Quando iniciei a Target Teal, sonhava com um modelo associativo completamente diferente do tradicional. Não queria instituir uma empresa, pois os fins não eram lucrativos. Não queria uma cooperativa ou associação porque temia que o poder do voto e os mecanismos legais poderiam levar à formação de oligarquias internas. Imaginava uma organização com autoridade distribuída e propriedade coletiva, em que os sócios não teriam o poder de acabar com a autogestão ou vender sua parte para outros. Acredito que fomos bem sucedidos nessa missão e nesse texto compartilharei os detalhes dessa estrutura associativa.

Muitas dessas ideias não foram propostas por mim no início da Target Teal, mas elaboradas ao longo desses anos juntos com meus parceiros e parceiras. O nosso entendimento sobre o nosso próprio modelo também se transformou ao longo do tempo.

Problemas com os modelos associativos vigentes

Qualquer empresa está sujeita à lógica do capital, já que os sócios são seus proprietários, portanto podem vender sua parte para um terceiro. Um conjunto de sócios com 51% ou mais das ações da organização tem o “poder de mando” garantido por nossa constituição e podem exercer essa autoridade praticamente sem limites. Isso torna as empresas extremamente frágeis à autogestão, pois sempre dependem da boa vontade dos donos em distribuir autoridade e adotarem um modelo de governança como a O2.

As cooperativas, associações e ONGs podem escapar da lógica da venda, mas geralmente elegem um Diretor Executivo, que no final das contas possui poder absoluto nos mesmos moldes das empresas privadas.

Criar uma empresa seria obviamente o caminho mais fácil e eu poderia contar com minha benevolência enquanto dono. Mas e se um dia a organização valorizasse e eu recebesse uma proposta de compra tentadora? Conheço outras consultorias que foram compradas por grandes bancos e os fundadores encheram os seus bolsos. Sem qualquer demérito, mas eu não gostaria de passar por essa tentação. Uma associação ou cooperativa seria um caminho mais interessante, mas as restrições legais em termos de conselho administrativo, fiscal, diretorias, etc, também eram incompatíveis com o que imaginava para a Target Teal.

Propriedade coletiva, autoridade distribuída

Hoje entendemos a Target Teal como uma organização com autoridade distribuída e propriedade coletiva. Explico:

A autoridade é distribuída, pois adotamos um sistema de governança chamado Organização Orgânica (O2). Na O2 os membros da organização estabelecem acordos por meio da decisão integrativa – um processo decisório coletivo em que as propostas são adotadas quando não há objeção. Um dos tipos de acordo mais comum é chamado de papel, que basicamente estabelece um objetivo e um conjunto de responsabilidades. Quando uma pessoa está em um papel, ela tem a priori autoridade para agir, sem depender da anuência das demais pessoas. Essa forma de organização faz com que boa parte das decisões possam ser tomadas de forma rápida e sem necessidade de consulta ao grupo. Resumindo, decidimos coletivamente para dar autoridade ao indivíduo. Veja aqui nossa estrutura organizacional.

A propriedade é coletiva, pois ao mesmo tempo que todos os membros/sócios (chamamos de parceiros) são donos, a Target Teal não é propriedade privada de ninguém em particular. O direito de participar da TT é pessoal, intransferível e infungível – você não pode vender sua parte, transferir para outra pessoa e ela também não está sujeita à herança.

Para mim essas duas características são centrais para manter a organização saudável. A primeira torna a Target Teal extremamente eficiente, a segunda evita a concentração de poder e cristaliza a autogestão de uma forma que não é possível em outro tipo de organização.

Contrato-mãe

A Target Teal não possui um CNPJ e nem é reconhecida pelo estado brasileiro como uma entidade jurídica. O nosso modelo associativo não é reconhecido, mas ao mesmo tempo não é ilegal. Para formalizarmos a instituição da TT entre nós, criamos um contrato que chamamos de “Contrato-mãe” e que basicamente estabelece os nossos acordos basilares, que incluem:

  • Qual é o objetivo da parceria (o nosso propósito e serviços)
  • Quem faz parte da Target Teal – cada parceiro é signatário do contrato
  • Qual é o nosso modelo de gestão e governança (a Organização Orgânica – O2)
  • Como novos parceiros podem ser incluídos ou removidos da parceria
  • O Fundo Distribuído e Banco Target Teal (detalho mais abaixo no texto)
  • Como lidar com a propriedade compartilhada da Target Teal (somos uma consultoria e temos poucos ativos, o registro do nosso domínio é um deles)

A Target Teal é essencialmente uma parceria entre várias empresas, sendo que cada integrante possui seu próprio CNPJ.

