Quantas vezes você já ouviu que a transformação começa de dentro, que precisamos mudar a nós mesmos antes de mudar o mundo ou que a única maneira de melhorar uma organização é trabalhando a mentalidade das pessoas? Essas ideias estão muito presentes no discurso dominante da transformação organizacional. Mas será que a mudança organizacional efetiva pode ser alcançada apenas pela conversão do indivíduo a um novo mindset, isto é, uma nova visão de mundo?

Essa abordagem parte de uma premissa questionável: a de que nossas ideias e crenças determinam inteiramente nossas ações e, portanto, transformando a mentalidade das pessoas, transformaremos toda a organização. Porém, na prática, vemos que as estruturas concretas – os processos, políticas, hierarquias – também moldam fortemente nosso comportamento.

Ao focar exclusivamente na mudança do mindset individual, essa perspectiva deixa de considerar fatores que perpetuam práticas organizacionais disfuncionais. Acaba vitimizando aqueles que não conseguem se adaptar, como se fossem os únicos responsáveis pelos problemas.

Essa abordagem reflete uma concepção limitada das organizações como sistemas complexos, com dinâmicas que transcendem a vontade individual. Ela parte de um reducionismo psicológico, superdimensionando o poder das ideias em moldar comportamentos concretos e trata o indivíduo como um recipiente vazio a ser preenchido com novos valores e mentalidades, desconsiderando seu contexto e condicionantes estruturais.

Neste artigo eu quero apresentar uma crítica à transformação organizacional pela “mudança do mindset”. Eu não quero, no entanto, atacar as pessoas que pregam esse discurso ou gerar uma dicotomia tosca do bem contra o mal, como se apenas as intervenções estruturais fizessem sentido e todo o resto está errado.

O foco no indivíduo também é absolutamente relevante. Estou aberto para o debate sobre o assunto e disposto a aprender sobre outros aspectos que talvez não esteja levando em consideração. Mas não pouparei esforços para denunciar os aspectos nocivos desse tipo de abordagem, especialmente quando difundida no ambiente de trabalho.

Meritocracia e responsabilização individual

As intervenções típicas dessa abordagem, como treinamentos motivacionais ou coaching, tendem a oferecer soluções rasas diante de problemas complexos. São respostas simplistas, que não enfrentam as causas profundas por trás dos sintomas aparentes.

Isso reflete também uma meritocracia tóxica, que supervaloriza méritos e esforços individuais, negligenciando os privilégios, oportunidades e relações de poder.

Quando um profissional não ascende na carreira, atribui-se isso a uma crença limitante, como se todos competissem em igualdade de condições e aqueles no topo fossem apenas os mais determinados. Esse reducionismo obscurece injustiças e fatores sistêmicos.

Uma metáfora possível é a de uma corrida, na qual apenas alguns competidores tem acesso a tênis profissionais e alimentação balanceada, enquanto a maioria compete descalça e desnutrida. Obviamente, os primeiros levam vantagem. Porém, do ponto de vista individualista, eles venceram simplesmente por serem mais determinados e “quererem mais”.

Da mesma forma, quando falhas organizacionais são atribuídas à mentalidade das pessoas, ignora-se assimetrias de informação e poder embutidas nas estruturas institucionais. Isso pode gerar uma culpabilização injusta dos indivíduos por problemas que demandam soluções coletivas e estruturais.

Manutenção do status quo e Colonização Cultural

Ao desviar o foco dos arranjos sociais, a mudança pela via do mindset também acaba servindo muitas vezes como ferramenta de adaptação a lógicas e objetivos gerenciais pré-estabelecidos.

Em outras palavras, não se trata de uma transformação real das organizações, e sim de um ajuste subjetivo a demandas do capitalismo contemporâneo, como a flexibilização do indivíduo ao ambiente de trabalho e culto ao desempenho.

A mudança via mindset também pode representar uma forma de alienação ao desconsiderar visões de mundo distintas e impor uma nova mentalidade como única saída.

Isso fica evidente quando modelos gerenciais são apresentados como neutros e universais, quando na verdade refletem interesses e lógicas particulares. Trata-se de uma colonização simbólica, que ignora diversidades epistemológicas nas organizações.

Ao moldar mentalidades para atender a objetivos pré-definidos, essa abordagem promove uma colonização do imaginário, alienando os indivíduos de suas próprias visões de mundo e submetendo suas subjetividades a lógicas que lhes são estranhas.

Trata-se de uma domesticação dos desejos, crenças e valores das pessoas para servir a interesses organizacionais nem sempre explícitos ou eticamente justificáveis. Ao invés de emancipar, essa colonização cultural busca adaptar e integrar indivíduos a sistemas que não foram construídos por eles e para eles.

