Existe uma brincadeira que rola na comunidade de pessoas que praticam e trabalham com métodos ágeis.
“O framework Scrum é uma droga de entrada para times e organizações que estão começando no universo da agilidade.”
Nos últimos anos ficou visível a popularização da agilidade em organizações de setores variados e o Scrum sendo utilizado por times que não desenvolvem software. E hoje tenho uma convicção:
“O Scrum é a pior droga de entrada para times que não atuam com software.”
Vamos analisar algumas crenças ou argumentos usados por empresas e consultores que apostam no Scrum como um bom caminho para iniciantes e times de todos os tipos.
Scrum permite a resolução de problemas complexos
Fico feliz quando percebo que conceitos e ideias relacionados à Complexidade são disseminados. O modelo Cynefin, de Dave Snowden, que ficou famoso a partir de um artigo da HBR de 2007 foi um desses. A comunidade ágil abraçou e se apaixonou por ele, pois o timing era perfeito, já que muitos times de desenvolvimento de software precisavam justificar o porquê deles abandonarem práticas de gestão de projetos baseadas no PMBOK. Apesar do manifesto ágil ter já 6 anos, aprovar o uso de métodos ágeis em grandes empresas era um feito e tanto.
Surgiu um argumento “científico”.
No desenvolvimento de software os problemas são complexos e não apenas complicados como nas outras engenharias e isso demanda o uso de novos métodos que conseguem lidar com essa complexidade.
Existe um grande problema com esse argumento. Em todos os contextos onde as engenharias atuam, existem problemas complexos e complicados misturados ou interligados. Até hoje não conheci um contexto ou campo de trabalho onde só existem problemas complexos ou complicados, usando a categorização proposta pelo Cynefin.
Então a dificuldade em aplicar os métodos do PMBOK no desenvolvimento do software estão relacionadas a várias diferenças entre os dois contextos, software e engenharia civil ou mecânica. Só para dar um exemplo, no software o custo de mudança no projeto ou produto pode ser minimizado ou chegar quase a zero, enquanto que na engenharia civil, uma mudança na fundação de um prédio que já está na fase de acabamento é impossível.
O que esse argumento fez foi explorar o ego para difundir o Scrum. Nós como seres-humanos buscamos a todo momento construir narrativas que fortalecem uma auto-imagem positiva. Somos especialistas em contarmos histórias para nós mesmos que evidenciam o quanto somos competentes e bondosos.
Trazendo aos dias atuais: A maioria das pessoas consegue encontrar um aspecto do seu trabalho que pode ser classificado como complexo. E buscamos isso, pois somos inteligentes, lembra? Se precisamos ter uma empresa ágil e responsiva, precisamos de métodos que cuidem dessa complexidade. Pronto! Achei o Scrum! “ Não importa que vendemos parafusos. Nosso time de vendas faz uma venda técnica e complexa.”
Não entender as diferenças entre contextos (desenvolver software vs. vender parafusos) é cometer um erro tão crasso quanto usar métodos de engenharia mecânica e civil no desenvolvimento de software.
Scrum é bom, pois permite você seguir o caminho Shuhari
Na aprendizagem e maestria de artes marciais existe um conceito chamado Shuhari. A ideia é que na jornada de desenvolvimento o aprendiz precisa primeiro seguir as regras (Shu) por um tempo, depois quebrar as regras (Ha) para só depois superar as regras (Ri).
Faz sentido, ainda mais para artes marciais. O principal problema quando usamos o argumento de que o Scrum permite o Shuhari é quando você tem um contexto onde o framework Scrum não oferece um conjunto de práticas tão úteis.
Tente aprender a usar uma chave de fenda ao fixar pregos em uma tábua. Aplicar o Shuhari quando você tem uma ferramenta que não funciona, não te permite aprender a usá-la. Você vai aprender muito pouco sobre agilidade se ficar fazendo os rituais do Scrum e não perceber que eles pouco geram valor em seu contexto.
Já vi times rodarem sprints de 30 dias tendo ao final apenas 3 cards finalizados com itens que não geram valor para o cliente. Mas esse absurdo acaba sendo encarado como parte da “metodologia” que é nova e que eles estão aprendendo. Na retrospectiva todos se parabenizam pois cumpriram tudo que estava no backlog da sprint. É o efeito Dunning-Kruger em potência máxima.
A aprendizagem fica mais prejudicada quando a pressão por seguir o novo método vem da diretoria e C-level. Todos sabem como fazer um teatro e dizer como o método (Scrum) tem ajudado, pois é isso que é esperado de um profissional que está pronto para atuar em uma “empresa ágil”.
Se queremos aprender mais sobre agilidade na prática, precisamos de métodos que fazem sentido para o contexto que vivemos. Testar novos métodos é ótimo, mas quando eles criam uma sensação de novidade sem gerar real valor, caímos com facilidade na armadilha de achar que agilidade é colar post it na parede. É o “fake agile” inocente, quase pueril.
Vamos investir em cursos para termos uma equipe capacitada e pronta para a transformação ágil
Se existe pressão para as organizações serem mais ágeis, é compreensível que muitas recorram aos caminhos conhecidos. Ouvimos com frequência o “Vamos treinar e certificar o máximo de pessoas para que todos estejam prontos”. É gritante a total falta de visão sistêmica. Não estou dizendo que cursos e workshops são inúteis. Ok, eles são inúteis quando são a principal ou única estratégia para transformar uma organização.
