativas de atuação, como fazemos com as responsabilidades, as restrições limitam os participantes de um círculo nas suas ações.

Contexto

Para aprofundarmos, trago o contexto de uma estrutura de círculos fictícia para usarmos como exemplo. Imagine a seguinte organização:

Estrutura Mangia Operações

Nela encontramos alguns círculos, como o de Operações, que aparece detalhado com os seus papéis. Também temos Desenvolvimento e Marketing, outros dois círculos “irmãos”. Qualquer um destes círculos pode ter diversas restrições definidas.

Agora imagine que dentro do círculo Operações, você, no papel de Estoquista e como responsável por organizar o estoque, começa a se incomodar com o fato do Dr. Bactéria constantemente bagunçar o ordenamento dos produtos na prateleira. O Dr. Bactéria, ao conferir a data de vencimento dos produtos, muitas vezes muda o layout e a organização dos enlatados. Para piorar a situação, o Cesteiro também faz isso quando monta as cestas de pedidos.

Um caminho para lidar com essa sua tensão como Estoquista é definir o artefato Layout do Estoque no seu papel, criando uma exclusividade. Mas isso talvez gere outras tensões para Dr. Bactéria e Cesteiro, já que eles também precisam manipular o estoque em algumas ocasiões. Nem sempre você está disponível no escritório da empresa, o que dificultaria eles te pedirem permissão o tempo todo.

Nessa situação, uma restrição poderia salvar você. Através de um processo, você poderia limitar o acesso ao estoque, mas sem criar um artefato. Então você decide ir na reunião de círculo e propor a seguinte mudança.

Adicionar Restrição: Organização do Estoque

Depois de mexer nos produtos do estoque, você deve re-organizá-los de volta conforme o layout definido pelo @Estoquista. Caso você se depare com um estoque fora do layout, você deve avisar o @Estoquista antes de realizar qualquer mudança.

Com essa restrição no círculo definida, tanto Dr. Bactéria quanto Cesteiro ainda têm autoridade para acessar e manipular o estoque, desde que sigam as condições estabelecidas na restrição. Mágico, não? É um acordo mais sofisticado que permite manter uma organização, mas sem centralizar um artefato em um papel.

As restrições podem ser úteis em diversas situações por causa da sua flexibilidade. Mas essa mesma qualidade também traz alguns perigos, por isso elas tendem a ser bem mal utilizadas. Abaixo veremos alguns contraexemplos de restrições.

Contraexemplos

As restrições são para restringir os papéis de um círculo, e não para controlar comportamentos de pessoas. Por isso, nunca defina uma restrição como essa:

Atrasos: Ninguém poderá se atrasar para a reunião de círculo.

As restrições são acordadas por um círculo através do adaptar, por isso geralmente não é efetivo tentar empurrar uma regra que busque punir pessoas ou tentar controlá-las. Se existe um problema de confiança, melhor usar o modo cuidar para isso. As restrições só são efetivas se os membros do círculo enxergarem sentido nelas e buscarem respeitá-las. Além disso, dizer que ninguém deve se atrasar geralmente não faz as pessoas chegarem no horário. :p

Outra falha comum no entendimento das restrições é buscar utilizá-las para definir uma expectativa. Considere a seguinte restrição:

Escala: Todos devem seguir a escala definida pelo @Escalador.

Perceba que a restrição não possui uma condição, mas busca definir que alguém faça algo de forma recorrente. Neste caso uma responsabilidade pode ser muito mais efetiva. Você pode criar um papel com a responsabilidade de “Seguir a escala definida pelo @Escalador” e convidar todas as pessoas de um círculo a energizarem este papel.

Outro exemplo real

Na Target Teal, a distribuição dos clientes entre os consultores acontece de acordo com uma restrição definida em nossa estrutura. Colocar isso como o artefato de um papel não nos atenderia, porque se isso fosse julgado por uma só pessoa, certamente estaria recheado de vieses. Como todos somos consultores (e portanto interessados em ser “donos” dos clientes), optamos por um processo distribuído. Essa restrição já passou por inúmeras mudanças e foi crescendo conforme novas tensões foram aparecendo. Na data da escrita deste texto, ela está assim:

Restrição: Atribuição de Clientes

Qualquer possível cliente proveniente de:

– email públicos do Target Teal;
– outro canal on-line em que o cliente esteja procurando o Target Teal como uma organização (sem procurar um consultor específico), ou;
– entrando em contato com vários parceiros ao mesmo tempo

será considerado “cliente sem dono”. Assim que um parceiro identificar um cliente sem dono, ele deve entrar em contato com todos os parceiros por meio de um canal especial chamado: tt-unowned-clients , fornecer todas as informações que ele tem sobre o cliente e perguntar se alguém está interessado em se tornar o @Dono do Cliente. Depois que todos responderem ou um prazo de 24 horas for atingido, uma das três situações será possível:

1. Apenas um parceiro está interessado, então ele se torna o Client Owner desse cliente.
2. Nenhum parceiro está interessado ou disponível, a pessoa que postou primeiro no canal falando sobre o cliente deve retornar ao cliente e dizer a ele que, neste momento, ninguém está disponível para realizar novos projetos. É aconselhável que ele encaminhe o cliente a alguém ou alguma empresa na rede estendida.
3. Mais de um parceiro está interessado e eles não chegaram a um acordo sobre propriedade ou propriedade compartilhada do cliente. O Client Owner é escolhido por um sorteio.

Se um parceiro for contatado pessoalmente por uma possível cliente e ele não tiver certeza se ela está procurando a Target Teal (portanto, cliente sem dono) ou apenas seus serviços (cliente com dono), ele deve fazer uma versão da seguinte pergunta:

“Você faz questão de ser atendida por mim especificamente ou algum outro parceiro do Target Teal pode atendê-la?”

Se a resposta for algo como: “Sim, minha preferência é ser atendida por você”, a cliente será considerada pertencente ao parceiro. Caso contrário, a cliente é sem dono e passará pelo processo descrito acima nesta restrição.

Se, por qualquer motivo, um Dono do Cliente não quiser ou não puder continuar sendo um proprietário específico, ele poderá passar o cliente para qualquer parceiro, usando seu próprio critério e até negociando retornos financeiros.

Dois princípios importantes devem ser observados pelos parceiros que discutem a propriedade do cliente: “Servir os clientes da melhor maneira possível e compartilhar oportunidades de trabalho com todos os parceiros”.

Fonte: estrutura organizacional da Target Teal

Restrições e Artefatos

As restrições caminham juntas com os artefatos. Isto acontece porque um círculo não pode restringir algo que não controla. Imagine, se naquela estrutura que apresentamos antes, o círculo Desenvolvimento tentasse criar uma restrição em cima do estoque. Isto não seria permitido pelos Meta-Acordos, porque o círculo Desenvolvimento não tem autoridade para isso. Essa restrição estaria violando o artefato “Layout do Estoque”, que está definido no círculo de Operações. Para que essa alteração fosse permitida, o Desenvolvimento teria que primeiro ganhar controle do estoque através do artefato correspondente na sua definição.

Vamos imaginar outro cenário em que o Layout do Estoque não está definido em qualquer círculo como artefato. Neste caso, é como se o artefato fosse do círculo geral e toda a organização pudesse acessá-lo. Com esta configuração, mesmo que Operações definisse uma restrição internamente no seu modo adaptar, esta regra valeria apenas para os papéis dentro de Operações. Uma restrição só vale para o círculo em que ela é definida e nos seus círculos internos. Para tornar ela válida para toda a organização, ela poderia ser definida no círculo geral (o mais amplo na estrutura).

Isso dá um grande poder para os círculos mais amplos definirem processos, contornos ou como alguns recursos da organização podem ser utilizados. Ainda assim, na O2 garantimos a representação maior dos círculos internos através do conceito de ligação dupla (elo externo e elo interno eleito), evitando assim abusos de autoridade.

Resumindo, restrições podem ser muito poderosas para distribuir autoridade em Organizações Orgânicas. Apenas atente para não criá-las com a intenção de resolver problemas de falta de confiança. Na O2 sempre partimos do pressuposto de que as pessoas são confiáveis e bem intencionadas. Já usou restrições antes? Comente.

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Sobre o(a) autor(a): Davi Gabriel Zimmer da Silva

Davi é designer organizacional e facilitador na Target Teal, especializado em melhorar interações entre times e indivíduos no ambiente corporativo. É pioneiro na prática de Holacracia no Brasil e co-autor da Organização Orgânica, uma abordagem brasileira para autogestão. Davi é formado em Sistemas de Informação pela UNISINOS e pós-graduado em Psicologia Positiva pela PUCRS. É amante dos temas desenvolvimento humano e de organizações, produtividade, futuro do trabalho e cultura organizacional.

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