Mudanças que focam em aspectos comportamentais e psicológicos podem fortalecer uma cultura individualista e uma ideologia do desempenho exacerbada. Isso gera adoecimento e exclusão social, ao cobrar que as pessoas simplesmente mudem seu humor e atitude para se encaixar em sistemas disfuncionais.

As organizações não são apenas sistemas racionais, mas espaços de afetos, relações inconscientes e dinâmicas coletivas. Ao negligenciar essa dimensão emocional coletiva, a ênfase no mindset individual perde uma oportunidade de cura e integração maior.

Processos coletivos que validam dores compartilhadas podem gerar mais engajamento do que a imposição de uma mentalidade singular. A cura das feridas emocionais requer escuta empática e espaços coletivos para manifestações genuínas de sofrimentos recalcados. Para que isso exista, a estrutura das organiações precisa mudar.

Pressupostos individualistas e idealistas

O foco no mindset também tende a ocorrer sem questionamento dos próprios fins para os quais a mudança é direcionada. Presume-se que os objetivos gerenciais dominantes são neutros e devem ser perseguidos a todo custo.

Porém, uma transformação real pode exigir uma reavaliação ética sobre os rumos assumidos pelas corporações contemporâneas em nome da maximização dos lucros.

Essa abordagem reflete uma visão limitada das organizações, que são compostas por múltiplas dimensões interconectadas. Ao focar apenas na mente dos indivíduos, parte de uma perspectiva reducionista e idealista.

Isso se assemelha à “concepção bancária” da educação criticada por Paulo Freire, que trata cada pessoa como um recipiente vazio a ser preenchido com novos conteúdos e valores, ignorando seus contextos e condicionantes estruturais.

Como mencionado anteriormente, esse enfoque individualista se conecta com processos mais amplos de colonização mental e cultural. Ao desconsiderar visões de mundo distintas e impor uma nova mentalidade como caminho único, ignora-se a diversidade de subjetividades e modos de existência nas organizações.

Trata-se de uma dominação simbólica que não reconhece os efeitos danosos da substituição de crenças e valores próprios daquelas pessoas e coletividades.

Despolitização e determinismos

Além do reducionismo, essa abordagem também despolitiza as organizações, ignorando relações de poder, interesses conflitantes e dinâmicas coletivas que condicionam as práticas institucionais.

Ao enfatizar unicamente a agência individual, desconsidera-se como as estruturas hierárquicas, rituais e políticas organizacionais moldam visões de mundo e comportamentos dos indivíduos.

Isso se conecta com uma perspectiva determinista, que simplifica causas complexas. Por exemplo, reduzir problemas de produtividade à mentalidade incorreta das pessoas oculta fatores como sobrecarga de trabalho, fragilidade dos processos ou disputas de poder.

Da mesma forma, atribuir a pobreza ou insucesso profissional a “limitações das crenças” equivale a culpar as próprias vítimas de opressões sistêmicas, negligenciando barreiras concretas que impedem sua ascensão.

O Erro Fundamental de Atribuição

O Erro Fundamental de Atribuição é uma armadilha cognitiva que leva as pessoas a explicarem o comportamento dos outros com base em disposições pessoais, subestimando a influência das situações e contextos.

Por exemplo, se uma pessoa está atrasada para uma reunião, tendemos a atribuir isso a sua falta de comprometimento ou desleixo, quando na verdade pode ter ocorrido um imprevisto no trânsito.

Da mesma forma, quando analisamos problemas organizacionais sob a ótica individual, negligenciamos como contextos mais amplos – estruturais, políticos, culturais – condicionam atitudes e desempenhos.

A ênfase na mudança de mindset cai frequentemente nessa armadilha. Ao responsabilizar em excesso os indivíduos, essa visão distorce a complexidade dos sistemas organizacionais e as verdadeiras causas por trás de disfuncionalidades.

Para evitar o Erro Fundamental de Atribuição, você pode se perguntar:

  • Quais disposições pessoais podem estar influenciando esse comportamento?
  • Que elementos do contexto e situação podem estar condicionando esse comportamento?
  • Esse comportamento é comum entre outras pessoas no mesmo contexto/situação?
  • Esse comportamento também ocorre em outros contextos/situações?
  • Que sistemas, estruturas e processos podem incentivar ou desencorajar esse comportamento?
  • Existem assimetrias de poder, recursos e/ou informação que afetam esse comportamento?
  • Quais tendências e vieses inconscientes podem estar afetando minha interpretação desse comportamento?

Ao responder essas perguntas ao analisar uma situação, fica mais fácil evitar simplismos e considerar explicações sistêmicas e contextuais, não apenas disposições individuais.

