No artigo anterior eu trouxe uma definição dos incentivos perversos acompanhada de uma tipologia que nos permite identificá-los rapidamente em qualquer sistema social. Além disso, discutimos casos de exemplo e falamos sobre a necessidade de uma lente sistêmica que compreenda os coflitos estruturais atrelados a esses incentivos e proponha intervenções que busquem a superação dos mesmo.

Neste artigo eu pretendo abordar os caminhos para que possamos redesenhar esses incentivos para inibir os mecanismos de opressão presentes nas organizações que nos assolam dia após dia.

É fácil reconhecer os incentivos perversos quando os vemos de fora. O verdadeiro desafio está em não sucumbir a eles quando estamos imersos nos sistemas que os produzem. Afinal, existem algumas armadilhas sedutoras que tendem a perpetuar esses padrões indesejados.

Pensemos na tentação da “solução rápida“. Diante de um incentivo perverso, a reação instintiva é buscar uma contramedida simples que supostamente resolverá tudo. Mas sabemos que não funciona assim. Os sistemas complexos raramente respondem a intervenções isoladas de forma previsível. Essas “soluções” costumam apenas deslocar o problema para outro lugar.

Outra armadilha é a “busca por culpados“. Apontar o dedo para indivíduos ou grupos específicos pode até ser reconfortante, mas dificilmente leva a mudanças duradouras. Os incentivos perversos são sintomas, não causas isoladas. Culpar os “peões” apenas mascara as verdadeiras forças sistêmicas em jogo.

E então há a tentação da “mudança cosmética“. Reformular métricas, reorganizar departamentos ou lançar novas iniciativas pode dar a ilusão de progresso. Mas se não estiverem enraizadas em uma compreensão profunda dos padrões subjacentes, essas mudanças correm o risco de se tornarem mais um exemplo de incentivos disfarçados.

Escapar dessas armadilhas requer disposição para questionar nossas suposições mais arraigadas. Só então podemos começar a desmantelar os incentivos perversos de verdade e reconstruir sistemas mais alinhados com nossos valores coletivos.

Afinal, como diria o velho ditado, “o caminho para o inferno é pavimentado de boas intenções”.

Redesenhando Incentivos Perversos: Princípios para Projetar Sistemas Saudáveis

Enfrentar os desafios dos incentivos perversos requer um repensar fundamental de como projetamos e estruturamos nossos sistemas sociais, econômicos e organizacionais. Alguns princípios podem nortear nossa jornada:

Abraçar a Complexidade

Os sistemas complexos são inerentemente imprevisíveis e não lineares. Devemos aprender a trabalhar com a complexidade, cultivando a capacidade de adaptação, experimentação e aprendizado contínuo.

Alinhar Estruturas e Propósitos Declarados

Muitos incentivos perversos surgem do desalinhamento entre as estruturas existentes e os propósitos que dizemos valorizar. Precisamos reconciliar essas discrepâncias, alinhando métricas, recompensas e responsabilização com nossos objetivos sustentáveis.

Descentralizar e Distribuir Poder

Estruturas hierárquicas centralizadas tendem a perpetuar incentivos perversos. Modelos de autogestão e decisão social participativa podem ajudar a diluir esses riscos e aumentar a diversidade.

Valorizar o Intangível

Além de métricas quantificáveis, precisamos encontrar maneiras de incorporar fatores intangíveis como confiança, significado, relações, aprendizagem, bem-estar e a “warm data” conceituada por Nora Bateson.

Nutrir Ecossistemas Saudáveis

Ao invés de otimizar componentes isolados, uma abordagem sistêmica é necessária – cultivando ecossistemas inteiros de incentivos mutuamente reforçadores, repensando estruturas de governança, modelos de negócios e os fundamentos de nossas economias.

Antipadrões Organizacionais: Disfunções Geradas por Incentivos Perversos

Antipadrões são modelos recorrentes de processos, estruturas ou comportamentos organizacionais problemáticos que, paradoxalmente, são reforçados por incentivos perversos embutidos nos sistemas. Eles representam soluções inadequadas que se perpetuam, gerando consequências indesejadas e disfuncionais. Embora muitas vezes bem-intencionados inicialmente, os antipadrões se cristalizam em práticas arraigadas que minam a eficácia, a ética e a colaboração dentro das organizações. Esses antipadrões atuam como disfunções que perpetuam ciclos viciosos de comportamentos contrários aos objetivos declarados. Vamos explorar alguns exemplos:

AntipadrãoDescrição
O Culto da MétricaQuando métricas e metas numéricas se tornam o foco principal, em vez de ferramentas para avaliar o progresso real. Isso pode levar à “engenharia de números”, comprometendo a qualidade e a integridade em prol de atingir alvos quantitativos.
A Síndrome do Prêmio de ParticipaçãoSistemas de recompensa que distribuem bônus ou aumentos independentemente do desempenho real. Isso incentiva a mediocridade coletiva, desmotivando aqueles que realmente se esforçam em prol dos interesses individuais imediatos.
A Ignorância do SiloEstruturas compartimentalizadas, com pouca comunicação entre as equipes. Cria-se um ciclo de otimização de métricas locais de curto prazo em detrimento dos objetivos sistêmicos de longo prazo da organização.
A Ditadura da UrgênciaCulturas que valorizam o “apagar incêndios” constante em vez de investir em melhorias duradouras. Perpetua-se um ciclo frenético, recompensando a reatividade em detrimento do planejamento proativo de longo prazo.
A Paralisia pela AnáliseAmbientes que exigem níveis excessivos de análise e documentação antes da ação. Isso cria uma ilusão de controle, desencorajando a experimentação e levando à procrastinação perpétua.
O Culto da CriatividadeÊnfase exagerada na inovação disruptiva em detrimento do aprimoramento incremental. Isso pode gerar uma rejeição precipitada de soluções comprovadas e um ciclo de “reinvenção da roda”.
A Armadilha da AparênciaSistemas que priorizam a aparência e as métricas facilmente manipuláveis em vez da substância real. Isso incentiva comportamentos de maquiagem de relatórios e ocultação de problemas.

Um exemplo absurdo bem recente da “armadilha da aparência” é o caso de vagas fantasmas sendo publicadas por empresas.

Imagine-se aplicando para a vaga dos seus sonhos, apenas para ficar no vácuo, sem resposta, por meses. Pode não ser sua culpa. Na verdade, a vaga pode nunca ter existido. Segundo uma pesquisa com mais de 650 gestores de contratações do site Resume Builder, 3 em cada 10 empresas admitem postar vagas de empregos falsas. Incrivelmente, 70% dos gerentes acreditam que essas publicações aumentam a receita, 65% veem um impacto positivo no moral dos funcionários, e 77% notam um aumento na produtividade dos trabalhadores. As empresas utilizam essa prática por diversos motivos: para fazer os funcionários atuais pensarem que o negócio está crescendo, para aliviar a carga de trabalho ao aparentar esforços de contratação, e para sinalizar que os empregados são substituíveis. Surpreendentemente, 7 em cada 10 desses gerentes consideram essa prática moralmente aceitável e benéfica para os negócios. Este cenário pode ser enquadrado como um exemplo claro de Incentivos de Aparência na nossa tipologia.

Analisando a Perversidade

Vamos pegar como exemplo, para tangibilizar isso tudo que estamos falando, analisar um caso de incentivo de escala, especificamente sobre a questão de como os incentivos individuais contribuem para uma competição interna que afeta diretamente a colaboração.

Primeiro, podemos analisar um diagrama abaixo que nos oferece uma reflexão sobre os fatores estruturais envolvidos neste fenômeno: 

Esta é uma representação bem simplificada dos fatores envolvidos na dinâmica de incentivos individuais na maioria das organizações. O diagrama basicamente apresenta os mecanismos da manutenção da meritocracia em organizações que apostam em reconhecimento individual. 

O primeiro passo aqui, é questionar o pressuposto de que a performance individual é realmente possível em sistemas sociais. Meu contraponto é de que a performance de um sistema é sempre o resultado do esforço coletivo. Logo, reforçar incentivos individuais é a receita do sucesso para organizações com times medíocres e pessoas desmotivadas. 

Depois vem a pergunta: “Que intervenções estruturais podemos fazer para eliminar ou inibir os incentivos individuais neste sistema?”

Aqui vão algumas ideias: 

  • Redesenhar o sistema para oferecer mais recompensas para o esforço coletivo do que o esforço individual
  • Alterar a política de incentivos individuais e os rituais atrelados à mesma 
  • Priorizar mais ações colaborativas que visam resultados de longo prazo do que respostas emergênciais para incêndios
  • Criar mecanismos de reconhecimento baseado em pares e tirar esse poder dos gestores

Essas são algumas ideias que apresento rapidamente para tangibilizar a você que está lendo esse artigo o que eu quero dizer com intervenções estruturais. Todas elas teriam que ser experimentadas e adaptadas de acordo com o feedback do sistema. Perceba que o foco das minhas intervenções está localizado em elementos do sistema e não numa mudança da visão de mundo dos executivos. O desenvolvimento das pessoas é super relevante, mas não serve pra nada quando as estruturas estão viciadas.

Afinal, como disse Deming(ou dizem por aí que ele falou na internet), um sistema ruim vai vencer uma pessoa boa todas as vezes.

Intervenções para uma Transformação Profunda

As estruturas que criamos para organizar nossas vidas – com suas regras, processos e incentivos – muitas vezes se voltam contra nós, gerando comportamentos tóxicos que corroem a colaboração e a ética. Mas essa não é uma falha acidental. Por trás desses mecanismos aparentemente neutros, existe uma teia intrincada de interesses, valores e suposições raramente questionados.

Quem se beneficia quando as métricas se tornam um culto cego? Que vozes são silenciadas quando a urgência constante se normaliza? Quais perspectivas são marginalizadas quando os silos organizacionais se cristalizam? São perguntas incômodas, mas necessárias.