Tipos de Parceria

Na Target Teal existem três tipos de parceria: titular, em transição e integrante:

  1. Os Parceiros Titulares são de fato os proprietários da organização, sendo os únicos signatários do contrato-mãe. Eles detêm autoridade exclusiva para convidar novos parceiros, promover parceiros em transição e rescindir parcerias.
  2. Os Parceiros em Transição são profissionais convidados pelos Titulares para integrar a TT. Eles passam por um período de experiência e avaliação antes de se tornarem Titulares. Os Parceiros em Transição podem prestar serviços para clientes, porém estão sujeitos às regras definidas pela governança.
  3. Já os Parceiros Integrantes são contratados por Titulares para desempenhar papéis específicos na estrutura organizacional. Não são signatários do contrato-mãe e têm direitos mais limitados. Não podem prestar serviços de consultoria diretamente para clientes, a não ser se convidados por Titulares. O vínculo dos Integrantes é direto com o Titular contratante.

A categoria Em Transição foi criada como uma estratégia de integrar novos consultores lentamente à Target Teal e permitir um período de experimentação prévio para ambas as partes. A categoria Integrante usamos para contratar o Diego, que trabalha principalmente com marketing, ilustrações e mídias sociais.

Todos os 3 tipos de parceiros podem participar da gestão e governança da Target Teal, assumindo papéis, propondo mudanças na nossa estrutura organizacional e políticas internas.

Entrada de novos Parceiros na Target Teal

A entrada de um novo consultor ou consultora na Target Teal segue o caminho Transição → Titular, como você deve ter percebido na seção anterior. Vou descrever de forma sucinta como esse processo acontece:

  1. Um Parceiro Titular da TT sente uma tensão que motiva o convite de alguém. Exemplos:
    1. Seria valioso se tivéssemos uma pessoa muito bem conectada e que nos ajudasse a vender mais consultorias;
    2. Essa pessoa aqui traria para nós um repertório mais voltado a pensamento sistêmico que ainda não temos;
    3. Precisamos de mais gente para atuar nos papéis internos e impulsionar nossos cursos, etc;
  2. Geralmente a tensão já vem acompanhada de uma pessoa candidata específica que o Parceiro Titular pretende propor;
  3. Caso a pessoa que está propondo a entrada de um novo membro já se sinta preparada para apresentar uma proposta, ela provavelmente vai comunicar sua intenção à pessoa candidata em questão, verificar seu interesse e explicar como funciona o nosso processo, caso ainda não tenha feito;
  4. Marcamos uma conversa com todos os Parceiros Titulares da Target Teal + o candidato. Essa conversa tem dois objetivos:
    1. Explorarmos juntos como seria a entrada do candidato na TT, entendendo suas motivações, expectativas e interesses. Os Parceiros Titulares fazem perguntas para a pessoa candidata, e vice-versa.
    2. Deliberamos sobre a entrada da pessoa. Nesse caso é esperado que os Parceiros Titulares declarem se enxergam algum dano (objeção) que a entrada da pessoa candidata possa causar à organização. Caso haja objeção ela será integrada, como acontece normalmente na O2.

Depois de aprovada a proposta, a pessoa candidata se torna Parceira em Transição da Target Teal até que alguém (inclusive ela mesma) proponha sua “promoção” para Parceira Titular.

A cada 3 meses fazemos uma nova reunião para avaliar a situação da parceria, e nesse momento qualquer pessoa pode propor a “promoção” ou até mesmo o encerramento da relação com a pessoa Parceira em Transição. Caso uma proposta seja apresentada, qualquer Parceiro Titular pode vetá-la (não é mais uma objeção).

De forma resumida, utilizamos a decisão integrativa (consentimento) para entrada de pessoas Parceiras em Transição e o consenso (todos devem concordar) para que o Parceiro vire Titular.

Outro detalhe importante é que somos bastante criteriosos na hora de fazer um convite para alguém se tornar Parceira em Transição. Apesar de não ser uma regra explícita, percebo que as pessoas sempre buscam ter algum tipo de experiência de trabalho com o candidato antes do convite ser feito. Isso faz bastante sentido já que não há restrição hoje para algum Parceiro Titular convidar pessoas externas à Target Teal para participar de projetos de consultoria, por exemplo.

Remuneração

Você deve estar curioso sobre como distribuímos contrapartidas na Target Teal. É muito simples.

No caso dos Parceiros Titulares e em Transição, a receita deles advém diretamente dos clientes que prestam serviço. Ou seja, não recebemos salário, mas uma parte dos projetos em que trabalhamos. Essa parte geralmente é acordada entre os consultores envolvidos em cada projeto de consultoria. Para os nossos cursos abertos, após cada edição distribuímos os lucros entre os Parceiros envolvidos diretamente na turma em questão.

