Como superar a lógica gerencialista e tecnocrática que ainda predomina na gestão, abrindo espaço para diferentes tipos de saberes nas organizações?

Como radicalizar a democracia interna das organizações, de modo a torná-las mais permeáveis à diversidade e mais capazes de processar as tensões entre regulação e emancipação?

De que modo a valorização de múltiplas perspectivas pode ajudar a repensar a lógica de funcionamento das organizações hoje?

Essas são as perguntas que permeiam o trabalho de qualquer pessoa org designer que busca transformações sociais nas empresas e na sociedade como um todo.

Na minha jornada de investigação organizacional eu me deparo com frequência com situações onde a subordinação das relações é tida como algo normal. É apenas o jeito que sempre fizemos as coisas por aqui.

Para discutir mudanças estruturais nas organizações e na sociedade, os agentes de mudança precisam se munir de uma base teórica e prática que transcende os livros de administração. Ora, a teoria clássica da gestão só vai perpetuar o discurso dominante que reforça a subordinação no ambiente de trabalho.

Este texto busca explorar essas questões com base nas ideias do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que em seu livro “Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social”, faz uma ampla reflexão sobre a necessidade de reinventar as bases teóricas da emancipação social.

Boaventura de Sousa Santos é um dos principais sociólogos da atualidade, com vasta obra publicada no Brasil. Nascido em Portugal em 1940, é professor catedrático da Universidade de Coimbra e professor visitante da University of Wisconsin-Madison nos Estados Unidos.

O livro analisado é fruto de três conferências proferidas pelo autor em 2005 na Universidade de Buenos Aires, na Argentina. Nelas, Santos apresenta uma reflexão sobre a necessidade de reinventar o pensamento crítico e a luta pela emancipação social na realidade latino-americana contemporânea.

Este é um texto que foge do padrão que exploramos aqui no blog da Target Teal. É um passo tímido que eu dou em direção a publicações que divulgam as teorias das ciências sociais que embasam a transformação radical das organizações.

Eu convido você que normalmente acompanha os nossos escritos que tenha paciência e curiosidade para tomar contato com essas ideias. E, claro, ajude-nos a divulgar esse tipo de visão no seu próprio meio.

A crise da modernidade ocidental

Santos argumenta que a sociedade moderna ocidental foi organizada com base em uma tensão entre regulação e emancipação social.

A regulação diz respeito à organização da ordem social, à manutenção de certa estabilidade do status quo. Já a emancipação se refere às aspirações de mudança e progresso rumo a uma vida melhor.

Essa tensão gerava uma discrepância entre as experiências negativas do presente e as expectativas otimistas depositadas no futuro.

No entanto, nas últimas décadas ocorreu uma inversão nessa discrepância: as expectativas se tornaram muito mais sombrias do que as experiências vividas no presente.

Isso gerou uma dupla crise, tanto da regulação quanto da emancipação social, que se expressa na incapacidade das instituições sociais e políticas de processarem adequadamente as demandas sociais.

Além disso, ocorre uma crise das ciências sociais hegemônicas, incapazes de produzir novas teorias diante do esgotamento dos paradigmas vigentes. As teorias produzidas nos países centrais se mostram inadequadas para a realidade do Sul Global. A maioria esmagadora das teorias que utilizamos nas organizações e na política são oriúndas de autores dos países do norte. Isso obviamente tem um impacto na forma como nos organizamos e nos submetemos às ideias de pensadores eurocêntricos.

A crítica à razão indolente

Diante desse contexto, Santos empreende uma crítica à razão ocidental “indolente”, que se considera exclusiva e não reconhece outros tipos de conhecimento e experiências sociais. Só é conhecimento útil aquilo que é validado pelas correntes eurocêntricas.

Ele identifica dois tipos principais de razão indolente:

A razão metonímica parte de uma concepção restrita e homogenizante de totalidade social. Isso significa que ela só reconhece como válidas certas experiências sociais, aquelas que se encaixam em sua visão limitada do todo social.

