Nós temos conversas o tempo todo, seja com amigos, familiares, colegas de trabalho ou com nós mesmos.

A conversa é provavelmente uma das tecnologia socias mais antigas da humanidade, provavelmente até mais antiga que as fogueiras. E por tecnologia social, me refiro a qualquer solução utilizada por um grupo de pessoas para resolver algum desafio ou necessidade social.

É uma tecnologia que pode ser utilizada para o lazer, para tomar decisões, transformar conflitos, desencadear revoluções, manipular alguém, brigar e até mesmo para botar alguém pra dormir.

A conversa não é um software, é um socialware. É provavelmente o “app” de natureza social mais popular do mundo, que chega mesmo nos lugares sem eletricidade.

Fala sério. Todo mundo adora bater um papo, né?

No entanto, você provavelmente já esteve numa conversa onde todos queriam discutir um assunto e, por algum motivo, não conseguiram. Parece que há uma disputa para ocupar o espaço de interação.

A minha hipótese é isso acontece por uma grande influência das estruturas de poder explícitas, ocultas e invisíveis nas relações sociais que privilegiam certos indivíduos mais que outros em conversas e interações de todo tipo. Essa concentração de poder contribui para um conflito estrutural na comunicação entre pessoas, organizações e até mesmo países.

Ou seja, o saco emocional do rolê fica cheio e as tretas começam a aparecer.

Se não existe um acordo explícito e consentido sobre como as interações devem acontecer, aqueles que concentram mais poder terão mais chances de dominar o pedaço.

Quando digo poder me refiro a características como raça, gênero, fatores econômicos, cargo, eloquência, educação e uma série de outras coisas que algumas pessoas têm e outras não.

Ao atuar como designer organizacional, sempre busco desenhar artefatos que vão favorecer a emancipação das relações ao limitar a possibilidade de subordinação entre as pessoas o máximo possível.

O poder é algo natural e essencial para o funcionamento da sociedade, mas quando é exercido sobre o outro é opressão, e esta opressão pode acontecer de formas muito sutis e inclusive não intencionais.

Aquele amiguinho passivo agressivo que domina a reunião muitas vezes nem tem consciência de que age dessa forma.

Parto do pressuposto de que as pessoas que abusam do poder devem ser responsabilizadas por isso, mas também reconheço que determinadas estruturas sociais estimulam certos comportamentos abusivos. Se essas estruturas não forem dissolvidas, este comportamento continuará se manifestando.

Isso tudo pra dizer que a estrutura da conversa, seja ela desenhada intencionalmente ou não, vai moldar a interação das pessoas na roda e influenciar a qualidade do papo, das ideias, das decisões, dos planos e a qualidade das relações.

Ora, qualquer organização é o produto de conversas que aconteceram para explorar, decidir, planejar e executar coisas.

O problema é que essas conversas muitas vezes são unilaterais e priorizam os interesses de uma parcela reduzida das pessoas que participam.

Precisamos de estruturas emancipatórias para conversas generativas, que agregam significado à nossa experiência. Chega de reuniões que poderiam ser um email e papo de elevador!

Quem nunca esteve numa reunião onde as pessoas se interrompem o tempo todo e o assunto muda de forma repentina? Quem nunca teve ânsia de vômito assistindo um debate presidencial? Quem nunca?

Pois é. Essas conversas sofrem da tirania da falta de estrutura, que acaba por favorecer uma estrutura implícita e a situação muitas vezes vira um jogo ganha-perde.

Então como podemos desenhar conversas que ofereçam espaços generativos para explorar, decidir, planejar e cuidar das relações?

Como podemos oferecer um espaço de participação equilibrado onde todos podem se manifestar numa conversa se quiserem?

Fazemos isso mudando a forma como as pessoas interagem, isto é, com intervenções estruturais.

Dois modos de conversação básicos em grupos

Uma conversa em grupo pode acontecer de duas formas básicas: no modo pipocada ou rodada.

Modo Pipocada: Qualquer pessoa pode falar a qualquer momento, não existe uma ordem de fala ou qualquer restrição.

Modo Rodada: Apenas uma pessoa pode falar de cada vez, normalmente numa ordem ou ao ser convidada a falar.

Se qualquer pessoa pode falar a qualquer momento, há uma grande chance de falarem ao mesmo tempo, o que pode estimular uma competição por território no espaço de interação.

O modo pipocada geralmente é útil para que as pessoas possam fazer perguntas a uma única pessoa que vai responder. Também é útil quando a intenção é deixar o papo fluir e se estruturar de forma mais espontânea, num fluxo natural.

Já o modo rodada pode ser utilizado toda vez que você quer oferecer um espaço onde todos têm uma chance de falar se quiserem.

O modo rodada normalmente é anfitriado por alguém que vai convidar as pessoas a se manifestarem, uma de cada vez.

O convite pode ser substituído por um “bastão da fala”, que é basicamente qualquer objeto acordado pelo grupo para indicar que a pessoa que possui o objeto pode falar sem interrupções.

Desta forma, respeitamos dois princípios básicos de conversas generativas:

1. Apenas uma pessoa fala por vez.

2. Todos devem ter o direito de ocupar espaço de fala e a possibilidade de exercer esse direito sem medo.

Rodadas Intencionais

As rodadas são extremamente versáteis para explorar assuntos variados com perspectivas diferentes. Você pode definir uma intenção para a rodada e colher muita coisa legal. Aqui estão alguns exemplos de enquadramento de rodadas.