Já os Parceiros Integrantes recebem uma remuneração fixa que é estabelecida em contrato com a Target Teal. Essa remuneração pode ser alterada a qualquer momento por qualquer parceiro da Target Teal, inclusive pelo próprio parceiro integrante, como já aconteceu. A “folha de pagamento” dos parceiros integrantes é despesa coletiva da Target Teal e paga com o Fundo Distribuído.

Provavelmente nós pagamos muito melhor os nossos consultores do que qualquer outra consultoria, afinal cerca de 70-90% do valor recebido é devolvido para eles. Ou melhor, nunca sai da conta dos próprios parceiros, como você vai ver na próxima seção.

Fundo Distribuído & Banco Target Teal

O Fundo Distribuído é um mecanismo financeiro fundamental para viabilizar a autogestão na Target Teal. Os Parceiros Titulares e em Transição contribuem com 15% de sua receita bruta (de consultorias e cursos) para um fundo “virtual”. Esse fundo não é uma conta bancária de alguém, mas uma planilha que registra as dívidas de cada parceiro. Veja o exemplo fictício abaixo:

Na linha “contribuições ao fundo” de cada parceiro (João, Janaína, Jair, Jairo e Jane) mostra a dívida de cada parceiro. Esse valor é calculado porque cada um registra as suas receitas de clientes Target Teal em outra aba. Se somarmos a dívida de cada parceiro temos o saldo do fundo da Target Teal, que no exemplo acima é de 44 mil. Relembrando: o dinheiro não sai da conta dos parceiros, fica “distribuído” um pouco na conta de cada um. Os recursos do fundo são utilizados para financiar despesas coletivas, como infraestrutura, marketing e remuneração de Parceiros Integrantes.

O banco Target Teal foi um sistema de crédito mútuo proposto pelo Rodrigo Bastos que adotamos há alguns anos. O banco permite realizarmos “transferências” entre os membros da Target Teal de forma virtual, sem transferirmos o dinheiro real da nossa conta bancária. Vou dar um exemplo:

Quando dois consultores trabalham num mesmo cliente, Jane e Jairo, eles se deparam com uma escolha: como vamos cobrar do cliente? Lembre-se que cada consultor possui sua própria empresa, CNPJ e conta no banco. Alguns caminhos possíveis para cobrar são:

  1. Jane e Jairo podem já dividir o valor antes do projeto e cada um deles emitir uma nota fiscal para o cliente com 50% do valor. Nesse caso o cliente pagará duas notas fiscais. Isso nem sempre é possível, dependendo de quão burocrática é a empresa cliente.
  2. Jane pode faturar o valor na sua empresa e depois pagar Jairo, ou vice-versa. Nesse caso Jane teria que emitir a NF com valor total para o cliente, pagar impostos. Depois Jairo teria que emitir outra NF para Jane para receber. Esse caminho é válido, mas tem dupla tributação.
  3. Jane pode receber o valor integral e não pagar Jairo. Aí num próximo cliente, Jairo pode fazer o mesmo, de modo a compensar a dívida que a Jane tem com ele.

Essencialmente o que o banco faz é viabilizar o terceiro caminho descrito de uma forma fácil e sistemática.

Saídas e expulsão de parceiros

Talvez o tema mais espinhoso de qualquer organização é como ela lida com a saída de seus integrantes. Numa organização com autoridade distribuída e propriedade coletiva isso é ainda mais importante. Dizemos às vezes que uma organização só é autogerida de fato quando descentraliza o poder sobre essa decisão.

No caso da Target Teal, para cada categoria de parceria há um caminho diferente para isso:

  1. Para Parceiros Integrantes, o Parceiro Titular que estabeleceu o contrato pode decidir encerrar a relação unilateralmente;
  2. Para Parceiros em Transição, basta qualquer Parceiro Titular propor o encerramento da relação. Algum outro Parceiro Titular pode vetar a proposta, e nesse caso o Parceiro em Transição continua.
  3. Para Parceiros Titulares, o processo é mais complexo. Para ser expulso a pessoa deve ter descumprido nossos acordos comportamentais ou cláusulas do contrato de forma recorrente e consistente. Nesse caso qualquer Parceiro Titular pode fazer uma proposta de exclusão do Parceiro em questão e esta proposta é aprovada se a maioria absoluta (⅔ + 1) dos Parceiros Titulares concordarem.

Lendo os critérios acima, você deve ter notado que eles estão ordenados por “dificuldade”. É muito difícil remover um Parceiro Titular da Target Teal, e isso é proposital. Acreditamos que muitos conflitos que culminam na saída de alguém podem ser resolvidos usando outras estratégias, e caso haja uma ruptura a ponto de tornar a relação insustentável, isso será reconhecido por diversas pessoas.