A transformação individual pela via das estruturas

Ao invés de tentar moldar mentalidades, uma perspectiva promissora é transformar as estruturas em torno dos indivíduos, de forma que eles possam escolher como se adaptar ao contexto.

Por exemplo, em uma reunião onde as pessoas não se escutam e falam por cima da outra, ao invés de intervir na mentalidade individual, pode-se propor uma rodada em que uma pessoa fala de cada vez. Isso muda a interação, sem impor mudanças na forma de pensar.

Este enfoque evita o caráter invasivo de abordagens que buscam diretamente remodelar mentalidades. Ao transformar os sistemas, abre-se espaço para o protagonismo das pessoas em desenvolver novas visões de mundo, relações e identidades por elas mesmas.

Claro que intervenções puramente estruturais também são limitadas. O ideal é integrar o desenvolvimento pessoal com as mudanças nas estruturas. Porém, iniciar pela estrutura pode ser um caminho mais ético e efetivo para estimular mudanças individuais autênticas.

Quando trabalhamos com uma perspectiva sistêmica, todas as intervenções devem levar o desenvolvimento pessoal dos envolvidos em consideração. Afinal, se estamos falando de um sistema social, obviamente as pessoas que fazem parte dele também devem ser consideradas. A diferença é que, ao invés de tentar mudar a forma como as pessoas pensam, nós mudamos as estruturas sociais que influenciam como elas interagem.

Quem demonstrou isso muito bem foi a Anitta ao discutir sobre a rejeição de algumas camadas da sociedade ao funk.

Anitta, como uma verdadeira pensadora sistêmica, provocou o público da seguinte forma: “Para mudar a letra do funk, você precisa mudar o contexto onde essas pessoas estão inseridas.” Veja o vídeo abaixo.

Ressalvas e complexificação do debate

Embora este artigo assuma uma postura crítica, é importante reconhecer a complexidade deste debate e fazer algumas ressalvas. A intenção não é invalidar todas as contribuições de abordagens que também trabalhem aspectos individuais e subjetivos. A mudança organizacional requer múltiplas estratégias integradas.

Além disso, muitos profissionais realizam um trabalho sério e emancipador com indivíduos, baseado em pressupostos humanistas e dialógicos. Suas visões não devem ser caricaturadas ou deslegitimadas.

No entanto, é preciso problematizar visões simplistas que ignorem condicionantes coletivos e estruturais. O indivíduo não existe em um vácuo. A transformação efetiva exige considerar a complexidade humana e sistêmica.

Portanto, convém evitar uma polarização reducionista entre o individual e o coletivo. Ambas as dimensões estão inter-relacionadas.

Diálogo com profissionais do desenvolvimento humano

Se você trabalha com desenvolvimento humano, coaching ou intervenções que envolvem o indivíduo, espero que este artigo não seja recebido como um ataque à sua prática.

Reconheço o valor de uma escuta respeitosa, de perguntas instigantes, de técnicas que revelem potenciais do indivíduo. Isso não está em questão aqui.

Meu objetivo é convidar para uma reflexão mais ampla. Será que estamos enviando a conta da transformação social apenas para os indivíduos? As organizações precisam assumir sua parcela de responsabilidade.

Você certamente encontra barreiras em seu trabalho. Clientes que querem soluções mágicas e rápidas. Dirigentes avessos a mudanças estruturais. Cobrança por resultados imediatos.

A saída não é culpar você por essas amarras. E sim transformar as organizações para que valorizem intervenções profundas e sustentáveis, não panaceias individuais.

Peço apenas que, dentro de suas restrições, tenha um olhar crítico. Evite reduzir problemas sociais a falhas pessoais. Questione os fins tidos como naturais. Dê voz a narrativas marginalizadas.

Dentro das limitações e demandas muitas vezes impostas, existem caminhos para uma prática mais transformadora:

  • Questionar clientes sobre intervenções estruturais necessárias para sustentar a transformação almejada.
  • Estimular reflexões por meio do diálogo, não da imposição de uma nova forma de pensar.
  • Ajudar as pessoas a compreenderem como contextos sociais mais amplos moldam suas trajetórias.
  • Contextualizar casos individuais dentro de dinâmicas e estruturas sociais mais amplas.
  • Valorizar diferentes narrativas e modos de produção de conhecimento dentro das organizações.

O convite é para uma reflexão crítica que reconheça os riscos do individualismo simplista, mas sem deslegitimar contribuições positivas de diversos profissionais comprometidos com a ética, justiça e emancipação humana.

Acredite no potencial emancipatório de seus métodos, não em fórmulas pré-fabricadas. Olhe o ser humano em sua complexidade, para além de receitas comportamentais.

E quando puder, provoque as organizações a se repensarem, não apenas seus membros. A estrutura também precisa se mover para dar espaço ao novo.