Tudo o que fica de fora dessa totalidade é descartado, marginalizado e, por isso, tornado invisível. Ao delimitar rigidamente o que contaria como totalidade, a razão metonímica termina por contrair e subtrair da realidade uma ampla gama de experiências, práticas e saberes.

Já a razão proléptica projeta para o futuro uma trajetória inexorável, concebendo-o como uma linearidade fechada. Essa visão se ancora na crença ocidental moderna no progresso e na expansão infinita da lógica de dominação.

Ao cristalizar certa expectativa de futuro, a razão proléptica também elimina do presente perspectivas e possibilidades alternativas de mundo. Nega, no presente, alternativas que divergem desse futuro pré-concebido.

Para superar os limites dessa razão indolente, Santos propõe uma inversão de perspectiva:

  • Ampliar o presente: valorizando experiências e conhecimentos disponíveis, mas marginalizados e tornados “ausentes” pela lógica hegemônica.
  • Contrair o futuro: deixando de lado a ideia de futuro inexorável e buscando, no presente, alternativas concretas e utopias viáveis para construir outro futuro possível.

A Sociologia das Ausências e das Emergências

Para operacionalizar essa inversão, Santos recorre à Sociologia das Ausências e à Sociologia das Emergências.

A Sociologia das Ausências visa tornar presentes e visíveis experiências sociais e modos de conhecimento que existem de fato, mas foram marginalizados e produzidos como ausentes pela lógica hegemônica.

Isso significa reconhecer e valorizar práticas, saberes e grupos sociais que foram inferiorizados e tidos como ignorantes, atrasados, locais ou improdutivos. Faz emergir realidades disponíveis, mas descartadas e silenciadas pelas “monoculturas” da racionalidade dominante.

Exemplos organizacionais:

  • Conhecimentos e experiências de funcionários de nível operacional não são valorizados pela gestão, que se baseia apenas no conhecimento técnico-científico.
  • Práticas organizacionais baseadas em saberes informais e cultura local dos funcionários são deslegitimadas pela gestão, que as considera “atrasadas” ou “pouco produtivas”.
  • Trabalhadores mais velhos, com conhecimento tácito acumulado ao longo dos anos, são preteridos em nome de uma gestão que valoriza apenas funcionários jovens, com formação técnica.
  • Modos de trabalho e tempo baseados em ritmos locais e costumes da comunidade são ignorados pela organização, que impõe uma lógica produtivista padronizada.

Já a Sociologia das Emergências busca identificar, nas experiências e dinâmicas sociais do presente, sinais de possibilidades e alternativas que apontam para futuros viáveis.

São possibilidades que já existem de forma embrionária ou como tendências em curso, mas são desqualificadas por ainda não serem totalmente visíveis ou exeqüíveis. A Sociologia das Emergências as valoriza como germes de outros mundos possíveis, contrapondo-se às visões fatalistas ou redutoras.

Exemplos organizacionais:

  • Pequenas inovações criadas por funcionários na execução de tarefas são desconsideradas pela gestão, pois são vistas como insignificantes e sem impacto visível no curto prazo.
  • Novas formas de colaboração e trabalho em rede entre equipes são desencorajadas pela cultura organizacional tradicional, baseada em disputas entre silos funcionais.
  • Experimentos de autogestão em pequenos times são descartados pela gestão, que não enxerga seu potencial transformador e os rotula como irrelevantes.
  • Movimentos espontâneos de solidariedade e apoio mútuo entre funcionários são ignorados pela cultura individualista da organização.

As cinco ecologias

Na dimensão epistemológica, Santos também propõe a ideia de uma ecologia de saberes, que favoreça o diálogo entre o conhecimento científico e outros tipos de conhecimento, como o popular, leigo, indígena, tradicional e etc.

Ele elenca cinco formas de ecologia necessárias para confrontar as “monoculturas” da racionalidade hegemônica.

As “monoculturas” da racionalidade hegemônica, segundo Santos, são formas de conhecimento e práticas sociais que se tornaram dominantes e excluíram outras possibilidades. São visões de mundo que se impuseram como únicas e universais, quando na verdade representam perspectivas particulares.

