Nesse texto pretendo fazer uma análise crítica de padrões e práticas da Sociocracia. Peço desculpa, pois vou abusar do jargão e termos técnicos. Alerto que se você não tem conhecimento básico sobre o tema, considere fazer um curso com o pessoal da Sociocracia Brasil. Entender e praticar sociocracia pode ser muito importante e trazer vários benefícios para você e sua organização.

Preciso também dizer que as pessoas que estão envolvidas com sociocracia no Brasil são muito queridas, generosas e inteligentes. De maneira nenhuma estou criticando esse grupo, e mesmo minha análise técnica, aponta apenas alguns problemas em uma tecnologia social que é muito maior do que os pontos que trato aqui. Meu intuito é abrir uma conversa e contribuir com a evolução das práticas de autogestão.

Minha última ressalva: a minha perspectiva principal é do uso da Sociocracia e S3 em organizações. Algumas das minhas críticas podem perder sentido quando estamos falando em grupos sociais que não se encaixam na categoria organização (strictu senso), tais como comunidades, ecovilas, redes, etc.

Criticando Construtos

Construto é um conceito teórico não observável, que possui uma definição clara e um embasamento empírico dentro de um campo de prática ou ciência. Muitas vezes a palavra usada no construto, exemplo “círculo” é também utilizada na linguagem comum, porém dentro de uma linguagem de padrões ou tecnologia social ela ganha uma definição e uso específico.

Quero propor um olhar crítico para dois construtos dentro da sociocracia. O Driver e o Domínio.

Driver na Sociocracia 3.0

O driver é um construto pesado para o uso na maioria das organizações. Em outras palavras ele torna alguns processos e reuniões mais lentos sem necessariamente gerar valor suficiente. O Driver é usado para várias funções na Sociocracia 3.0: Ele pode entrar no lugar de um propósito de um círculo ou na hora de apresentar uma tensão. No texto do ebook “os 10 pilares de uma organização sociocrática” o driver é definido:

“ A motivação para agir vem da tensão criativa entre a realidade atual e a realidade desejada. Nós damos clareza a essa tensão ao descrever como um driver, explicitando o contexto observável e as necessidades que emergem nesse contexto e que queremos cuidar nesse contexto.”

Ao usarmos esse construto com frequência abrimos uma licença para pessoas prolixas apresentarem um contexto muito maior do que o necessário, sem falar que muitas vezes busca-se o registro de todos os drivers citados em uma reunião, o que gera mais trabalho para o secretário.

Existem algumas condições onde o uso do driver como proposto pela sociocracia pode ser útil:

  • Um grupo ou círculo que se reúne de maneira pouco frequente (15 dias ou mais), o uso do driver pode ser importante, pois descreve e registra a tensão com riqueza de detalhes, até para ser lido por quem não estava na reunião.
  • Um grupo onde não há definição clara de quem é membro, ou o propósito é ainda vago. O driver também se mostra útil nesse caso, pois facilita a identificação de tensões desconectadas do propósito do grupo.
  • Um grupo social onde a separação entre o espaço organizacional e tribal é difícil de ser feita, (como no caso de comunidades) e portanto ter mais contexto e informações ajudam as pessoas a navegarem com as tensões de diferentes espaços no mesmo processo.

Só que essas condições são muito raras em uma organização e podem muitas vezes ser resolvidas sem apelar para o construto driver.

Minha experiência tocando reuniões que não fazem o uso do driver, mas apenas pedem para as pessoas trazerem sua tensão de maneira rápida, já com seu pedido ou proposta acoplado, é de processar dezenas, chegando a 50 tensões em menos de uma hora. Claro que são tensões relacionadas ao trabalho diário das pessoas, advindas do espaço organizacional em uma reunião semanal de um círculo com propósito claro. Se fossemos usar o driver, não teríamos essa agilidade no processamento.

Se a preocupação é eficácia, lembre-se que sempre podemos pedir para as pessoas trazerem, se necessário ou se elas quiserem, mais informações e contexto sobre a tensão. Repetir esse processo (declarando e registrando o driver) de maneira ritualística usa algo muito valioso, que é o tempo.

