Em nosso trabalho com organizações com muita frequência fazemos escolhas ao propormos intervenções ou experimentos que se repetem ou possuem algo que se assemelham. Essas estratégias simples e recorrentes são chamadas de heurísticas. Não posso negar a existência delas, mas antes de descrevê-las preciso fazer um preâmbulo de cunho acadêmico.

O campo de estudos sobre como o ser humano toma decisões começou a passar por um processo de transformação quando o polímata Herbert Simon na década de 50 cunhou termos como Bounded Rationality (Limitação da Racionalidade) e Satisficing (Satisfazimento), proposições essas que já abalaram a confiança na Teoria Racional da Escolha (RCT), até então preferida por economistas que sonhavam com seres humanos fazendo escolhas para maximizar vantagens e equilibrar custos e benefícios (aquele homo economicus que nunca existiu).

Alguns anos depois, os artigos e o trabalho seminal de Tversky e Kahneman, que serviu de ponto de partida para outros prêmios Nobel, descreveu um ser humano que fazia uso recorrente e quase irresponsável de vieses e atalhos cognitivos. No famoso best-seller Rápido e Devagar eles citam um “proeminente psicólogo alemão” que fazia persistentes críticas ao trabalho e teorias apresentadas no livro.

Gerd Gigerenzer é o nome do alemão que defende o uso de heurísticas e propõe algo que ele chama de Racionalidade Ecológica (inspirada na Racionalidade Limitada do Simon). Ela surge quando manejamos a adaptive toolbox (caixa de ferramentas adaptativa) da mente para uma situação particular, assim, estratégias simples e heurísticas se destacam ao explorar os padrões confiáveis do mundo.

As heurísticas não são boas ou más, “tendenciosas” ou “imparciais” por si mesmas, mas apenas em relação ao ambiente em que são usadas. No nosso caso estamos tratando de ambientes ou contextos que surgem no trabalho como agentes de mudança e designers organizacionais.

Agora posso começar a listar as heurísticas que emergiram ao longo desses cinco anos de Target Teal ajudando centenas de organizações.

Torne fluxos de trabalho mais visíveis

Quando o trabalho é intangível e feito por muitas pessoas, com relações de dependências sequenciais ou recíprocas, o fluxo das atividades que geram valor pode não estar visível a todos os envolvidos.

Para quem tem mais poder e influência essa opacidade costuma ser benéfica. Gera a ambiguidade que é aproveitada com as famosas “carteiradas” que tornam uma tarefa ultra urgente por motivos que não podem ser questionados. A opacidade permite ignorar com facilidade a “não priorização” que leva ao infinito a quantidade do que chamamos de trabalho em progresso (WIP).

A visibilidade pode gerar desconfortos, mas a luz do sol costuma ser um ótimo desinfetante.

Promova o uso de acordos explícitos

Seguindo uma linha semelhante, percebemos que a colaboração em escala (mais do que 4 pessoas) e assíncrona (em diferentes tempos e locais), depende de acordos explícitos e não apenas conversas e combinados verbais em uma mesa de café.

Os traumas vividos por pessoas que já sofreram em grandes empresas lentas e engessadas faz com que algumas pessoas sintam medo de colocar no papel algum acordo sobre expectativas e autoridade. A tragédia fica completa quando algumas pessoas exploram a ambiguidade deixada pela falta de acordos para manipular ou fazer uso do cargo para continuar vivendo como uma criança mimada.

Bons acordos explícitos (não adianta achar que qualquer acordo é bom) criam as condições para diminuirmos ambiguidade e colaborarmos de maneira mais fluída.

Avalie criticamente toda “melhor prática” de gestão

Quase toda prática que vemos por aí tem um lugar onde ela faz sentido. Onde ela resolve mais problemas do que cria. Porém, um viés comum comum é confundir popularidade com eficácia. Não raro, “melhores práticas” só são boas em contextos muito específicos e os problemas que elas causam são ignorados por não terem uma relação causal direta e simples ou por acontecerem com atraso, meses ou anos de serem adotadas.

A busca e identificação desses antipadrões tem acompanhado o nosso trabalho desde o início. Uma intervenção poderosa costuma ser simplesmente parar de fazer aquilo. Em alguns casos, pode significar encontrar outras práticas, mas em outros apenas o “não fazer” já é suficiente. Exemplo, que tal parar de fazer avaliações de desempenho usando o nine box?

Aproveite rituais para mudar hábitos, comportamentos e cultura

A presença e influência de rituais nas organizações é geralmente subestimada. Reuniões regulares de times, avaliações de desempenho, momentos de integração, desligamento de funcionário e celebrações são só alguns exemplos.

Os rituais possuem um caráter funcional ao mesmo tempo simbólico. Um ritual, portanto, faz a mediação entre as ações individuais, crenças e normas sociais, reunindo forças potencialmente opostas dentro da comunidade. (Islam, 2009)

Criar, alterar ou abolir um ritual são intervenções poderosas que propomos com frequência em nossos trabalhos. Muitas vezes, propomos o uso de scripts de interação, como na tecnologia social O2.

Não caia na falácia do G.I. Joe

Quando identificamos comportamentos e crenças que precisam mudar, precisamos evitar a falácia do G.I. Joe, um desenho de década de 80 que terminava cada episódio com a frase: “- Agora você sabe, e saber é metade da batalha”. Infelizmente isso não costuma ser verdade.

Muitas de nossas ações no dia-a-dia não podem ser mudadas apenas com o conhecimento de que elas precisam mudar. O ambiente e contexto precisam ajudar. Se nada ao meu redor mudar, o desafio pode ser muito maior ou até impossível.

