Interagir com sistemas sociais é algo que fazemos todos os dias. No entanto, basta olhar ao nosso redor para ver que as soluções empregadas nas organizações e no governo parecem ignorar as relações entre questões estruturais que acabam contribuindo para que os problemas continuem aparecendo.

A discussão sobre onde e como intervir em sistemas sociais para gerar mudanças é uma investigação antiga, na qual muitos pensadores contribuíram com ideias ao longo do tempo. A abordagem apresentada neste texto, embora ofereça insights valiosos, reflete mais um marco histórico do que representa o estado da arte atual sobre intervenções em sistemas complexos.

Há um conjunto de autores no mundo do pensamento sistêmico que trabalharam bastante com a ideia do “iceberg” e pontos de alavancagem. Donella Meadows foi uma autora que divulgou bastante essas ideias, associadas principalmente à abordagem System Dynamics.

System Dynamics é apenas uma pequena parte do vasto campo do pensamento sistêmico e complexidade. Hoje temos formas diferentes de explicar a complexidade dos sistemas sociais.

No entanto, conhecer essa abordagem específica ainda pode oferecer insights relevantes, além de nos munir de uma perspectiva histórica da forma como esse assunto de intervenção em sistemas sociais foi mudando ao longo do tempo.

Neste texto, apresentarei o modelo do iceberg e os pontos de alavancagem mapeados por Donella Meadows. A intenção não é indicar soluções definitivas, e sim explorar uma lente que foi importante para o desenvolvimento do pensamento sistêmico, reconhecendo suas limitações atuais. Ao fim do artigo farei uma breve crítica à ideia de pontos de alavancagem, modelos mentais e o iceberg.

Por que pensar em pontos de alavancagem?

Partindo da premissa de que o observador sempre faz parte do sistema observado, mapear o “todo” exige um tremendo esforço para colher diferentes perspectivas e perceber quais são as forças que atuam num sistema.

Quando vamos fazer intervenções, temos que escolher pontos específicos no sistema para intervir. Existem incontáveis lugares dentro de um sistema complexo onde o que você fará terá efeito quase nulo; pior do que isso, os pontos que parecem ter o maior impacto são frequentemente aqueles com o menor efeito estrutural.

A transformação sistêmica requer intervenções em pontos de alta “alavancagem” para dissolver problemas complexos. Se essa força for aplicada em pontos de alavancagem baixos, ela será superada pelas forças da dinâmica inerente do sistema que surgem do emaranhado de feedback loops que ali estão presentes.

É importante lembrar que os pontos de alavancagem são contra-intuitivos. A alavancagem não se encontra nos pontos centralizados do maior poder manifesto do sistema, mas em níveis de abstrações diferentes. Ao invés de focar apenas nos fenômenos cotidianos observáveis, também olhamos para os fluxos de informação e pressupostos que suportam as estruturas do sistema.

Há uma proposta bastante conhecida para explorar esses diferentes níveis de abstração conhecido como “modelo do iceberg”.

O Modelo do Iceberg

Este é um modelo usado no pensamento sistêmico para ilustrar os vários níveis de abstração dos eventos observáveis aos padrões subjacentes que os geram, à estrutura de suporte e, em última análise, aos modelos mentais usados por uma organização.

Assim como com um iceberg, uma grande porcentagem do que está acontecendo em nosso mundo observável está “oculto” e este modelo tenta tornar isso explícito, descrevendo-o como uma série de camadas que ficam abaixo dos fenômenos observáveis do dia-a-dia.

Este modelo não apenas ilustra as diferentes dimensões de uma questão, mas também oferece uma visão sobre como promover a mudança com uma abordagem integral.

Mudar estruturas e influenciar modelos mentais tem um efeito mais amplo e de longo alcance do que reagir no momento e combater eventos distintos.

A abordagem sistêmica atua no campo dos modelos mentais e estruturas para influenciar padrões e eventos.

Respostas Sintomáticas

A metáfora do iceberg ilustra que alterar apenas os eventos superficiais, sem tratar as causas profundas, é como enxugar gelo. O problema persistirá, pois a maior parte permanece oculta abaixo da superfície.

Atuar na camada de eventos oferece, no máximo, soluções paliativas. São respostas sintomáticas que empurram o sistema em pontos de baixa alavancagem, resolvendo causas imediatas.

Isso pode funcionar temporariamente, mas em sistemas complexos essas soluções simplistas são ineficazes e insustentáveis. É preciso mergulhar mais fundo e tratar as estruturas subjacentes para promover uma transformação efetiva.

Eventos

Vamos pensar no iceberg. A ponta que aparece acima da água representa os eventos observáveis do dia a dia.

Os eventos são atividades ou fatos específicos que acontecem num determinado momento. Por exemplo:

  • O projeto X está atrasado novamente.
  • María pediu demissão ontem.
  • Houve uma briga na reunião de hoje.

Esses são marcadores que vamos presenciando no nosso cotidiano profissional ou pessoal. São os eventos que vemos e dos quais ficamos sabendo.