Por uma justiça epistêmica

Além das críticas já apresentadas, a abordagem de mudança via mindset individual também pode ser questionada por negligenciar princípios de justiça epistêmica.

A justiça epistêmica diz respeito ao reconhecimento e valorização equitativa de diferentes sistemas de conhecimento, especialmente daqueles de grupos marginalizados. Trata-se de democratizar as formas de produzir sentido sobre o mundo.

Ao desconsiderar visões de mundo distintas e impor uma nova mentalidade como caminho único, ignora-se a diversidade de modos de pensar, ser e estar nas organizações.

Uma transformação justa requer ampliar que narrativas e experiências são consideradas válidas dentro da empresa. Em vez de substituir crenças alheias por concepções pré-definidas, é preciso abrir espaços para múltiplas visões de mundo.

Isso significa questionar a origem das ideias e pressuposições tidas como universais. Muitos saberes gerenciais ocidentais foram naturalizados como neutros quando, na realidade, refletem visões de grupos dominantes.

Valorizar a justiça epistêmica é um movimento necessário para superar o caráter monocultural da mudança via mindset. A diversidade de saberes deve ser uma alavanca para transformações plurais e autênticas.

Uma abordagem integrada

Embora não existam soluções únicas, é preciso ampliar a compreensão sobre transformação organizacional. Em vez de dicotomias simplificadas, uma perspectiva sistêmica reconhece a complexidade dos desafios e busca integrar múltiplas dimensões.

Isso requer combinar, de forma situada e customizada:

  • Trabalho significativo com as singularidades subjetivas;
  • Análise crítica das estruturas e práticas institucionalizadas;
  • Desenho de projetos coletivos de mudança cultural;
  • Experimentação e prototipação de novos arranjos e possibilidades.
AspectoAbordagem individualistaAbordagem Sistêmica
FocoIndivíduos isoladosSistemas, Indivíduos e Relações
Causas analisadasDisposições pessoaisFatores contextuais e estruturais
SoluçõesMudança de mentalidadeRedesenho de processos, acordos, rituais e relações de poder
TransformaçãoIndividualCultural, política e estrutural

Não basta focar apenas na mudança mental e comportamental de indivíduos isolados. Mas também é insuficiente mudar desenhos organizacionais sem considerar os anseios e aspirações das pessoas.

Uma transformação profunda exige ampliar o olhar para as múltiplas facetas em interação. Esta integração sistêmica e multidimensional é o que move as organizações para patamares realmente novos.

Na Target Teal, adotamos uma abordagem integrada à transformação organizacional, que articula trabalho com indivíduos e mudanças estruturais nos sistemas onde estão inseridos considerando diferentes dimensões.

DimensãoDescrição
EstruturalHierarquia, rituais, acordos e processos
PolíticaRelações de poder, interesses em disputa
SimbólicaIdentidade, Linguagem e Espaços
AfetivaVínculos, Conflitos e Emoções

Respeitamos a subjetividade de cada pessoa, sem tratá-las como uma folha em branco a ser preenchida. Ao mesmo tempo, transformamos os “solos” das organizações, alterando políticas, processos e desenhos que influenciam comportamentos.

Nossa experiência mostra que, ao invés de impor uma nova mentalidade, podemos construir coletivamente ambientes mais saudáveis e propícios ao crescimento individual. Dentro desses novos sistemas, cada indivíduo assume protagonismo em seu desenvolvimento.

Trata-se de uma visão sistêmica, que integra o trabalho subjetivo a mudanças concretas no contexto. Essa perspectiva impede reducionismos e gera transformações mais efetivas. Afinal, de nada a adianta investir em yoga e meditação para os funcionários, se as metas abusivas e a sobrecarga continuam as mesmas.

Este artigo contou com ricas contribuições de Tami Lima, Rodrigo Bastos, Eduardo Montenegro, Eliza Fortuna, Mônica Santos, Dani Saraiva, Mary e Larissa Mayer. 

UM CONVITE

Nós não acreditamos em soluções milagrosas para problemas complexos. Intervimos na cultura escutando as pessoas e fazendo experimentos de intervenções. Os feedbacks recebidos a partir dessas intervenções geram novas histórias e novas intervenções, e assim a cultura se transforma. 

Não trabalhamos com produtos de prateleira e nem sempre vamos buscar agradar as lideranças com as nossas propostas. Sabemos que as mudanças geram desconforto. Afinal, se ninguém tá incomodado, é porque a transformação é só cosmética mesmo.

Chama a gente para uma prosa  pra conhecer nossa abordagem e faça nossos cursos. Conheça nossa abordagem para lidar com a transformação cultural e leia nossos artigos sobre pensamento sistêmico para aprender mais sobre nossa abordagem de intervenções estruturais.