A verdadeira transformação exige mais do que remendos superficiais. Precisamos intervir diretamente nos artefatos que moldam nossas estruturas sociais: os processos, as tecnologias, os espaços físicos e, acima de tudo, os sistemas de recompensa e incentivo que conduzem o comportamento humano.

Essa intervenção começa com o mapeamento criterioso dos sistemas existentes, revelando suas dinâmicas ocultas e contradições inerentes. Isso nos ajuda  a vislumbrar caminhos para desconstruir gradualmente as armadilhas que nos oprimem.

Trata-se de um redesenho radical  que dê voz às perspectivas historicamente ignoradas e  que valorize perspectivas divergentes, abrace o dissenso como combustível para a criatividade, em vez de suprimi-lo em nome de uma falsa harmonia.

É chegada a hora de experimentarmos novos modelos descentralizados e emergentes, capazes de se adaptar às mudanças. Organizações que incentivem a colaboração autêntica, a transparência corajosa e o impacto positivo de longo alcance. Não através de estruturas rígidas e hierárquicas, mas de redes fluidas e dinâmicas, constantemente afetadas por todos os envolvidos.

Essa jornada não será fácil. Exigirá que desafiemos nossos próprios vieses, reconheçamos nossas sombras institucionais e abramos mão das ilusões reconfortantes de controle. Mas é um caminho necessário se quisermos construir um futuro organizacional mais ético e menos adoecedor.

Abraçar a Complexidade, Intervir nas Estruturas

Os incentivos perversos são sintomas de contradições muito mais profundas enraizadas em nossas estruturas sociais. Eles emergem silenciosamente, camuflados por trás de métricas e recompensas aparentemente inofensivas, apenas para se manifestarem mais tarde como comportamentos tóxicos e corrupção sistêmica.

Não há soluções mágicas ou inimigos externos a serem derrotados. Esses sistemas são criaturas autoperpetuantes, constantemente gerando novas crises a partir de nossas próprias tentativas ingênuas de resolvê-las. Um ciclo interminável de causas e efeitos inesperados.

A verdadeira transformação exige uma disposição para abraçar a complexidade inerente ao mundo social. Questionar nossas próprias certezas, ouvir vozes dissonantes e reconhecer que nossas perspectivas são inerentemente parciais. Só assim vislumbraremos caminhos para intervenções profundas.

Não por meio de mudanças cosméticas, mas de uma desconstrução cuidadosa dos mecanismos que geram e perpetuam os incentivos perversos. Um trabalho árduo de mapeamento de sistemas, design participativo e experimentação ousada com novos modelos organizacionais descentralizados.

É um convite para abandonarmos as ilusões de controle e previsibilidade. Para abraçarmos o desconforto do desconhecido e a vulnerabilidade de admitir que não temos todas as respostas. Um chamado para nos engajarmos em processos contínuos de aprendizagem, falha e adaptação – a única maneira sustentável de construirmos organizações mais éticas e humanas.

Afinal, se os incentivos perversos são sintomas de nossas próprias contradições, sua superação reside não em soluções externas, mas em uma jornada coletiva de intervenção estrutural e autoreflexão constante. 

E agora chega a hora de fazer o meu jabá. Tenho um curso de Pensamento Sistêmico e Complexidade Aplicada(PESCA) à organizações que oferece as ferramentas, práticas e conhecimento que estamos construindo e organizando nos últimos anos para ajudar organizações a desenharem intervençõe estruturais. Junte-se a nós na próxima edição! :)

UM CONVITE

Nós não acreditamos em soluções milagrosas para problemas complexos. Intervimos na cultura escutando as pessoas e fazendo experimentos de intervenções. Os feedbacks recebidos a partir dessas intervenções geram novas histórias e novas intervenções, e assim a cultura se transforma. 

Não trabalhamos com produtos de prateleira e nem sempre vamos buscar agradar as lideranças com as nossas propostas. Sabemos que as mudanças geram desconforto. Afinal, se ninguém tá incomodado, é porque a transformação é só cosmética mesmo.

Chama a gente para uma prosa  pra conhecer nossa abordagem e faça nossos cursos. Conheça nossa abordagem para lidar com a transformação cultural e leia nossos artigos sobre pensamento sistêmico para aprender mais sobre nossa abordagem de intervenções estruturais. 

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Pensamento Sistêmico e Complexidade Aplicado em Organizações

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Sobre o(a) autor(a): Ravi Resck

Ravi é um hacktivista social, atuando também como facilitador, designer organizacional e mapeador de sistemas sociais. Se dedica ao estudo de metodologias colaborativas e à complexidade dentro dos contextos organizacional, relacional e ambiental. Sua experiência se estende de empresas de todos os portes até cooperativas e associações do 3° setor, tanto no Brasil como em cenário global. Ademais, Ravi tem um histórico de envolvimento com Organizações Autônomas Descentralizadas (DAOs), no mapeamento de redes sociais em organizações de grande escala e na criação e manutenção de comunidades de prática dentro e fora de empresas.

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