Um dos trabalhos que desenvolvo no meu dia a dia é o de designer organizacional, facilitador de processos colaborativos e professor na área de inovação social.

Nestas áreas nós utilizamos uma série de conceitos, acrônimos e palavrinhas para embasar o nosso trabalho e dar uma aparência de cientificismo. Claro, isto não está restrito apenas à minha área específica mas qualquer pessoa que trabalha com consultoria  organizacional sabe que os jargões existem de montão.

Isto acontece por muitos motivos e embora não seja o objetivo deste artigo posso falar um pouco sobre essa necessidade que temos de utilizar termos que ninguém conhece e buzzwords que supostamente vão dar mais credibilidade ao que estamos dizendo.

Primeiramente, em uma sociedade que lê cada vez menos nós temos uma grande quantidade de pessoas que perpetuam o efeito papagaio e repetem as coisas sem se importar em conhecer a origem dos termos, o contexto em que surgiram e até mesmo o que essas coisas significam de fato.

Em segundo lugar temos a necessidade de afirmação intelectual a partir de termos complicados e modinhas que simplesmente seguimos sem questionar. Muitos autores e autoras fizeram uso de estrangeirismos, termos sofisticados e estranhos para dar mais credibilidade às suas teses e modelos.

Em terceiro lugar nós temos a classe dos marketeiros, best sellers e influencers que geram uma infinidade de termos a cada dia pra ver se algum deles de fato colam.

Veja bem, não quero dizer aqui que devemos abandonar essas nomenclaturas. Eu mesmo utilizo muito esses conceitos como recurso heurístico para comunicar algo aos meus clientes, alunos e parceiros de trabalho.

Quero dizer apenas que na era da informação quem se dá o trabalho de perceber como o conhecimento foi construído para chegar até aqui é um bixo raro nos dias de hoje. E isso é fundamental para evitar absolutismos, modinhas e a superficialidade que encontramos num mundo de coaches quânticos e afins.

Nós podemos e devemos utilizar esses termos desde que tenhamos o cuidado de não propagar asneiras e meias verdades. Ou então use sem cuidado mesmo, afinal quem sou eu pra dizer o que se pode ou não pode fazer?

Bom, tendo dito isso vou me permitir começar de fato a explorar o objeto de estudo deste artigo. Se você quiser saber mais sobre as minhas críticas à veneração dos modelos leia este artigo aqui.

Especialmente no mundo do desenvolvimento organizacional há um acrônimo que é muito conhecido e automaticamente parece dar um status de “systems thinker” a qualquer um que utilize o termo(oh lá eu já usando jargãozinho de novo).

O acrônimo a que me refiro é o que chamamos de V.U.C.A.

Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

Em inglês, VUCA quer dizer Volatile, Uncertain, Complex and Ambiguous.

Em Português seria Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo.

O conceito de “VUCA” apareceu no trabalho do US Army War College no final dos anos 1980, se espalhou rapidamente por meio da liderança militar na década de 1990 e, no início dos anos 2000, começou a aparecer em livros sobre estratégia de negócios. É uma frase inteligente, ilustrando o tipo de mundo que emergiu de um cenário pós-Guerra Fria cada vez mais interligado. No novo século, volatilidade, incerteza, complexidade e ambigüidade se tornaram conceitos comuns entre as pessoas que trabalham com estratégia e planejamento.

É nesse contexto que abordagens como o Manifesto Ágil e as mil maravilhas do SCRUM surgem para dar uma resposta à altura para a nova indústria de desenvolvimento de software que começava a ganhar força. É também neste contexto(de uma sociedade cada vez mais complexa), que a sociocracia e as variações sociocráticas como a Holacracia e S3 surgem.

É importante perceber que paralelamente nós tínhamos uma revolução acontecendo na ciência com o paradigma do pensamento sistêmico, da emergência e da complexidade a borbulhar em todas as áreas da pesquisa científica. Este é apenas um acrônimo que traz alguns conceitos chave que já estavam presentes no espírito da época.

Como estamos falando de acrônimos, deixa eu dar mais um para a sua coleção meu caro leitor ou leitora.

Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

A idéia de um mundo VUCA vem como uma oposição à imagem da perfeição que foi projetada pelo homem na natureza e na sociedade. O acrônimo que representa esta visão perfeitinha é o que chamamos de L.A.M.O.

L.A.M.O quer dizer Linear, Antropocêntrico, Mecanicista e Ordenado. E de fato estas quatro palavrinhas representam os pilares da visão estática que foi construída do mundo a partir de visões newtonianas e cartesianas acerca da realidade. O mundo foi pintado como uma máquina cheia de engrenagens e isso, segundo Fritjof Capra, gerou uma crise de percepção em que o homem se separou da natureza.

A idéia de V.U.C.A seria portanto uma contraposição a um mundo L.A.M.O. no sentido de que o mundo é VUCA mas a forma como nós agimos enquanto humanidade é L.A.M.O.

Já deu pra ver como é um saco a gente ficar se prendendo a esses acrônimos como se eles de fato descrevessem a nossa realidade né?

Bom, não é de hoje que os seres humanos dão demasiada importância aos seus conceitos e recentemente alguns “especialistas” cunharam um novo termo afirmando que a idéia de V.U.C.A não descreve mais a nossa realidade presente. É como se o mundo tivesse deixado de ser volátil, incerto, complexo e ambíguo e agora passou a ser outra coisa. Ou ainda, essa ideia de VUCA já não nos diz nada útil. Precisamos de uma nova forma de descrever a nossa realidade.

E é a partir dessa insatisfação que surge a ideia de um novo acrônimo que segundo algumas pesosas descreveria de forma mais apropriada a realidade que experimentamos agora.