A maioria das pessoas acaba focando sua atenção apenas nesses eventos superficiais, sem considerar os padrões e causas subjacentes. É como pilotar no automático, reagindo ao que aparece na superfície dia após dia.

Mas esses eventos são apenas a ponta do iceberg. Para entender melhor o sistema, precisamos mergulhar mais fundo e explorar os padrões e estruturas que estão por trás desses eventos aparentes. Vamos ver isso mais adiante.

Padrões

Os padrões são tendências ou recorrências que indicam a presença de estruturas subjacentes. Por exemplo:

  • Todo ano, depois de 3 meses construindo o orçamento, percebemos que a alocação de recursos no ano seguinte foi inadequada.
  • Estamos perdendo cada vez mais profissionais talentosos para o mercado.
  • As reuniões de avaliação de desempenho sempre geram conflitos entre gestores e liderados.

Os padrões respondem a perguntas como “O que está acontecendo aqui?” Ou “o que está mudando?”

Quando fazemos afirmações como “todo ano, depois de três meses construindo o budget, percebemos que não prevemos de maneira adequada a alocação de recursos no ano seguinte” ” ou “estamos perdendo cada vez mais profissionais para o mercado”, são padrões que observamos a partir de uma série de relações entre eventos.

Quando chegamos ao nível do padrão, podemos quase antecipar alguns eventos e isso oferece as bases para desenvolver intervenções que podem afetar alguns arfetatos.

Isso nos ajuda a maximizar a nossa capacidade adaptativa em face aos desafios, mas não é o suficiente para intervenções que vão de fato dissolver as tensões.

Estrutura

A estrutura apoia,  cria e influencia os padrões que vemos nos eventos. As estruturas podem ser entendidas como as “regras do jogo”.

Ela pode ser explícita ou não; podem ser estruturas físicas, visíveis ou invisíveis. São regras, normas, políticas, diretrizes, estruturas de poder formais e informais ou distribuição de recursos que foram tácita ou explicitamente institucionalizadas.

Estruturas respondem a pergunta: O que pode explicar esses padrões? Quais são as forças que inibem ou estimulam esses padrões?

Pode não ser fácil ver a estrutura, mas os padrões que podemos ver nos dizem que a estrutura deve estar lá em algum lugar.

As estruturas são compostas de relações de múltiplas causas e efeitos. Por exemplo, a estrutura subjacente de um problema, como a dificuldade em terminar projetos , pode ser a falta de um limite acordado sobre quantos projetos simultâneos podemos assumir.

Mas se olharmos para as causas estruturais do excesso de projetos , podemos começar a considerar soluções de longo prazo que poderiam focar na adoção de práticas que dão visibilidade sobre o fluxo de trabalho, ajudam a visualizar gargalos, adotar e adaptar diversos acordos e políticas de maneira incremental e impedir que desmontar a cadeia de comando (o que envolve uma mudança de modelos mentais).

Quando começamos a olhar para as estruturas subjacentes, começamos a ver onde podemos mudar o que está acontecendo.

Não estamos mais à mercê do sistema no piloto automático.

Podemos identificar os artefatos culturais que estimulam determinados rituais, processos e começar a compreender melhor os pressupostos que suportam essas estruturas.

Modelos Mentais

Vamos ao nível mais profundo do iceberg: os pressupostos que sustentam tudo o mais.

As estruturas e padrões emergem a partir de suposições, crenças e valores dominantes em determinado sistema social.

Embora o termo “modelos mentais” seja problemático por parecer algo fixo e objetivo, a ideia central é válida: precisamos examinar os pressupostos subjacentes que permitem a perpetuação de certas estruturas.

Os pressupostos são como a “água em que nadamos”. Costumam ser implícitos, difíceis de perceber. Mas eles moldam nosso raciocínio e nossas ações.

Ao desenhar intervenções em sistemas complexos, é essencial revelar e questionar esses pressupostos. Eles formam os “ingredientes básicos” da cultura e sustentam as engrenagens de qualquer sistema social.

Embora os pressupostos não sejam estáticos, e sim dinâmicos e multifacetados, elucidá-los é fundamental para promover uma transformação significativa. Caso contrário, as antigas estruturas tendem a se perpetuar.

Uma crítica ao modelo do iceberg

Embora útil como introdução, o modelo do iceberg pode levar a uma compreensão falaciosa dos sistemas complexos.

Ao colocar os “modelos mentais” ou pressupostos na base, ele sugere que eles são a causa raiz de todos os problemas.

Os padrões, estruturas e pressupostos se retroalimentam de forma não linear e contínua. Não há uma hierarquia fixa, e sim uma rede dinâmica de influências mútuas.

Além disso, o modelo implica que, para transformar um sistema, basta alterar os pressupostos subjacentes. Mas eles são apenas um ponto de alavancagem, não uma panaceia.

Em sistemas complexos, mudar pressupostos arraigados é extremamente difícil. E mesmo quando isso ocorre, as estruturas e padrões tendem a perseverar devido à inércia do sistema.

O diagrama abaixo tenta oferecer uma perspectiva não linear desse modelo.