No âmbito das empresas, a monocultura pode ser percebida na hegemonia da gestão científica e das métricas de performance como únicos critérios de eficiência organizacional. Isso marginaliza outras lógicas, como a valorização de relações humanas, impacto social, diversidade cultural ou equilíbrio ambiental. A primazia dos saberes formais sobre os informais também institui uma monocultura dentro das organizações. Ao deslegitimar contribuições baseadas em experiência prática, perpetua-se uma racionalidade gerencial indiferente às múltiplas temporalidades e produtividades possíveis no trabalho.

Ecologia de saberes

A ecologia de saberes propõe o diálogo e a complementaridade entre o conhecimento científico e outros tipos de conhecimento não-científicos. Isso significa valorizar saberes populares, tradicionais, leigos, camponeses, indígenas etc. O objetivo é romper com a monocultura do saber científico, que desqualifica outros conhecimentos como não-válidos ou não-rigorosos. A ecologia de saberes busca aproveitar a riqueza e diversidade de visões de mundo que existem para além da ciência moderna.

Nas organizações, um exemplo de aplicação prática é a valorização do conhecimento tácito dos funcionários com maior experiência prática, promovendo intercâmbio com equipes recém-formadas e criando comundiades de prática.

Ecologia das temporalidades

A ecologia das temporalidades reconhece que existem diversos tempos históricos, e não apenas o tempo linear ocidental. Isso significa dar valor a temporalidades cíclicas, como a do camponês guiado pelo ciclo das estações. Ou a temporalidades míticas, nas quais passado e futuro estão interligados, como em povos indígenas ou africanos. O objetivo é romper com a monocultura do tempo linear, que desqualifica outras formas de experienciar e conceber a história e o devir.

No âmbito organizacional esta ecologia pode ser manifestar no respeito aos ritmos e fluxos de trabalho das comunidades onde a organização está inserida, não impondo lógicas produtivistas padronizadas.

Ecologia do reconhecimento

A ecologia do reconhecimento visa descolonizar as diferenças e as hierarquias naturalizadas entre grupos e culturas. Isso implica questionar visões que inferiorizam identidades étnicas, raciais, sexuais ou epistêmicas subalternizadas. O objetivo é promover relações baseadas no reconhecimento igualitário na diferença, sem inferiorizações. Busca-se dar voz e visibilidade aos grupos marginalizados.

Nas organizações esta ecologia pode ser manifestar ao tratar com igualdade equipes de nível operacional e gestores, rompendo com visões hierárquicas que inferiorizam saber prático.

Ecologia da transescala

A ecologia da transescala propõe a articulação entre dinâmicas e lutas em escalas locais, nacionais e globais. Isso permite conectar experiências e saberes que emergem em diversas escalas. O objetivo é romper com visões que desqualificam o local/particular em relação ao global/universal. Promove-se assim o protagonismo de iniciativas locais e sua articulação contra-hegemônica em escala global.

No contexto organizacional, esta ecologia pode se manifestar na articulação de demandas e experiências de equipes locais com estratégias globais da organização, valorizando contribuições em diferentes escalas.

Ecologia das produtividades

A ecologia das produtividades enfatiza a valorização de sistemas econômicos não-capitalistas, como a economia solidária, cooperativas e a produção comunitária. O objetivo é romper com a monocultura capitalista, que só reconhece como produtivo o crescimento econômico dentro da lógica de acumulação privada. Resgata-se, assim, experiências de produção não-capitalistas voltadas à satisfação de necessidades humanas e à sustentabilidade ambiental.

No âmbito organizacional, pode-se avaliar produtividade não apenas por resultados financeiros de curto prazo, mas também por geração de valor social e ambiental.

Desafios para uma nova teoria crítica

As transformações aceleradas no mundo contemporâneo impõem novos desafios também para a gestão das organizações. A crise das teorias organizacionais tradicionais espelha a necessidade de reinventar os paradigmas da administração para lidar com estruturas sociais, culturais e econômicas em rápida mudança.