Pior ainda quando existem indústrias de certificação. Aí entramos em um grave conflito de interesses. Para a empresa que se sustenta vendendo certificados o interesse é agradar o cliente a qualquer custo sem se preocupar com os efeitos no longo prazo de tal estratégia. É assim que cursos e certificados vão perdendo valor de mercado quando uma metodologia deixa de ser cool. (Escolha aqui seu exemplo)
O mercado de cursos Scrum já entrou nessa barca furada. Milhares de cursos e certificações estão disponíveis. Alguns caça-níqueis, cuidado. Mesmo os melhores cursos quando são vendidos sem critério para incautos profissionais e empresas que não trabalham com tecnologia costumam gerar um impacto pífio ou desastroso.
A oferta de certificações aumenta a atratividade do Scrum, e muitas organizações acabam sendo seduzidas por esse canto da sereia.
O Scrum promove a melhoria contínua e isso é que importa
O último argumento comum é que se um time começar a rodar o Scrum ele acabará encontrando maneiras de melhorar seus métodos de trabalho. Afinal, as retrospectivas servem para isso. Certo? Não é isso que acontece.
Como todo bom agilista sabe, a “retrô” é um ritual com um formato bem aberto para o time analisar e propor melhorias nos métodos de trabalho e nas interações. Mas ela só consegue gerar a tão sonhada melhoria contínua nos times de software quando existe interesse e expertise no time em práticas de engenharia de software e outras práticas ágeis.
As chances são diminutas de um time que sempre trabalhou com um gestor delegando tarefas operacionais e que não tem expertise no desenho e experimentação com novos métodos de trabalho de achar um caminho e promover a melhoria contínua. Eu chamo isso de “mito da cocriação”. Alguns esperam o “E fez-se o ágil” e spoiler: nada acontece. Apenas platitudes e frases de coach mequetrefe escritas em post its.
Se você é fã do Scrum, sei que é difícil ouvir isso. Saiba que me dá uma tristeza saber que tantos times estão entrando em contato com o ágil por meio do Scrum desse jeito que relatei.
Mas se o Scrum não é uma boa droga de entrada, qual é?
É bem provável que mesmo você não desenvolvendo software, a sua empresa esteja nesse momento apaixonada pela ideia de ser mais ágil. Ou pior, a diretoria ouviu falar do Scrum e acha que ele é sinônimo de agilidade. Não é apenas um framework, é o caminho.
Você agora foi amaldiçoado, pois tem dúvidas se o Scrum é uma opção válida para o seu time. Seria mais fácil se você tivesse uma alternativa para apresentar, não é?
Essa alternativa não vai se revelar tão facilmente. É preciso que você entre em contato com os obstáculos que impedem você e seu time de fazerem um trabalho incrível. É preciso de um olhar mais sistêmico. É preciso olhar para o fluxo e a natureza do trabalho. É preciso olhar para o propósito e composição do seu time. É preciso olhar para as interações, rituais, contornos, papéis, etc. Para te ajudar, criei uma lista de algumas coisas a serem observadas. (Não é uma lista completa, apenas o começo.)
- Qual é o tipo de interdependência entre as atividades realizadas pelo time?
- Qual é a facilidade em estimar o quanto as atividades e projetos vão demorar?
- Quanto o time depende de outros times para atingir seu objetivo ou propósito?
- Qual é o nível de dedicação das pessoas (estão alocadas full time, por exemplo)?
- Qual é a diversidade e variabilidade da demanda que o time recebe?
- Como a demanda chega até o time, por meio de uma pessoa que é ponto focal ou por várias pessoas que têm contato constante com um cliente ou stakeholders?
- Como são as relações hierárquicas e como a autoridade está distribuída hoje entre as pessoas do time?
- Como os rituais e reuniões que existem hoje ajudam ou atrapalham a geração de valor?
- Como diferentes processos decisórios acontecem, existe prevalência de groupthink?
- Qual é o grau de autonomia e propósito do time?
E mesmo depois de toda essa investigação, você vai precisar de repertório para poder escolher qual experimento conduzir. Isso não vem de uma hora para outra. E mesmo desenhando um bom experimento, vai precisar conduzi-lo com disciplina e cuidado para aprender com ele.
Não é um caminho fácil para quem está chegando na agilidade. Desculpe não oferecer uma droga de entrada. Fico te devendo.
Se você quiser uma ajuda da Target Teal para trilhar o caminho da transformação ágil, vamos conversar.
Parabéns pelo artigo Rodrigo. Muito bom. realmente Nada substitui o questionamento sincero e exercício de autocrítica para chegar nas causas raízes dos problemas e situações complexas que são vivenciados em diversos contextos.
Pensando aqui… (exercício de pensamento livre). Pode-se não chegar facilmente às causas raízes de sistemas complexos, já que são complexos e emergem do “caos” (Muitas variaveis-Sistemas Dinâmicos). Uma analogia seria: Assim como um vento que sopra de diferentes direções, e embora haja ventos predominantes, fica difícil prever onde se formará um furacão ou ciclone, ou mudanças repentinas de direção do vento (efeito borboleta). Restando assim, talvez, focar em aprender e dominar o manuseio das velas e leme da nau ou veleiro,e desenvolver também o instinto e intuição na arte de navegar no oceano da complexidade. : )
Interessante sua analogia. Aprofundando ela eu diria que existem padrões de ventos que podem ser identificados dependendo da geografia, região e condições climáticas. Nem todas as velas e embarcações (ferramentas e frameworks) funcionam em uma determinada condição. Conhecer as condições e possíveis padrões de vento e conhecendo marinharia de maneira mais ampla e profunda te permite escolher a melhor embarcação e conjunto de velas. O Scrum é só um conjunto de barco/velas e que não possui uso tão universal assim como alguns gostariam ou vendem.
Yes
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