Domínio na Sociocracia

O construto domínio já foi motivo de longas conversas que tive com meus colegas da sociocracia. Lembrando que essa mesma palavra tem significado muito diferente na Holacracia. Na S3 e na Sociocracia, domínio é:

“Uma instância distinta de autonomia, influência e responsabilidade da organização. O escopo e os limites dessa autonomia são definidos no contexto do driver.”

Acredito que usar o construto Domínio como definido pela Sociocracia é uma barca furada.

Trabalhamos com autogestão para, entre outras coisas, dar por meio do design organizacional condições paras as pessoas exercerem autonomia no ambiente de trabalho. Essa tão desejada autonomia precisa ser o ponto de partida.

Por isso no O2 existe uma frase engraçada, mas que deixa claro isso: Tudo que não é explicitamente proibido, é permitido. Assim partimos de uma base onde a autonomia é máxima, porém limitada na interação entre os elementos da estrutura organizacional: Regras, papéis, acordos, restrições, círculos, rituais, etc.

Ao utilizar um elemento extra (Domínio) para nomear essa autonomia eu estou tentando reduzir a uma frase ou palavra algo que envolve muitos elementos dinâmicos.

A pergunta: “Eu posso tomar essa decisão?” não pode ser respondida apenas com: “É parte do seu domínio?”. Um melhor jeito de responder seria: “Existe hoje alguma regra, restrição, artefato ou acordo que impede ou cerceia o seu direito de tomar essa decisão? Se não existe, vá em frente.” Parece mais difícil, mas não é. Difícil é definir escopo e limite de autonomia de uma pessoa ou círculo, por meio de uma só palavra ou frase.

Sobre a influência e responsabilidade citada na definição acima, acredito que influência é algo mais intangível e não restringi-la ou descrevê-la é mais simples. E a responsabilidades já estão descritas dentro de cada papel e círculo.

Portanto temos um construto que aplaca nosso desejo por resumir algo dinâmico, complexo e vivo como autonomia em uma frase, mas engana-se quem acredita no que ele diz.

Armadilhas nas práticas

Precisamos olhar como as tecnologias sociais são utilizadas na vida real, pois é lá que podemos ver o quanto elas podem ter efeitos não intencionais. Quando existem frequentes abusos ou usos não previstos das práticas que geram muitos efeitos indesejáveis, podemos entender que na própria concepção da prática existe algo errado: uma armadilha.

Vou citar alguns que parecem importantes no caso da Sociocracia.

Panaceia dos Círculos

Usamos a palavra círculos para definir construtos em Holacracia, O2 e Sociocracia. E fazemos isso pois ela tem um forte poder simbólico. Nos reunimos em círculos há milênios. Porém esquecemos de que esse mesmo poder, gera uma atração, quase que automática por criar círculos. Mesmo quando não precisamos deles.

Esse é um fenômeno que ocorre nas outras abordagens semelhantes. Mas na Sociocracia, me parece que ele acontece com mais frequência. Muito comum criarem um círculo para dar foco a um trabalho, para concentrar energia ou distinguir no desenho da organização, uma área de outra. Mas isso tem um custo. Toda vez que criamos um círculo, criamos mais reuniões regulares. Isso demanda tempo e energia. Além disso, apesar do círculo não ser uma forte barreira à interação, ele atrapalha um pouco o fluxo colaborativo. Vou dar um exemplo.

Hoje na Target Teal somos em quatro pessoas. Temos cerca de 35 papéis, todos em um único círculo. Se fossemos em frente com o fetiche de criar círculos internos, teríamos pelo menos 4 com os seguintes nomes: marketing, workshops, consultoria e o círculo geral. Teríamos 4 reuniões por semana (urgh) ou uma reunião por mês de cada círculo (frequência baixa). Além disso teríamos 4 planilhas de métricas. E o Marco Baron, que por exemplo não está em nenhum papel de marketing, perderia a oportunidade de ouvir e até opinar nas questões corriqueiras da área.

Claro que existem reuniões que não são de círculo. Elas existem para diferentes papéis trabalharem juntos em projetos. Mas são reuniões “ad hoc” e não regulares. Não precisamos criar um círculo para termos reuniões! Ainda bem! Criamos um círculo apenas para diminuir o tamanho de uma reunião regular. Como ainda somos 4 pessoas, não criamos. Isso só deve acontecer depois que ultrapassarmos 8 pessoas, ou quando alguém trouxer uma tensão relacionada.