Nesse cenário, os seis desafios elencados por Boaventura para uma nova teoria crítica – distinguir objetividade de neutralidade, desenvolver subjetividades rebeldes, incorporar a perspectiva pós-colonial, dar voz a experiências silenciadas, valorizar a diversidade epistemológica e construir conhecimento dialógico – também orientam a busca por modelos organizacionais mais democráticos, plurais e socialmente responsáveis.

A reinvenção das ciências sociais proposta pelo autor converge com o imperativo de reinventar as formas de gestão para enfrentar as complexas contradições do capitalismo globalizado.

Vejamos cada um desses desafios com mais detalhes.

Distinguir objetividade científica de neutralidade política

Santos chama atenção para o fato de que a busca por objetividade e rigor metodológico na produção de conhecimento não pode ser confundida com neutralidade política ou indifença ética. É preciso romper com a herança positivista que prega uma falsa neutralidade axiológica. Nas palavras do autor, é necessário “distinguir entre objetividade e neutralidade, a questão de como devemos distinguir entre objetividade e neutralidade” (p. 56). Isso significa reconhecer que todo conhecimento está contextualizado social e culturalmente.

Anedota organizacional:

A fabricante de brinquedos Brincando melhor(fictícia) procurava aumentar suas vendas. Seus executivos criaram uma linha de bonecas magras e loiras como padrão de beleza. Após críticas de funcionários e consumidores sobre a medida prejudicar a autoestima de meninas negras e gordas, a empresa percebeu que objetividade não significa neutralidade. Lançou então uma linha diversificada, que valorizava todos os biotipos femininos.

Desenvolver subjetividades rebeldes e propositivas

Ao invés de concentrar os esforços apenas na análise crítica das estruturas, Santos propõe investir também na construção de subjetividades rebeldes – identidades e mentalidades capazes de engendrar práticas transformadoras. Trata-se de valorizar a agência e criatividade de grupos subalternos, desenvolvendo sua consciência contra-hegemônica. Nas palavras do autor, é necessário passar da “problemática estrutura/ação à problemática ação conformista/ação rebelde” (p. 55).

Anedota organizacional:

Na mineradora Riquezas da Terra (fictícia), os trabalhadores eram controlados por rigido sistema de metas. Cansados da pressão, eles se organizaram em movimento por mais autonomia e respeito. Temendo greve, a gestão cedeu em alguns pontos, embora tentando cooptar líderes. Ficou evidente a persistência de subjetividades rebeldes apesar de medidas para enfraquecê-las.

Incorporar a perspectiva pós-colonial

Santos argumenta ser necessário romper com o eurocentrismo e reconhecer os efeitos duradouros do colonialismo, incorporando as vozes e visões de mundo do Sul Global. Isso implica descolonizar também o pensamento crítico, superando matrizes que reproduzem a lógica colonial. O autor defende a necessidade de “incluir a perspectiva pós-colonial” (p. 59).

Anedota organizacional:

A rede varejista Moda para Todos (fictícia) expandiu na África com lojas padronizadas. Ignorou referências culturais locais, causando estranhamento. Ao dar voz a gerentes nativos, a empresa entendeu a necessidade de adaptar produtos e processos a cada contexto, incorporando visões pós-coloniais. Porém, essa incorporação foi limitada pela cultura corporativa.

Dar voz às experiências silenciadas

É crucial reconhecer e dar visibilidade às experiências e saberes de populações oprimidas pela lógica colonial, frequentemente ausentes na ciência moderna. Santos propõe enfrentar esse desafio buscando “dar voz às experiências e visões de mundo silenciadas pela colonialidade” (p. 105).

Anedota organizacional:

Na indústria química Força e Progresso (fictícia), operários executavam ordens sem questionar. Após acidente trabalho, eles criaram comissão de segurança, ainda que desencorajada pela gestão. Ao vocalizar demandas antes silenciadas, a comissão conquistou pequenas melhorias nas normas de segurança, embora a cultura pouco dialógica persista.