Reação: rodadas de reações sobre propostas onde as pessoas podem se manifestar livremente sobre o que está sendo proposto.

Otimismo: rodadas onde as pessoas só podem se manifestar de forma otimista sobre algo.

Pessimismo: rodadas onde as pessoas só podem se manifestar de forma crítica, investigando o que poderia dar errado sobre alguma ideia.

Sentimento: rodadas onde cada pessoa partilha como se sente a nível emocional sobre algum assunto.

Criativas: rodadas onde as pessoas são convidadas a gerar ideias sobre algum assunto.

Ao utilizar a rodada com uma intenção pré-definida é possível convidar todas as pessoas a olharem para um assunto pela mesma ótica, evitando discussões entre pessoas que estão usando lentes diferentes.

Pessoas que normalmente não utilizariam alguma dessas lentes também são convidadas a olhar para alguns temas com outra perspectiva.

Esses são apenas alguns caminhos que mostram como as conversas podem ganhar diversos contornos ao desenhar uma estrutura intencional, explícita e consentida.

Levando as rodadas para as suas conversas

Você pode começar a praticar rodadas agora mesmo. Aqui estão algumas ideias práticas para fazer isso.

Situação #1: Você não tem autoridade para mudar a estrutura das conversas e gostaria de explorar algum caminho mesmo assim.

Neste caso você pode propor um acordo e obter o consentimento das pessoas.

Aqui está um exemplo de acordo que pode ser proposto: “Toda vez que alguém quiser dar a possibilidade de todas as pessoas presentes se manifestarem sobre algo basta anunciar que gostaria de fazer uma rodada”.

Você também pode simplesmente propor uma rodada sem qualquer acordo e ver o que acontece.

Situação #2: Você é uma pessoa encarregada por facilitar uma reunião ou desenhar processos e rituais para a organização.

Se você já tem autoridade para facilitar a reunião, é só observar com atenção os momentos em que pode ser interessante propor uma rodada. Geralmente quando alguém traz uma proposta que mexe na estrutura organizacional, que trás um projeto novo ou uma ideia maluca, é interessante utilizar este arfefato.

Escrever um acordo como o que foi apresentado acima pode ser uma forma simples de escalar o artefato para diversos espaços de interação na organização.

Recomendações ao utilizar rodadas

Não tente utilizar rodadas à força. Assegure-se que as pessoas consentiram com o uso do artefato.

Rodadas com grupos grandes (> 12 pessoas) podem levar muito tempo. Considere quebrar os grupos se for o caso.

Fazer muitas rodadas seguidas pode ser entediante. O modo pipocada também é importante.

Nem todo mundo precisa falar alguma coisa numa rodada. Tá tudo bem ficar em silêncio.

Desenhando espaços de interação generativa

O modo rodada é apenas um exemplo de intervenção estrutural em sistemas sociais que pode estimular a participação das pessoas de forma mais equilibrada. É bastante poderoso, mas não é uma bala de prata.

As rodadas não vão resolver o problema de segurança psicológica da sua organização.

As estruturas de poder vão muito além dos fatores que abordamos aqui e precisam ser consideradas para desenhar intervenções efetivas nesse sentido.

Não é só porque agora você tem a possibilidade de oferecer um espaço para que todos se expressem que as pessoas vão ocupar esse espaço. Achou que ia ser fácil assim? :P

Fatores como a cadeia de comando, a luta de classes e questões históricas do contexto influenciam e muito a disposição das pessoas para se manifestarem. Isso sem falar dos problemas pessoais que elas têm além do trabalho.

É certo que o design de conversas é muito relevante para intervir em aspectos culturais que reforçam a cultura do medo e a dócil subordinação dos corpos à divisão do trabalho. Ao inserir pequenas mudanças na estrutura das interações entre os indivíduos de uma organização, nós podemos observar grandes impactos no fluxo de informação, processos de inovação, tomada de decisão e na segurança psicológica das pessoas.

Utilizar rodadas e outras abordagens de design de conversas é como jogar um jogo colaborativo onde quem ganha é a qualidade da comunicação.

Toda vez que um grupo usa um artefato desse ganha 5 pontos de compreensão mútua e 10 pontos de representatividade.

Mas não é o suficiente por si só para transformar as relações de subordinação nas organizações. Tudo bem, né? Não dá pra ter tudo de uma vez.

Existem várias tecnologias sociais que podem auxiliar no design de conversas. Deixo aqui algumas delas para que você possa pesquisar e ganhar mais vocabulário neste campo:

Este panfleto é um convite para que você também atue como uma pessoa designer de conversas, que sai por aí experimentando mudanças nas estruturas sociais a fim de estimular a emancipação das relações.

Obrigado por ler até aqui. :)

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Sobre o(a) autor(a): Ravi Resck

Ravi é um hacktivista social, atuando também como facilitador, designer organizacional e mapeador de sistemas sociais. Se dedica ao estudo de metodologias colaborativas e à complexidade dentro dos contextos organizacional, relacional e ambiental. Sua experiência se estende de empresas de todos os portes até cooperativas e associações do 3° setor, tanto no Brasil como em cenário global. Ademais, Ravi tem um histórico de envolvimento com Organizações Autônomas Descentralizadas (DAOs), no mapeamento de redes sociais em organizações de grande escala e na criação e manutenção de comunidades de prática dentro e fora de empresas.

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