Quando evitamos usar os círculos como um remédio para todos os males, deixamos de criar instâncias decisórias desnecessárias (quanto menos menor) e não erguemos barreiras para o fluxo de informação e interação. Fica todo mundo por dentro do que está acontecendo.

Você pode estar pensando: Ah, mas tem círculo que não toma decisões de governança e nem tem reuniões regulares nos moldes da Sociocracia. Ué, então será que não vale chamar de outra coisa para não confundir?

Consentimento em excesso

Buscar consentimento é algo muito querido para a Sociocracia. Eles que inventaram esse modo de decisão. Kudos para eles. Porém é comum o exagero. Buscam consentimento para a pauta da reunião. Consentimento para uma estratégia ou qualquer decisão que impacte outros círculos. E até para decisões diversas que no máximo um aconselhamento daria conta.

O resultado disso é simples. Tempo desperdiçado e possíveis frustrações na hora de lidar com objeções frequentes. Consentimento é um método decisório que costuma custar menos se comparado ao consenso. Mas ele ainda custa. Ainda mais quando não se tem critérios objetivos para validação de objeções que é o caso da Sociocracia.

Para mim, o máximo de confiança dentro de uma organização é entregar o poder de uma decisão para um indivíduo que está em um papel específico. Sem exigir que ele peça consentimento. É no exercício dessa autonomia que me sinto libertado e vejo meus colegas voando baixo. Lido com meus medos e receios.

Na Target Teal quando alguém pede consentimento sem uma razão explícita (algo que está pré-acordado), costumamos chamar a atenção para isso. Voe! Acredite, tome uma decisão. Se der pau, ok. Não controlamos o mundo, só podemos aprender com ele.

Comece por onde quiser

Um argumento comumente usado para promover a Sociocracia é que ela é flexível. Inclusive na sua implementação. Você pode começar por onde quiser, escolher um padrão ou prática que faça sentido e adotar. É um argumento sedutor, porém esconde algumas armadilhas. A primeira é que isso pode tornar todo o processo bastante difícil de navegar, especialmente na S3 com sua infinidade de padrões.

Em momentos de transição, as organizações precisam tomar muito cuidado com o padrão que elas vão introduzir. Primeiro porque existe uma alta interdependência entre alguns padrões. Ou seja, não adianta fazer um, se não fizer o outro junto ou antes. Um exemplo que já vi foi uma organização trazer um processo de avaliação individual, sem antes criar papéis ou cuidar do espaço relacional. Não preciso dizer que foi um desastre. Nessa hora as pessoas repetem o mantra: sabia que a Sociocracia não funcionaria aqui.

Outra questão importante é que às vezes é preciso seguir a via negativa de Nassim Taleb. Ou seja, subtrair e não somar. Parar com algumas práticas é fundamental, antes de começar outras. Mas a mensagem de que você pode começar por onde quiser, não deixa claro que você tem na sua frente um sistema vivo altamente complexo, e que a adoção de práticas não é algo trivial.

Por isso eu gosto do caminho que escolhemos com o O2, onde consideramos algumas coisas mais essenciais que outras. Assim alertamos os iniciantes sobre a adoção indiscriminada de práticas e compartilhamos um pouco do caminho que já trilhamos.

Não jogue o bebê fora com a água

O mais importante é que essas armadilhas são possíveis de serem evitadas. Esses dois construtos podem ser repensados ou usados em condições especiais apenas.

Se você é um praticante da Sociocracia, está na sua mão adaptar e evoluir sua prática. Se você está conduzindo a difusão e evolução da S3 e Sociocracia no Brasil, pense como você pode ser protagonista nesse processo evolutivo.

Espero ter contribuído. Se quiser conversar, fazer um contraponto ou trazer seu relato, por favor, não hesite e comente abaixo.


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Sobre o(a) autor(a): Rodrigo Bastos

Rodrigo é facilitador e designer organizacional. Formado em Engenharia de Materiais pela POLI-USP. Atuou por mais de 10 anos na criação e condução de programas de desenvolvimento de times e líderes utilizando a educação experiencial como método. Já foi engenheiro e gestor. Apaixonado pelo trabalho com organizações, hoje ele acredita que atuando no sistema social e não nas pessoas, consegue contribuir mais e ser muito mais feliz.

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