Valorizar a diversidade epistemológica

Ao invés de partir de uma visão universalista, é preciso reconhecer e dialogar com a diversidade epistemológica existente no mundo para além da ciência moderna. Nas palavras de Santos, é necessário valorizar “a diversidade epistemológica do mundo” (p. 20).

Anedota organizacional:

No banco de investimentos Lucros & Cia (fictício), os executivos tinham background similar. Ao inserir profissionais de periferia em cargos de liderança, surgiram conflitos culturais e de visões de mundo. Por meio de sensibilização e formação em diversidade, a empresa conseguiu mitigar choques epistemológicos e obter nova perspectiva em análises de risco.

Construir conhecimento dialógico

Santos propõe a construção de conhecimento a partir do diálogo entre diferentes matrizes culturais e modos de saber, sem subordiná-los a uma única matriz. Defende a busca por “complementaridade entre diferentes saberes” (p. 105) e o desenvolvimento de “outro modo de produção de conhecimento” (p. 19).

Anedota organizacional:

A mineradora Ouro Negro (fictícia) tinha estrutura verticalizada. Para inovar processos, criou comitês consultivos com representação operacional. Inicialmente houve desconfiança dos trabalhadores. Com facilitação externa, os comitês conquistaram ambiente mais aberto e proposição conjunta de melhorias. Porém, a efetiva implementação das propostas enfrenta resistências da alta gestão.

Gerar articulação entre movimentos sociais

É preciso gerar inteligibilidade e articulação entre os diversos movimentos sociais e suas lutas, de modo a potencializar suas complementaridades e sinergias transformadoras. Santos fala em criar “pluralidades despolarizadas” (p. 95) e em procedimentos de “tradução” entre diferentes lutas (p. 39).

Anedota organizacional:

A mineradora Córrego Minerals (fictícia) queria ampliar operação, impactando comunidades locais. Movimentos de moradores, indígenas e ambientalistas, inicialmente desarticulados, criaram fórum conjunto, somando reivindicações. A pressão integrada obrigou a empresa a negociar compensações e refazer estudos de impacto. A despeito de interesses distintos, a aliança entre movimentos gerou resultados antes inalcançáveis isoladamente.

Subjetividades Rebeldes

Dentre os vários conceitos desenvolvidos por Boaventura de Sousa Santos, o das “subjetividades rebeldes” tem um papel central em sua proposta de reinventar os caminhos da emancipação social hoje.

Nas palavras do autor:

“Devemos ver de forma mais ampla. Entre os cientistas sociais, cada um tem sua opção. A minha é que não se deve ficar tão centrado na estrutura ou na ação e sim na rebeldia ou no conformismo. As estruturas pertencem à corrente fria, que é necessária, mas tem havido até agora uma maneira reducionista de ver esses obstáculos estruturais.”

Ele contrapõe a ênfase dada à “corrente fria” das estruturas com a necessidade de valorizar também a “corrente quente” da vontade e da rebeldia.

Santos argumenta que, para além de analisar as estruturas de opressão, é preciso investir na criação de subjetividades rebeldes – identidades, mentalidades e formas de consciência capazes de engendrar práticas contra-hegemônicas.

Isso envolve o esforço de superar as subjetividades conformistas ou cínicas, que naturalizam as injustiças e desigualdades. Implica também valorizar saberes e experiências de grupos oprimidos que são germinadores de contestação e imaginação utópica.

Portanto, para Santos, a formação de subjetividades rebeldes é uma condição fundamental para sustentar processos contra-hegemônicos de longo prazo, que visem superar as múltiplas dimensões da colonialidade e promover relações sociais verdadeiramente emancipatórias.

Essa perspectiva fornece ferramentas teóricas importantes para pensar as lutas sociais na América Latina e no Sul Global, chamando atenção para a agência e criatividade subversiva dos grupos marginalizados.

A proposta de uma democracia de alta intensidade

Na esfera mais propriamente política, o foco de Santos é a reinvenção da democracia diante da crise do modelo hegemônico.