O caminho para a mudança

Uma vez que estabelecemos o chão para ver além da ponta do iceberg, podemos começar a explorar os pontos de alavancagem propostos por Donella Meadows.

A abordagem da Donella é essencialmente baseada numa perspectiva de System Dynamics(SD), que é apenas uma das várias abordagens do pensamento sistêmico.

Para compreender o básico da proposta de pontos de alavancagem vamos ter que entender melhor o que é esse negócio de System Dynamics.

System Dynamics

SD é uma abordagem para modelar e compreender o comportamento não linear de sistemas complexos ao longo do tempo usando estoques, fluxos, feedback loops, funções e delay.

Basicamente é uma forma de observar o comportamento de um sistema no decorrer do tempo através de um modelo que explora relações causais entre os elementos no decorrer do tempo.

O exemplo para compreender como funciona a modelagem de sistemas dinâmicos é o de uma banheira, onde você possui um fluxo de entrada(água da torneira), o estoque(a banheira) e o fluxo de saída(ralo).

Podemos representar isso assim:

Cada um desses elementos pode ser visto como uma variável de fluxo ou de estoque. Vamos dar uma olhada nesses conceitos.

  • Estoque é uma variável que se acumula no decorrer do tempo. Pense numa banheira com água.
  • Fluxo é uma variável que representa o movimento de algum recurso ou de energia que alimenta algum estoque. Pense em uma torneira. Um variável de fluxo também pode alimentar outra variável de fluxo, como uma série de canos que levam a água até uma torneira.
  • Feedback loops são relações de causa e efeito entre variáveis, onde o valor de uma variável afeta o valor de outra variável, que por sua vez afeta a primeira variável. Existem dois tipos de feedback loops: positivo e negativo.
  • Funções são relações matemáticas que descrevem como uma variável depende de outras variáveis. Podem ser lineares ou não-lineares. Não vamos abordar isso em detalhes nesse artigo.
  • Delay é o tempo que leva para que uma mudança em uma variável afete outra variável. Pode ser representado por um atraso de tempo em um modelo.

A modelagem de sistemas dinâmicos permite simular diferentes cenários e testar diferentes políticas e estratégias para entender o comportamento do sistema ao longo do tempo. É uma ferramenta poderosa para tomar decisões informadas e evitar efeitos indesejados em sistemas complexos.

Este diagrama tem uma estrutura básica de stock and flow.

Temos o estoque representado pelo retângulo no meio e o fluxo pelas setas. Lembre que o estoque trata-se de qualquer tipo de variável quantitativa que pode ser acumulada.

Neste caso o “estado do sistema” é qualquer estoque que seja importante: quantidade de funcionários, quantidade de dinheiro no banco, seja o que for. Os estados do sistema geralmente são estoques físicos, mas também podem ser não materiais: autoconfiança, segurança psicológica, confiança nos meus gestores e etc.

Nós temos sempre fluxos que aumentam ou decrescem esses estoques.

A quantidade de demissões e contratações vão regular o número de funcionários em uma empresa. A entrada e saída de dinheiro na conta vai regular o estoque de recursos financeiros. Os rituais feitos para cuidar do campo relacional das pessoas vão regular o “estoque” de segurança psicológica. A relação entre um funcionário e seu gestor vai regular o “estoque” de confiança.

Explorando o exemplo da banheira mais a fundo

Vamos dar uma olhada mais a fundo nesse exemplo da banheira. Pense no seguinte: se a taxa de entrada for maior do que a taxa de saída, a água sobe gradualmente.

Se a vazão de saída for maior do que a de entrada, a água diminui gradualmente.

Leva tempo(delay) para que os fluxos se acumulem nos estoques, da mesma forma que leva tempo para a água encher ou escoar da banheira.

O resto do diagrama mostra a informação que faz com que os fluxos mudem, o que então faz com que o estoque mude. Se você está prestes a tomar banho, você tem o nível de água desejado em mente (seu objetivo).

Você tapa o ralo, abre a torneira e observa até que a água chegue ao nível escolhido (até que a discrepância entre o objetivo e o estado percebido do sistema seja zero). E aí você fecha a água.

Se você entrar na banheira e perceber que a água vai transbordar, é só abrir o ralo por um tempo, até que a água desça ao nível desejado.

Esses são dois loops de balanceamento, um regulando o fluxo de entrada e o outro de saída.

O exemplo da banheira pode ser qualquer variável em nossa vida pessoal ou profissional. É tudo uma questão de compreender os fluxos de entrada e saída e as variáveis de estoque e como o fluxo de informação contribui para o balanceamento do sistema.

Naturalmente que ao lidar com muitas variáveis o processo se torna cada vez menos intuitivo.

Dado que não podemos mudar o sistema diretamente, Donella delineou uma lista de variáveis nas quais você pode agir para influenciá-lo. Ela geralmente classifica os pontos de alavancagem na ordem inversa, do mais básico e menos eficaz ao mais difícil de mudar, mas também mais impactante. Estou pegando emprestado muitas das palavras de