Até o momento da escrita deste artigo, embora diversas pessoas tenham deixado a Target Teal, nunca experimentamos o caso extremo de uma expulsão.

Limitações

Vale destacar que o nosso modelo associativo possui algumas limitações. Para nós essas desvantagens não constituem uma grande renúncia, mas talvez em outro contexto sejam problemáticas, por isso vou listá-las:

  1. Projetos com órgãos públicos: Alguns editais de licitações podem exigir um CNPJ único com vínculo empregatício como critério de participação. Nesse caso não poderíamos participar.
  2. Cadeia de valor curta: A Target Teal possui uma cadeia de valor muito curta – 1 ou 2 pessoas são capazes de prestar o serviço de ponta a ponta. Essa interdependência facilita a distribuição do dinheiro por projetos, pois fica óbvia a contribuição direta dos envolvidos. Isso é um pouco diferente para os nossos cursos abertos, onde existem mais contribuições marginais, pois diversos papéis não estão envolvidos diretamente no serviço.
  3. Risco de calote: Como a TT não tem uma conta bancária e o saldo do fundo está distribuído entre as contas dos Parceiros, é possível que alguém suma com parte do dinheiro. Seria muito difícil cobrar isso legalmente. Isso também vale para os poucos ativos tangíveis que temos, como o domínio targetteal.com ou o nosso servidor do Discord.

Considerações Finais

Espero que tenha sido proveitoso e interessante para você conhecer um pouco mais os detalhes do modelo associativo da TT. Mais do que mero empoderamento, uma organização emancipatória busca descentralizar o poder radicalmente e tornar sua propriedade totalmente coletiva.

Agora me permita um pequeno momento de exaltação. Nós construímos aqui algo muito valioso e que tenho um orgulho imenso! A nossa forma de nos organizarmos é muito coerente com o que propomos para os nossos clientes. Podem dizer que somos muito críticos, radicais, um pouco doidos, mas nunca ouvi falar que não praticamos o que ensinamos.

Como você deve ter notado, não há “pegadinhas” na nossa estrutura. Se o negócio for muito bem, nem eu nem nenhum sócio pode vender sua parte ou lucrar em cima do trabalho suado dos demais. Boa parte do valor volta para os próprios trabalhadores. Isso é foda demais.

Os desafios são imensos, mas eu tento levar um pouco disso em cada projeto de consultoria, em cada conversa, em cada relação. E ao mesmo tempo, nossa casa aqui é um grande campo de prática e experimentação. Essa coerência que construímos não é uma coisa estática, mas algo que estamos o tempo todo lapidando e buscando.

Uma das minhas intenções ao escrever esse texto é contar mais para o mundo como nos organizamos. Temos interesse em apoiar outras novas organizações que queiram adotar um modelo parecido. Se for o seu caso, entre em contato para marcarmos uma conversa.

Deixe suas dúvidas nos comentários para que possamos incrementar este artigo e torná-lo mais completo.

Valeu por ler até aqui. 😘

Agradeço pela revisão e contribuição de Ravi Resck, Tami Lima, Marcello Lacroix, Larissa Mayer Munhos, Maria Clara Lopes e Dyego Cantu.

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Sobre o(a) autor(a): Davi Gabriel Zimmer da Silva

Davi é designer organizacional e facilitador na Target Teal, especializado em melhorar interações entre times e indivíduos no ambiente corporativo. É pioneiro na prática de Holacracia no Brasil e co-autor da Organização Orgânica, uma abordagem brasileira para autogestão. Davi é formado em Sistemas de Informação pela UNISINOS e pós-graduado em Psicologia Positiva pela PUCRS. É amante dos temas desenvolvimento humano e de organizações, produtividade, futuro do trabalho e cultura organizacional.

Comentário

  1. Viviane Junta 4 de dezembro de 2023 às 16:24 - Responder

    Muito massa saber melhor como vocês funcionam, Davi. Sempre fiquei curiosa e é muito mais revolucionário do que eu imaginava. Parabéns!!
    Nós, na Minha Campinas, estamos tentando organizar as questões de não ter uma diretoria com mais poder nem legalmente. Estamos agora com um estatuto que traz uma nova categoria de associadas – associadas executivas (que compõe o Círculo), o círculo Minha Campinas como espaço de tomada de decisão, e a diretoria como diretoria representante, além um de acordo interno de governança que prevê rodízio nessa representação. Estamos animadas com a saída pensando em garantir a descentralização do poder e o compartilhamento da responsabilidade.

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