Ele analisa as transformações na democracia nas últimas décadas, que levaram à perda da diversidade de modelos e ao fim da tensão entre capitalismo e democracia, com o domínio da racionalidade neoliberal.

Para superar essa crise, o autor propõe a construção de uma democracia de alta intensidade, com base em dois eixos principais:

  • complementaridade entre democracia representativa e democracia participativa.
  • A criação de pluralidades despolarizadas entre os movimentos sociais, para ampliar sua capacidade de articulação.

Isso envolve pensar em novas relações entre Estado, partidos e movimentos populares, assim como entre os próprios movimentos.

Aplicando a democracia de alta intensidade nas organizações

A proposta de uma democracia de alta intensidade feita por Santos pode ser uma inspiração para pensarmos modelos organizacionais mais participativos e dialógicos.

A complementaridade entre democracia representativa e participativa implica criar nas empresas mecanismos que equilibrem processos de delegação e prestação de contas com instâncias diretas de envolvimento dos trabalhadores na tomada de decisão.

Isso pode incluir, por exemplo, a adoção de orçamentos participativos, nos quais os funcionários definem diretamente a alocação de parte dos recursos; a criação de comissões temáticas, reunindo representantes de diferentes áreas para propor soluções; ou a realização de consultas e referendos internos sobre temas estratégicos.

Já a noção de pluralidades despolarizadas remete à necessidade de articular as diferentes visões e interesses que convivem numa organização, sem antagonismos excessivos. Isso pode ser viabilizado por meio de processos construção colaborativa da estratégia, nos quais grupos distintos trabalham juntos numa plataforma comum.

Outras práticas autogeridas, como times multifuncionais e fóruns abertos de diálogo, também podem ajudar a compor pluralidades despolarizadas nas empresas. Elas constroem pontes entre interesses diversos, ao invés de separar grupos em disputa.

Reinventando a emancipação social

Em síntese, Boaventura de Sousa Santos traz contribuições fundamentais para o esforço de reinventar as bases teóricas e práticas da esquerda na América Latina contemporânea.

Sua ênfase na ecologia de saberes, na Sociologia das Ausências e Emergências, na construção de subjetividades rebeldes e na radicalização democrática apontam caminhos para superar a crise da modernidade ocidental e das teorias críticas.

Suas propostas seguem muito atuais para o enfrentamento dos dilemas políticos, sociais e epistemológicos da periferia do capitalismo global hoje. A reinvenção da emancipação social passa por um questionamento profundo dos paradigmas estabelecidos e pela valorização das experiências invisibilizadas pelo cânone hegemônico.

Implicações para o Design Organizacional

As contribuições de Boaventura mostram-se muito férteis para pensarmos também o campo do design organizacional hoje. Suas reflexões sobre a ecologia de saberes, o protagonismo de vozes marginalizadas e a reinvenção da democracia têm implicações importantes para como podemos repensar o desenho de organizações e sistemas sociais.

A perspectiva da ecologia de saberes aponta para a necessidade de superarmos a lógica gerencialista e tecnocrática tradicional, valorizando outros modos de conhecimento além do técnico-científico. Isso envolve dar voz aos trabalhadores e usuários, reconhecendo suas experiências e visões de mundo.

Além disso, essa ecologia de saberes rompe com a separação entre a concepção e a execução dos processos organizacionais. Ao invés de concentrar o conhecimento estratégico no topo das hierarquias, podemos pensar em sistemas organizacionais mais democráticos e participativos.

Da mesma forma, a noção de subjetividades rebeldes traz à tona o potencial emancipatório que pode emergir dentro das organizações, quando grupos marginalizados ou subalternos constroem alternativas contra-hegemônicas às estruturas de dominação existentes.

Assim, as reflexões de Santos convidam a pensar organizações e sistemas sociais que, através de uma radicalização democrática, sejam capazes de processar de forma criativa e inclusiva as tensões entre regulação e emancipação. Trata-se de um horizonte ao mesmo tempo desafiador e esperançoso para o design organizacional contemporâneo.