O novo conjunto de palavras é chamado de B.A.N.I que vem do inglês Brittle, Anxious, Non-linear e Incomprehensible.

No português poderíamos traduzir como Frágil, Ansioso, Não Lienar e Incompreensível.

Frágil porque as coisas hoje em dia parecem ser sólidas e duráveis mas na verdade possuem estruturas que são abaladas facilmente. Se conecta diretamente com a modinha do anti-frágil.

Ansioso porque nós vivemos em uma era que exige ação imediata acerca de tudo e faz com que as pessoas se tornem seres movidos pela ansiedade.

Não Linear porque o mundo é VUCA. Desculpa, tinha que fazer piada com isso porque os conceitos são altamente redundantes. Mas sim, a ideia de não linearidade está basicamente ligada à questão da complexidade, infinitas varíaveis em um sistema interdependente que torna impossível traçar uma linearidade.

Incompreensível pelos mesmos motivos anteriores. Vivemos na era da Big Data onde nunca se teve tanto acesso à informação e ao mesmo tempo houve tanta desinformação. Como o paradigma VUCA já afirmava, é impossível afirmar qualquer coisa sobre o dia de amanhã em função da complexidade, ambiguidade, volatilidade e incerteza da realidade que experimentamos.

Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

Como você provavelmente já percebeu ambos os acrônimos estão falando de coisas parecidas mas estão ressaltando nuances diferentes. Os dois paradigmas concordam que vivemos em uma era complexa e não linear, que as coisas não são o que parece ser e que temos que aprender a navegar o caos porque esta é a natureza da realidade em que estamos inseridos.

É interessante o foco na questão da ansiedade, que de fato é uma característica marcante do séc. XXI onde não só temos um número crescente de pessoas que sofrem de ansiedade mas também números alarmantes de pessoas que tiram suas próprias vidas(apróx 800 mil por ano).

Mas o que eu trago para você meu caro leitor, minha cara leitora… É que esse papo é mais do mesmo. Nós podemos muito bem atualizar amanhã o acrônimo para BANANA e ainda assim estamos apenas nos referindo a conceitos linguísticos que buscam descrever a realidade mas nunca vão capturar todas as nuances da realidade como ela é de fato.

O gatilho que me fez escrever este artigo foi um outro artigo que falava que “acabou o mundo VUCA, agora o mundo é BANI. ” Esta afirmação é simplesmente ridícula. O mundo não deixou de ser complexo, ambíguo, incerto e volátil. Olhe ao seu redor, essas questões ainda estão todas muito presentes. E o mundo tampouco começou a ser frágil, ansioso, não linear e incompreensível ontem ou há 20, 30 ou 40 anos. Essas questões coexistem no nosso dia a dia e esses acrônimos estão aí para serem utilizados como recursos heurísticos para definir contextos complexos e as diferentes abordagens que podemos utilizar para navegar a complexidade do caos. Pra ser ainda mais chato e específico, isto é um recurso didático e mneumônico para sumarizar idéias.

As pessoas às vezes esquecem que palavras e modelos são apenas palavras e modelos. Reduzir a complexidade da realidade em que vivemos é um insulto às ciências sociais que se esforçam para mapear as diferentes nuances da nossa sociedade com profundidade e aí vem alguém e acha que vai resumir isso a quatro palavrinhas. Isso é preguiça e desonestidade intelectual. Você não vai encontrar nenhum desses 2 acrônimos em qualquer análise social que possui o mínimo de seriedade.

O contexto em que utilizamos esses conceitos é geralmente para demonstrar que abordagens de planejamento estratégico super aprofundadas, com cronogramas, orçamentos detalhados e planejamento em cascata já não estão mais aptos à realidade atual. Como já disse, é um recurso heurístico para enfatizar a necessidade de um planejamento adaptável e sistêmico em oposição a um planejamento detalhado, rígido e estático. Para expressar a natureza caótica da vida em oposição à visão mecanicista newtoniana.

Sendo assim, vou propor o meu próprio acrônimo para descrever a realidade: F.O.D.A.C.E

F de Fálico: Vivemos em um mundo patriarcal onde homens maioritariamente brancos usam estruturas de poder para compensar a sua masculinidade frágil.

O de Obscuro: Não fazemos ideia do que vem a seguir. É muita informação, muito incerta e muito complexa pra poder afirmar alguma coisa.

D de Desigual: Nosso sistema econômico é feito para suportar a burguesia e alimentar a desigualdade social.

A de Ambíguo: vivemos em um mundo em que não sabemos de nada. Não dá pra afirmar nada a não ser a nossa própria ignorância.

C de Consumista: vivemos em um mundo altamente consumista.

E de Estratificação: vivemos em um mundo dividido por classes.

Não tenho a menor pretensão de desmerecer ninguém pelo uso desses termos. Como já disse antes, eu também faço uso dessas ideias como recurso didático o tempo todo.

O meu apelo é que paremos de alimentar a síndrome do papagaio que repete as ideias sem refletir com o mínimo de profundidade. Esses conceitos são apenas conceitos. Não é possível afirmar que um mundo VUCA acabou e começou um mundo BANI. Essas são nuances que coexistem o tempo todo.

Seria totalmente LAMO afirmar uma coisa dessas(que o mundo não é mais VUCA e agora é BANI). :)

É por isso que afirmo meus amigues… O mundo não é nem VUCA, nem BANI, nem LAMO. Esses elementos são nuances de diferentes aspectos da nossa realidade sócio cultural. E isso sim é abraçar a complexidade do caos: viver em constante contradição e estar bem com isso.

P.S: Artigo escrito originalmente no meu linkedin pessoal e republicado aqui no blog da Target Teal.