Uma outra forma de entender esse fenômeno é por meio da diferença entre a teoria-em-uso e teoria-proclamada de Chris Argyris. Além de alterar incentivos e “contextual cues”, uma boa saída é imaginar intervenções que ofereçam experiências que podem ajudar as pessoas a identificar as incoerências que existem entre suas duas teorias de ação e praticar novas estratégias que materializam suas teorias-proclamadas.

Cuide do campo relacional para permitir o trabalho no campo organizacional e vice versa

Em uma organização experienciamos um “umwelt”, ambiente ao redor ou entorno. Porém descobrimos em nosso trabalho que esse ambiente que vivenciamos pode também ser dividido em dois campos, o organizacional e o relacional (uma divisão didática, mais do que tudo). O organizacional é onde tratamos de tarefas, projetos, estrutura organizacional, etc. O relacional é onde nos encontramos como seres humanos, sentimos e tratamos de nossos afetos, emoções e necessidades mais fundamentais.

É uma divisão feita para facilitar o desenho de intervenções, então não busque no dia-a-dia classificar cada experiência desse jeito. Porém, uma intervenção que pode funcionar muito bem no campo relacional pode ser um desastre para tratar tensões no campo organizacional. Identificar isso é muito importante.

Outra coisa fundamental é reconhecer a interdependência entre esses campos. Ao não cuidarmos do campo organizacional estressamos o campo relacional, ao não cuidarmos do campo relacional não criamos uma base sólida de confiança e empatia para que o campo organizacional mantenha-se saudável.

Crie condições para as pessoas tratarem suas próprias tensões

Cada pessoa em uma organização sente tensões. Em organizações que usam e abusam da cadeia de comando é comum com o tempo algumas pessoas se tornam insensíveis e altamente desengajadas. Ou elas param de sentir tensões ou elas desistem de tratá-las. Junto com isso, a pessoa não se reconhece no produto final de seu trabalho, é o que Marx chamou de alienação.

Estruturar uma organização sem depender da cadeia de comando parece distante da realidade de muitos, apesar de ser o nosso desafio diário. Trabalhar com autogestão passa fundamentalmente por criar espaços para as pessoas tratarem de suas tensões. E isso pode passar por distribuir autoridade por meio de acordos e criar rituais que fortaleçam esse princípio.

Outras condições podem se fazer necessárias para que as pessoas tratem de suas próprias tensões. Identificá-las e atuar de maneira incansável para criá-las é uma importante heurística.

Inverta o erro fundamental de atribuição

Essa é uma heurística para evitar o desenho de intervenções que focam exclusivamente na mudança de atributos individuais. O erro fundamental de atribuição descreve a tendência que temos em atribuir falhas ou desvios de comportamentos dos outros às suas características individuais e não ao contexto onde eles estão.

Aqui nós preferimos inverter e errar para o outro lado. Forçamos a barra para atribuir o comportamento ao contexto. Se errarmos, e vamos errar, nosso erro será para o lado oposto. Por isso não gostamos de intervenções que buscam avaliar ou mudar o indivíduo, como se o problema estivesse concentrado nos atributos individuais.

Não se preocupe com uma visão de futuro compartilhada por todos

Existe uma crença bem popular de que para uma organização funcionar as pessoas precisam compartilhar a mesma visão. Para nós, isso seria quase o equivalente a dizer que as pessoas precisam sentir as mesmas tensões. O que seria desproposital. Claro que em algum nível ultra-mega abstrato e vago, as visões de futuro podem se assemelhar. Mas quando tratamos daquilo que está à nossa volta, estamos imaginando futuros bem distintos. E essa diversidade de visões não é necessariamente um problema.

Investir um tempo e energia gigante para descrever propósito e construir declarações de visão não é nossa praia. Preferimos colocar energia para tratar das tensões que emergem na nossa relação com o presente. E nesse processo paulatino e contínuo uma direção vai se construindo. É isso que propomos para muitas organizações. Falar do futuro é bom e até divertido. Só não podemos preterir o presente.

Como usar as heurísticas

Tenho dúvidas se essas heurísticas que descrevi aqui podem ser usadas sem o acúmulo das experiências que as formaram. Desconfio que existe algo além da leitura e do estudo. Talvez as heurísticas que descrevi sejam como as manchas de tinta de Rorschach, cabendo a você inferir o significado que desejar.

Mesmo assim, o esforço em descrevê-las não é inútil, pois aponta caminhos possíveis para você experimentar e construir as suas próprias heurísticas. Não estou propondo simplesmente o uso de atalhos, mas o desenvolvimento de um faro, um instinto que pode te ajudar na compreensão e no desenho de intervenções em organizações. Boa sorte e se precisar de ajuda, estamos por aqui.

Referências

GIGERENZER, Gerd; SELTEN, Reinhard (Ed.). Bounded rationality: The adaptive toolbox. MIT press, 2002.

TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgment under uncertainty: Heuristics and biases. science, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974.

GIGERENZER, Gerd. Gut feelings: The intelligence of the unconscious. Penguin, 2007.

ISLAM, Gazi; ZYPHUR, Michael J. Rituals in organizations: A review and expansion of current theory. Group & Organization Management, v. 34, n. 1, p. 114-139, 2009.

LEE, Michael Y.; MAZMANIAN, Melissa; PERLOW, Leslie. Fostering positive relational dynamics: The power of spaces and interaction scripts. Academy of Management Journal, v. 63, n. 1, p. 96-123, 2020.

ARGYRIS, Chris. Theories of action that inhibit individual learning. American Psychologist, v. 31, n. 9, p. 638, 1976.

MALLE, Bertram F. The actor-observer asymmetry in attribution: A (surprising) meta-analysis. Psychological bulletin, v. 132, n. 6, p. 895, 2006