Botando isso em prática

Aqui na Target Teal nós desenvolvemos uma abordagem de autogestão que estimula o desenvolvimento de subjetividades rebeldes e valoriza as diferentes temporalidades, produtividades e saberes dentro das organizações.

Trata-se da tecnologia social Organizações Orgânicas (O2), que busca operacionalizar muitos dos princípios destacados por Boaventura de Sousa Santos em seu projeto de reinventar a emancipação social.

A O2 promove uma ecologia de saberes ao dar voz aos trabalhadores, valorizando suas experiências e conhecimentos para o desenho dos processos organizacionais. Em vez de concentrar o planejamento estratégico no topo, ela estimula a inteligência coletiva distribuída por toda a organização.

Além disso, a O2 cria canais para que subjetividades rebeldes emerjam e construam alternativas às estruturas burocráticas tradicionais. Por meio de círculos autogeridos e espaços de participação ampla, novos arranjos organizacionais podem ser prototipados de baixo para cima e de cima pra baixo.

Dessa forma, a O2 busca radicalizar a democracia interna das organizações, gerando pluralidades despolarizadas e um processo organizacional baseado na transparência e aprendizado mútuo. Ela representa uma tentativa concreta de tornar viável na prática uma reinvenção da emancipação social dentro do âmbito organizacional.

Sistemas sociais emancipatórios

As reflexões de Boaventura de Sousa Santos iluminam os dilemas e contradições que permeiam a sociedade capitalista contemporânea, marcada por profundas assimetrias de poder.

Suas análises mostram que a superação das lógicas de dominação requer um questionamento radical dos paradigmas organizacionais e políticos vigentes. É preciso reinventar as bases teóricas e práticas da emancipação social.

Nesse esforço, conceitos como ecologia de saberes, subjetividades rebeldes e democracia de alta intensidade fornecem pistas concretas para imaginar alternativas de gestão e convivência social mais pluralistas, dialógicas e igualitárias.

Contudo, a construção de sistemas sociais verdadeiramente emancipatórios depende de lidar com as contradições estruturais que atravessam as organizações e a própria sociedade. Não basta reformas pontuais ou superficiais.

Para isso, são necessárias abordagens críticas e sistêmicas, informadas pelas ciências sociais anti-positivistas, que confrontem as raízes históricas e sociológicas das assimetrias de poder.

Trata-se de um processo complexo e de longo prazo, permeado por conflitos e disputas. Mas é somente encarando essas contradições de frente, sem falsas ilusões gerencialistas, que podemos vislumbrar a reinvenção da emancipação social nas organizações e além delas.

UM CONVITE

Nós não acreditamos em soluções milagrosas para problemas complexos. Intervimos na cultura escutando as pessoas e fazendo experimentos de intervenções. Os feedbacks recebidos a partir dessas intervenções geram novas histórias e novas intervenções, e assim a cultura se transforma. 

Não trabalhamos com produtos de prateleira e nem sempre vamos buscar agradar as lideranças com as nossas propostas. Sabemos que as mudanças geram desconforto. Afinal, se ninguém tá incomodado, é porque a transformação é só cosmética mesmo.

Chama a gente para uma prosa  pra conhecer nossa abordagem e faça nossos cursos. Se você quiser se aprofundar mais em nossa abordagem de autogestão emancipatória eu recomendo o curso de Organizações Orgânicas.

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Sobre o(a) autor(a): Ravi Resck

Ravi é um hacktivista social, atuando também como facilitador, designer organizacional e mapeador de sistemas sociais. Se dedica ao estudo de metodologias colaborativas e à complexidade dentro dos contextos organizacional, relacional e ambiental. Sua experiência se estende de empresas de todos os portes até cooperativas e associações do 3° setor, tanto no Brasil como em cenário global. Ademais, Ravi tem um histórico de envolvimento com Organizações Autônomas Descentralizadas (DAOs), no mapeamento de redes sociais em organizações de grande escala e na criação e manutenção de comunidades de prática dentro e fora de empresas.

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